A polêmica liminar na ADI 6363 e um retorno à teoria do negócio jurídico
Leandro Fernandez
Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Sexta Região. Doutorando e Mestre em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito e Processo do Trabalho. Professor. Diretor de Prerrogativas da Amatra VI (gestão 2018/2020). Membro da Comissão Nacional de Prerrogativas da Anamatra (gestão 2019/2021). Coordenador Adjunto da Revista de Direito Civil e Processual. Membro do Instituto Baiano de Direito do Trabalho.
Nos últimos anos, poucas decisões judiciais suscitaram tanta polêmica e atraíram tanta atenção da mídia e da sociedade quanto a liminar proferida pelo Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski, do Supremo Tribunal Federal, em 06/04/2020, na ADI 6.363/DF, ratificada em decisão de embargos de declaração em 13/04/2020.
Nestas breves linhas, não se propõe uma reflexão em torno de consequências políticas, sociais ou econômicas da decisão — conquanto não se olvide, naturalmente, da relevância de tais preocupações em relação aos pronunciamentos judicias em geral. Em estreito intervalo de tempo, muita tinta já tem sido vertida na abordagem de tais questões.
A exclusiva finalidade desta reflexão é propor uma análise, à luz da teoria do negócio jurídico, da natureza da manifestação do ente sindical referida no decisum proferido por Sua Excelência.
A preocupação objeto deste estudo possui relevância teórica e repercussões práticas, como se verá adiante.
Interessa-nos, aqui, o seguinte excerto do pronunciamento:
Por isso, cumpre dar um mínimo de efetividade à comunicação a ser feita ao sindicato laboral na negociação. E a melhor forma de fazê-lo, a meu sentir, consiste em interpretar o texto da Medida Provisória, aqui contestada, no sentido de que os “acordos individuais” somente se convalidarão, ou seja, apenas surtirão efeitos jurídicos plenos, após a manifestação dos sindicatos dos empregados.
A diretriz veio a ser reiterada por ocasião da apreciação dos embargos de declaração, em decisão datada de 13/04/2020:
Diante de todo o exposto, esclareço, para afastar quaisquer dúvidas, e sem que tal implique em modificação da decisão embargada, que são válidos e legítimos os acordos individuais celebrados na forma da MP 936/2020, os quais produzem efeitos imediatos, valendo não só no prazo de 10 dias previsto para a comunicação ao sindicato, como também nos prazos estabelecidos no Título VI da Consolidação das Leis do Trabalho, agora reduzidos pela metade pelo art. 17, III, daquele ato presidencial.
Ressalvo, contudo, a possibilidade de adesão, por parte do empregado, à convenção ou acordo coletivo posteriormente firmados, os quais prevalecerão sobre os acordos individuais, naquilo que com eles conflitarem, observando-se o princípio da norma mais favorável. Na inércia do sindicato, subsistirão integralmente os acordos individuais tal como pactuados originalmente pelas partes.
Examinada com vagar a decisão, constata-se a adoção de determinados conceitos essenciais da teoria do negócio jurídico, os quais não foram, entretanto, explicitados em seu texto. Parece-nos, inclusive, que a utilização implícita de tais categorias jurídicas pode ter ocasionado parcela das críticas formuladas pela comunidade jurídica.
Essencialmente, a questão reside em identificar se estamos diante de um ato complexo, cuja formação depende da conjugação das manifestações do trabalhador e do seu sindicato, de condição suspensiva ou de negócio jurídico com defeito de legitimação passível de ulterior superação.
Consoante assentado por Orlando Gomes em sua tese de cátedra, a convenção coletiva “necessita preencher um conjunto de requisitos para adquirir eficácia jurídica”, acrescentando:
Devido a seu caracter coletivo, há de a convenção ter, para se configurar, um sujeito plural, pelo menos. O sujeito patronal pode ser singular, mas o sujeito operário há de ser coletivo. É, precisamente, essa exigência, unanimemente admitida, de uma coletividade obreira como participante da relação jurídica, que imprime a esse acordo de vontades uma feição própria que o singulariza[2].
Como se nota, utilizou-se o mestre baiano da expressão “convenção coletiva”, aqui, em sentido lato, abrangendo também a avença celebrada entre sindicato profissional e empresa, identificada no ordenamento brasileiro sob a terminologia de “acordo coletivo de trabalho” (CF/88, art. 5º, incisos VI, XIII e XXVI; CLT, art. 611, § 1º).
Originalmente, sob a égide do Decreto n.º 21.761/32, a aptidão para a celebração de instrumentos coletivos era conferida tanto diretamente aos trabalhadores quanto aos seus sindicatos[3]. Apenas posteriormente foi atribuída ao ente sindical a legitimação prima facie para sua pactuação, o que viria a tornar-se comando constitucional. Na atualidade, os trabalhadores dispõem apenas de uma legitimação substitutiva, exercida nos casos de inexistência de ente sindical ou recusa deste quanto à negociação[4].
A lembrança histórica não deve causar estranheza. Conforme recorda Menezes Cordeiro, “o fundamento de validade das normas laborais colectivas assenta no reconhecimento pelo Estado ou, se se preferir, numa delegação de poderes por ele efectuada junto dos parceiros colectivos”[5].
Trata-se, inequivocamente, de uma das hipóteses excepcionais em que a legitimação para a prática de certo ato ou celebração de determinado negócio é atribuída a um sujeito por força de lei[6].
Vale rememorar, a esta altura, na trilha do magistério de Marcos Bernardes de Mello, que a legitimação
consiste em uma posição do sujeito, capaz ou não, relativamente ao objeto do direito, que se traduz, em geral, na titularidade do direito, posição esta que tem como conteúdo o poder de disposição, bem assim o poder de aquisição e o de contrair dívidas. Excepcionalmente, a legitimação pode decorrer de atribuição do sistema jurídico a terceiro que não seja o titular do direito[7]. (sem grifos no original)
A ocorrência de defeitos na legitimação pode provocar distintas consequências jurídicas, desde a invalidade, seja nulidade ou anulabilidade, até a ineficácia. Todavia, alerta Orlando Gomes que, “a rigor, a falta de legitimação consiste numa incapacidade jurídica relativa, que se verifica quando uma das partes, devido à posição particular em que se encontra em relação à outra, está proibida de realizar com esta o negócio”[8].
Encontra lugar, aqui, a figura jurídica da ratificação, direcionada “à integração de ato dito incompleto”[9], de modo que “integra o negócio jurídico, enche-lhe a lacuna, obtura-lhe a falta que o punha em risco de ser anulado; a complexidade subjetiva perfaz-se”[10].
A ratificação, impõe-se acentuar, poderá ser expressa ou tácita, sendo que, neste último caso, “é preciso que o interessado conheça os fatos de que resultou a anulabilidade”[11]. Mais relevante: a ratificação é dotada de retroeficácia. É dizer: “o ato jurídico, pelo enchimento do que faltara ao suporte fático, para que o ato fosse válido, faz-se válido, ex tunc”[12].
Desenvolvidas essas considerações, é possível, agora, retornar ao exame das premissas teóricas que orientam a definição da natureza da manifestação do ente sindical prevista na decisão liminar proferida pelo Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski na ADI 6.363/DF.
Não estamos diante de um ato complexo, que se configura “pela conjugação de duas vontades que se completam”[13], uma vez que a própria formação do negócio apenas viria a ocorrer no momento da manifestação do sindicato, sendo impossível reconhecer-lhe qualquer efeito jurídico entre o momento da celebração do acordo individual e o da participação do sindicato. Haveria, então, um pernicioso limbo jurídico entre tais marcos temporais.
Da mesma maneira, a hipótese sob exame não pode ser identificada no rol das condições suspensivas. Estas, compreendidas por Pontes de Miranda como determinações inexas, “protraem a eficácia do ato jurídico, a colocam em momento futuro”, de modo que “o efeito ou os efeitos dos atos jurídicos somente comecem a partir de acontecimento futuro e incerto”[14]. Como visto, o acordo individual produzirá efeitos desde sua celebração, conforme esclarecido na decisão de embargos de declaração proferida em 13/04/2020. Inviável, portanto, o enquadramento como condição suspensiva.
Trata-se, em verdade, do reconhecimento de que o sindicato é o ente ao qual foi atribuída pelo ordenamento a legitimação para a celebração de diploma coletivo que importe em redução salarial.
O acordo individual celebrado entre o trabalhador e seu patrão consiste em ato precário, não ato jurídico perfeito, uma vez que praticado por sujeito distinto daquele ao qual o ordenamento jurídico atribui a legitimação para sua formalização, dependendo, pois, da ratificação por parte do ente sindical.
Sendo assim, o sindicato, legitimado prima facie para a celebração de negócios jurídicos que possuam o aludido conteúdo, ao ser comunicado do acordo individual, adotará uma das seguintes medidas: a) discordando dos seus termos, deflagrará a negociação coletiva; b) manifestando anuência com suas disposições, ratificará o acordo individual, de maneira expressa, caso em que se operará a retroeficácia do negócio; c) mantendo-se inerte, deve-se reputar ocorrida a ratificação tácita, operando-se, igualmente, a retroeficácia do negócio.
Saliente-se que a discordância em relação ao conteúdo do acordo necessariamente deve conduzir à negociação para a celebração de avença em outras bases, não sendo admissível a recusa genérica, caprichosa ou, de modo geral, abusiva, que, se vier a ocorrer, deverá ser reputada como ratificação tácita. Obviamente, cabe às partes negociar, de boa-fé, o tratamento jurídico a ser conferido ao período entre a celebração do acordo individual e o momento da pactuação coletiva, cenário que, em termos gerais, não é desconhecido do Direito do Trabalho, como evidencia o art. 7º da Lei n.º 7.783/89.
Isso significa que a ausência de participação do sindicato, em um primeiro momento, no negócio jurídico que estipule a redução salarial, não é causa de sua nulidade absoluta. Do contrário, o art. 617, § 1º, da CLT consagraria a inusitada possibilidade de criação de acordos coletivos de trabalho nulos.
O que se tem, em verdade, em tais casos, é um defeito de legitimação na celebração do negócio, apto a ser suprido pela via da ratificação pelo sindicato. Em caso de negativa, exercerá o ente coletivo a plenitude dos seus poderes na negociação de novos termos de pactuação.
Parece-nos, assim, serem essas as diretrizes para adequada compreensão da natureza da manifestação do ente sindical prevista na liminar proferida pelo Excelentíssimo Ministro Ricardo Lewandowski.
[2] GOMES, Orlando. A Convenção Coletiva de Trabalho. Salvador: Gráfica Popular, 1936, p. 182.
[3] Art. 1º Entende-se por convenção coletiva de trabalho o ajuste relativo às condições do trabalho, concluído entre um ou vários empregadores e seus empregados, ou entre sindicatos ou qualquer outro agrupamento de empregadores e sindicatos, ou qualquer outro agrupamento de empregados.
[4] SANTOS, Ronaldo Lima. Teoria das Normas Coletivas. 3 ed. Sâo Paulo: LTr, 2014, p. 203.
[5] CORDEIRO, Antonio Menezes. Tratado de Direito Civil. vol. VII. Direito das Obrigações: Contratos e Negócios Unilaterais. Coimbra: Almedina, 2016, p. 144.
[6] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Campinas: Bookseller, 2000, p. 172.
[7] MELLO, Marcos Bernardes. Teoria do fato jurídico: plano da validade. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 72.
[8] GOMES, Orlando. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 287.
[9] MELLO, Marcos Bernardes. Op. cit., p. 289.
[10] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 80.
[11] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo IV. Campinas: Bookseller, 2000, p. 300.
[12] Ibidem, p. 304/305.
[13] GOMES, Orlando. Ensaios de Direito Civil e de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Aide, 1986, p. 72.
[14] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo V. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, p. 97.