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Linguagem e Igualdade

Deizimar Mendonça Oliveira*

Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Juíza do Trabalho titular da 4ª Vara do Trabalho de Cuiabá-MT, coordenadora do Comitê Permanente de Gestão da Diversidade e Inclusão do TRT da 23ª Região, integrante da Comissão Anamatra Mulheres.

 

Bom dia a todos e a todas. A primeira vez que ouvi essa frase, senti estranhamento e até antipatia, pareceu-me forçado e, sobretudo, desnecessário e inútil atribuir qualidade feminina a pronome cuja característica é a generalidade. Até então achava, sem parar para refletir, que tudo estava perfeitamente aquilatado, afinal, normas, inclusive as linguísticas, impõem restrições que se deve respeitar. Não cederia à desvalorização do idioma, às flexões de gênero para substantivos inflexíveis como bebê, piloto, membro e presidente.

Fui bem ensinada. Sem perceber, jactava-me das lições concebidas sem nenhuma preocupação com a inclusão ou as diferenças entre as pessoas. Não é por outro motivo que sempre me pareceu normal usar o gênero masculino para falar do ser humano. Quando mencionamos o homem querendo tratar da pessoa humana, admitimos que, de acordo com as regras, é o homem que generaliza a humanidade, é o masculino que resume todas as diferenças. E por que as regras ortográficas assim determinam? Qual a origem de se considerar que em “todos” estão incluídas “todas” e “todes”?

Aprendi em Fairclough[1] a visão foucaultiana de que a linguagem é não só constituída pela realidade como também é desta constitutiva. De outro modo: o discurso ou a forma como se diz as coisas podem ajudar a transformar a vida prática. Para compreender isso, é necessário assimilar que a própria percepção da realidade depende da linguagem: não há como pensar em uma mesa e falar sobre ela como um objeto, sem sua representação (que inclui imagens e palavras), menos ainda é possível descrever liberdade ou raiz quadrada sem representações textuais.

É imprescindível perceber também que não há lugares fixos nos discursos, estes se inter-relacionam e se transformam, de modo que há descontinuidades, há não-ditos que constroem significados. Na obra literária 1984, de George Orwell, uma das estratégias do governo autoritário para exercer a dominação é diminuir a compreensão sobre os fatos, alterando não apenas a história, mas a própria língua. Assim, é criada a Novafala, que limita as palavras e o seu significado, a fim de restringir a reflexão e o próprio pensamento. Uma das personagens chega a expressar esse ponto:

“Você não vê que a verdadeira finalidade da Novafala é estreitar o âmbito do pensamento? No fim teremos tornado o pensamento-crime literalmente impossível, já que não haverá palavras para expressá-lo. Todo conceito de que pudermos necessitar será expresso por apenas uma palavra, com significado rigidamente definido, e todos os seus significados subsidiários serão eliminados e esquecidos.”[2]

Seria isso verdadeiramente possível? Sim, é plausível que sim.

A comunicação é inerente à vida e constitui a própria essência da relação humana com tudo e todos. Para que se complete, ela exige a conjugação de intenções de quem diz, ainda que com o silêncio, e quem ouve ou recebe a informação. A comunicação circula entre os comunicantes, não se completando sem essa circularidade[3]. A compreensão de qualquer ato de comunicação exige intepretação – não apenas apropriação de um sentido autônomo do texto (entendido texto como manifestação do discurso, verbal ou não verbal), mas co-criação do sujeito que interpreta.

Nesse ato, o sujeito que interpreta não se despe de seus sentimentos, suas relações de poder, seu modo de ver o mundo. E nada disso é abstrato, mas acontece concretamente em determinados lugares, ao longo do tempo, permeando de historicidade toda a formação discursiva. O discurso é, desse modo, polifônico, pois reúne diversas vozes, dialogando, ainda que implicitamente, com outros discursos, contrários ou favoráveis a ele[4].

No caso da obra literária de Orwell, ao limitar na Novafala a atribuição de significados e, ao mesmo tempo, proibir a Velhafala, as personagens passam a ressignificar o discurso, incorporando ao longo do tempo as limitações impostas, de modo a transformar a linguagem até que nada reste com a mesma significação de antes.

Foucault, em sua obra Arqueologia do Saber[5] avalia o discurso como constitutivo da vida social, na medida em que contribui para a produção, transformação e reprodução dos objetos por meio da intertextualidade, isto é, da combinação de comentários, de textos de diferentes épocas que se vão interpenetrando e da interferência de regras, explícitas ou implícitas, sociais ou científicas, assim como das próprias histórias vividas pelos autores desses textos. Há sinais, portanto, de que o discurso pode, sim, contribuir para alterar a forma como se enxergam as coisas, na medida em que é central na vida em sociedade.

Se nos perguntarmos como chegamos até aqui, ficará fácil trilhar o percurso até a generalização do ser humano no homem. As mulheres sofreram, ao longo da história, diversos tipos de opressão que abrangeram tanto o controle do corpo, da intimidade, da sexualidade e da autonomia da vontade como o domínio do patrimônio e a negação de direitos, o que as tornou invisíveis na perspectiva de sujeita e cidadã.

Tome-se como exemplo o Direito brasileiro. Antes de 1979, o futebol para mulheres era crime no Brasil. Até 1932, as mulheres não tinham o direito de votar. O código civil de 1916 estabelecia que a mulher, ao se casar, perdia sua capacidade civil plena, equiparando-se aos índios, aos pródigos e aos menores, com capacidade apenas relativa. A mulher era obrigada a adotar o nome do marido, num casamento indissolúvel até 1977, quando foi aprovada a lei do divórcio. O homem era o chefe da sociedade conjugal, o representante legal da família, o administrador dos bens comuns e dos particulares da mulher[6].

O Brasil tinha e conserva características similares a muitos outros países do mundo, nos quais prevalece há séculos a cultura de obediência da mulher e dos filhos ao pai ou patriarca, daí falar-se em sociedade patriarcal. Se o Brasil do século XX era dessa forma desigual com as mulheres, nos séculos anteriores a situação era ainda mais injusta não só aqui, mas ao redor de todo o mundo. A idade média, seja durante o feudalismo ou no período posterior, sempre reservou inúmeros privilégios para os homens, que tinham o controle do patrimônio e da vida privada das mulheres. Embora a estratificação social sempre tenha existido, para além das diferenças de classe, a mulher sempre foi posicionada abaixo do homem. O direito, por ser moldado ao sabor das mudanças sócio-político-culturais reflete com razoável clareza o curso histórico do progresso social, mas revela e ao mesmo tempo também oculta muitas lutas por reconhecimento e direitos.

O direito a voto, por exemplo, assim como ao divórcio e ao controle do próprio patrimônio não vieram sem que antes as mulheres se unissem para lutar contra a sua exclusão da política, seu aprisionamento no casamento, sua injusta incapacidade jurídica. E a luta não deve cessar porque persiste não só a desigualdade de tratamento, mas a interminável e inaceitável violência sexista. Daí a importância de enfrentar também a violência expressa ou simbólica contida na linguagem.

Por que resistimos a alterações linguísticas? É trivial que há no apego às regras certas preferências. Como há muitos não ditos nas generalidades. Mas não é coerente defender a Constituição e, ao mesmo tempo, rejeitar solenemente a linguagem mais inclusiva sob o argumento de que “sempre foi assim” ou de que a norma culta assim exige. O gênero é, ele mesmo, uma construção social e admite, portanto, reformulações[7]. Não há como negar a estreita conexão entre a opressão de mulheres e a centralização do discurso no homem, pois esta prática consolida no plano linguístico a negação e o controle do feminino.

Mas conceber o sexo como fato biológico para determinar as diferenças entre os seres humanos desencadeia consequências equivocadas, já que determina no corpo o motivo para a inferiorização das mulheres, cultivando culturalmente – sem qualquer embasamento científico -, a ideia de inaptidão das mulheres para a vida política e atividades que exijam controle emocional. A linguagem assume, desse modo, um papel primordial ao atuar como um sistema de significação que incorpora o ser humano generificado no homem. Por isso, é importante assumir como parte da luta pela liberdade da mulher, a incorporação de recursos linguísticos que deixem de a invisibilizar.

Não é suficiente, entretanto, em termos de linguagem como instrumento de luta por igualdade, usar apenas masculino e feminino para trazer à tona as diferenças e resistir à opressão. De início, surgem pelo menos dois problemas: a não inclusão das pessoas não binárias ou que não se reconhecem na posição binária de gênero; e a falta de objetividade do discurso. De fato, seria cansativo e insuficiente dizer, por exemplo: “bom dia a todas e a todos, as mulheres e os homens que estiverem inscritas e inscritos no programa de busca por desaparecidas e desaparecidos, queiram, por favor, se aproximar...”

A jovem argentina Natália Mira, com apenas 18 anos, mostrou, juntamente com centenas de outras adolescentes, em um protesto estudantil, que há como travar a luta contra a discriminação na linguagem. Uma matéria do Jornal Folha de São Paulo, publicada em sua página eletrônica em 07/12/2019, revela como esta e outras adolescentes argentinas reescrevem o idioma para eliminar as exclusões decorrentes do gênero.

Como relata a jornalista Samantha Schmidt, “Nas salas de aula e em conversas do dia a dia, os jovens estão mudando o modo como falam e escrevem substituindo a terminação masculina ‘o’ e a feminina ‘a’ por um ‘e’, de gênero neutro em certas palavras, em um esforço para modificar o que veem como sendo uma cultura profundamente machista”[8]. Foi essa a maneira com a qual as jovens argentinas estilizaram uma canção conhecida para cantarem seu protesto no ato estudantil, substituindo tanto o artigo definido “os” por “es” como a terminação da palavra soldados por soldades: “Militaremos de sol a sol”, “somos es jovens, es soldades de Perón.

Também nos Estados Unidos, como se vê na mesma reportagem, tem sido comum o uso do pronome they – que no inglês assume o tom neutro por significar tanto eles como elas - no singular, para indicar pessoas não binárias. Você pode pensar que é estranho pronunciar todes, es soldades e coisas dessa natureza. Mas é tudo questão de hábito. Basta ver, por exemplo, o quanto achamos normal utilizar, inversamente do que ocorre na língua portuguesa, o feminino para mar e o masculino para ponte em francês (la mer, le pont), o feminino para sal e o masculino para água em espanhol (la sal, el agua).

É da democracia a cidadania integral e irrestrita para todas as pessoas. Não é coerente com a democracia a naturalização das desigualdades existentes, a cumplicidade com o tratamento discriminatório, a indiferença com a violência sexista. Por isso o desafio da inclusão é de todes.

* Deizimar Mendonça Oliveira é Mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Juíza do Trabalho titular da 4ª Vara do Trabalho de Cuiabá-MT, coordenadora do Comitê Permanente de Gestão da Diversidade e Inclusão do TRT da 23ª Região, integrante da Comissão Anamatra Mulheres.

[1] FAIRCLOUGH, Norman. Discurso e mudança social. 2ª ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2016.

[2] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 68-69.

[3] SCHLEIERMACHER, Friedrich D.E. Hermenêutica - Arte e Técnica de Interpretação. Friedrich D.E. Schleiermacher; tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis, RJ: Vozes, 1999.

[4] BRANDÃO, Helena Hathsue Nagamine. Analisando o discurso. S/D. Disponível em: <http://paginapessoal.utfpr.edu.br/cfernandes/analise-do-discurso/textos/analisandoodiscursonagaminebrandao.pdf/view>. Acesso em: 16 set. 2017, p. 5.

[5] FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Tradução de Luiz Felipe Baeta Neves; 7ª ed.; Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

[6] Cf. DIAS, Maria Berenice. A mulher no código civil. Disponível em <http://www.mariaberenice.com.br/uploads/18_-_a_mulher_no_c%F3digo_civil.pdf>. Acesso em 16 jan. 2020.

[7] “A difusão do termo ‘gênero no vocabulário de análise da organização social deve-se, em grande medida, à inserção do termo nos estudos e movimentos feministas, que objetivavam assinalar o caráter cultural das distinções assentadas sobre o sexo biológico.” (LOPES, Laís. O que é o gênero? In RAMOS, Marcelo Maciel; Nicoli, Pedro Augusto Gravatá; BRENER, Paula Rocha Gouvêa (organizadores). Gênero, sexualidade e direito: uma introdução. Belo Horizonte: Initia Via, 2016, p. 21.

[8] SCHMIDT, Samantha. Jovens argentinas lideram batalha por linguagem sem distinção de gênero. Folha de São Paulo, 07/12/2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/12/jovens-argentinas-lideram-batalha-por-linguagem-sem-distincoes-de-genero.shtml>. Acesso em 07 jan. 2020.

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Diretor de Assuntos Legislativos da Anamatra
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