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CNJ realizará a I Jornada de Boas Práticas em Tutelas Coletivas

Evento será realizado de 2 a 4 de setembro
23/07/24

Anamatra sugere aprimoramento das metas nacionais para 2025

Presidente participou de audiência pública promovida pelo TST

De passados, presentes e futuros

Queremos uma Magistratura de homens. Aliás, de mulheres e homens. Não de máquinas

Caro Leitor,

Na última quarta-feira (31/5), para a minha honra capital, tomei posse como Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho ─ a gloriosa ANAMATRA, de nada menos que quarenta anos de lutas históricas em prol da Magistratura do Trabalho e do Estado Democrático e Social de Direito. A redemocratização e o movimento pelas “Diretas Já”, a Constituinte de 1987-1988, a extinção da representação classista (EC n. 24/1999), o aumento das competências “ex ratione materiae” da Justiça do Trabalho (EC n. 45/2004), o fim do nepotismo nos tribunais brasileiros, a fixação da remuneração da Magistratura nacional por meio de subsídios em parcela única (moralizando o seu regime vencimental, a despeito das distorções ainda existentes, que na União já não se veem, mas que persistem noutras paragens), o reconhecimento administrativo da simetria entre a Magistratura e o Ministério Público nacional… Tudo isto passou, mais ou menos intensamente, pelas mãos e pelos escaninhos da ANAMATRA. Mas isto é assunto para outra coluna.

Voltemos à posse de 31/5, que oficialmente tornou diretores da ANAMATRA os queridos amigos juízes do Trabalho que comigo compuseram a chapa “VIA-Anamatra” (“Valorização, Identidade, Ação”); e, mais, que comigo estiveram, presencial ou intencionalmente, visitando as vinte e quatro regiões do Trabalho, percorridas durante pouco mais que trinta dias úteis.

Pois bem. Na ocasião da posse, como de praxe, proferi um singelo discurso, bem ao gosto brasileiro: visceralmente sincrético. Ali havia elementos de política, de direito, de sociologia, de teatro, de poesia… e também muito rock’n roll.

O discurso refletiu, ademais, boa parte dos fatos que têm ocupado os noticiários nos últimos meses, notadamente no que diz respeito à Magistratura e ao Direito Social. E expressou, bem assim, os diagnósticos que entrevejo e os caminhos que antevejo para os dilemas que estão diante de nós. Por isto mesmo, com a licença de todos vocês, entendi por bem publicá-lo por aqui.

Espero que gostem. Se gostarem, escrevam-me. Se não gostarem, escrevam também.

*****

DISCURSO DE POSSE – 31.5.2017 – Clube Naval Almirante Alexandrino (Brasília/DF) – Presidência da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA)

Estamos vivendo uma tempestade perfeita: a incerteza financeira, a crise econômica, os cortes do Governo, o aumento do desemprego e um futuro que parece tanto menos claro quanto mais tentamos entendê-lo.

Esse pensamento, do filósofo JONATHAN SACKS, não foi imaginado para o Brasil atual; foi conjugado para a crise econômico-financeira de 2008-2009, deflagrada a partir da política norte-americana de hipotecas subprimes de alto risco e taxas variáveis. A mesma crise, aliás, que, no Brasil, foi presunçosamente antecipada como “marolinha”. E temos suportado o preço das nossas presunções.

Mas tal pensamento poderia perfeitamente simbolizar a condição brasileira atual. E talvez o sinal mais eminente da tempestade tupiniquim resida na altíssima taxa de desemprego que temos amargado: 14,2 milhões de desempregados no trimestre encerrado em março, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, do IBGE, num incremento de 14,9% em relação ao trimestre anterior. O cenário é particularmente assustador, se imaginarmos que, em dezembro de 2014 – a pouco menos de três anos, portanto ─, o desemprego no país chegou a 4,3%, segundo a Pesquisa Mensal de Emprego; noutras palavras, menos de um milhão de desempregados, sinalizando para uma inédita condição de pleno emprego, aspirada pelo próprio texto constitucional (está entre os princípios da ordem econômica, no art. 170, inciso VII); até então, porém, pouco mais que uma utopia.

Mas são mesmo assim as coisas do nosso mundo. Há um clássico magistério no rock’n roll: One night we are bathed in light; One day carried away in the storms .

(“Em algumas noites, nós nos banhamos em luz; em alguns dias, passamos por tempestades”  – Rush, The Speed of Love).

Pois são nossos, desta Diretoria eleita, os dias de tempestade.

Neste exato momento, discute-se o impeachment do atual Presidente da República (com a marca de quinze pedidos protocolados). Discute-se a possibilidade de se revisar a Constituição, em seu artigo 81, para proporcionar imediatas eleições diretas, se acaso vagar a Presidência da República. Ensaiam-se discussões para uma Reforma Tributária e para uma Reforma Política. Há os que saúdam os inegáveis benefícios da chamada “Operação LavaJato”, por descortinar e desbaratar um tipo de corrupção endêmica inerente ao nosso capitalismo de compadrio, com a qual convivíamos desde o fim do regime militar; como há, também, os que criticam métodos impróprios episodicamente associados ao combate à corrupção. Mas, porque nesses tempos estranhos já não se veem matizes, uns e outros criticam-se e se anulam reciprocamente, como se já não fosse possível perceber, a um único tempo, aquelas duas realidades. 

Em paralelo, tramitam ainda, no Congresso Nacional, duas reformas de perfil indelevelmente recessivo: a Reforma Previdenciária (da PEC n. 287/2016) e a Reforma Trabalhista (do PL n. 6.787/2016, agora PLC n. 38/2017). A primeira maltrata especialmente a condição do cidadão mais pobre; oportunista, passa a exigir para a aposentadoria do trabalhador rural uma idade mínima geralmente incompatível com a sua condição social e, para mais, estabelece no RGPS e nos regimes próprios uma idade mínima universal que, na prática, reservará aos brasileiros pífios seis meses de fruição da aposentadoria em estado saudável (já que, pelos dados da OMS, a expectativa de vida com saúde, no Brasil, é de 65,5 anos). Na Magistratura, a reforma da Previdência atinge a todos. Afetará os juízes aposentados, na medida em que manterá a taxação sobre inativos, proibirá acúmulos de aposentadorias com pensões e, impondo a migração de todos os juízes novos para o modelo da FUNPRESP-Jud, quebrará o pacto de solidariedade intergeracional, comprometendo a capacidade de pagamento do regime próprio. Afetará também os juízes mais novos − aqui compreendidos os que ingressaram no serviço público a partir de 14 de outubro de 2013 e todos aqueles que ingressarão daqui por diante −, na medida em que altera para pior o próprio regime complementar de previdência dos servidores públicos, retirando a natureza pública das respectivas entidades fechadas e admitindo, inclusive, licitações para a sua privatização. São fortemente afetados, enfim, juízes e desembargadores que já estavam no serviço público em 2013, porque exige a idade mínima de 65 ou 62 anos para que se aposentem com paridade e integralidade, sendo certo que essa idade mínima é progressiva, movendo-se para cima com o passar dos anos. A idade mínima passa a convergir para a idade máxima.

Já a reforma trabalhista selará o quadro de derretimento do Estado social brasileiro, reduzindo o papel da lei  − e, portanto, o do Judiciário trabalhista – na pacificação dos conflitos laborais. As inconstitucionalidades são patentes. Embora a Constituição só admita a flexibilização de jornada mediante negociação coletiva, o projeto prevê jornada de doze horas e acordo de banco de horas por mera adesão individual; prevê ainda a tarifação das indenizações por danos morais na Justiça do Trabalho, apesar da jurisprudência do STF, que já a supunha inconstitucional na extinta lei de imprensa (algo decidido no RE n. 396.386/SP); passará a prever, ainda, a única modalidade de negócio jurídico que estará parcialmente imune à jurisdição: a teor do parágrafo 3º que se quer agregar ao art. 8º da CLT, os acordos e convenções coletivas de trabalho somente poderão ser escrutinados em seus “elementos essenciais” (i.e., apenas quanto aos seus requisitos formais; jamais quanto ao conteúdo).

Não serão, portanto, dias fáceis. Mas serão os nossos dias. Os nossos dias de tempestade. A parte que nos cabe neste latifúndio da História.

II.

Para a Magistratura nacional, apesar das críticas de sempre (e especialmente alentadas, em tempos de Estado Mínimo, quando se cuida da Magistratura do Trabalho), os horizontes não têm sido menos nebulosos. Eis o nosso juramento: fazer cumprir a Constituição e as leis, mesmo quando as vozes das ruas e dos gabinetes parecerem querer, ao revés, pôr em xeque a atual ordem constitucional e legal. Exsurgem no horizonte ideias como “intervenção militar constitucional”, privatização da previdência pública, julgamentos plebiscitários, negócios jurídicos coletivos imunes à jurisdição… Aberrações jurídicas, quando não contradições nos seus próprios termos; e, nada obstante, cada vez mais “normalizadas” na retórica difusa da opinião pública e publicada! Nesse caos de conceitos, qual é o papel da Magistratura?

Respondo com Humberto Gessinger e os Engenheiros do Hawaii: a Magistratura

[…] É a bola da vez: o paraíso e a maçã. O arqueiro zen e sua fé pagã.

E o primeiro semestre de 2017 atesta essa afirmação.

Em praticamente cada uma das suas muitas semanas, um ou mais veículos de comunicação divulgaram matérias detratoras da condição pessoal dos juízes ou do regime jurídico da Magistratura nacional. Ora acerca do custo médio da Justiça brasileira (e, em particular, da Justiça do Trabalho, que custaria cerca 18 bilhões/ano, enquanto distribuiria apenas 9 bilhões/ano…). Ora sobre os supostos “privilégios” do cargo, como o foro privilegiado ou a pena de aposentadoria compulsória (desconhecendo, inclusive, o discurso institucional das associações nacionais de juízes em torno desses institutos, que não é necessariamente um discurso de mera preservação do status quo). Ora, enfim, sobre os ganhos de membros da Magistratura e do Ministério Público.

Não raro, falácias lançadas para o regozijo de críticos desinformados. Vejamos.

III.

No que diz respeito aos “custos” da Justiça do Trabalho e à sua própria razão de existir, vale dizer que a função constitucional a ela afeta não é a de gerar receitas, nem tampouco a de estimular a economia. A Justiça do Trabalho integra o Poder Judiciário nacional; e, como tal, não pode ser instrumentalizada para esta ou aquela política pública. O que a Justiça do Trabalho “gera” – ou deve gerar – é, por um lado, pacificação social e consciência cidadã. O Brasil convive com alguns nichos de cultura corporativa que supõem “tolerável” a sonegação de direitos trabalhistas, como se não estivéssemos tratando, as mais das vezes, de direitos humanos de segunda dimensão, que não podem ser simplesmente liquefeitos nas equações econômicas e nas estratégias de competividade. Para além disso, o que a Justiça do Trabalho também “gera” é a afirmação diuturna do Estado de Direito (que, no campo do trabalho, é o Estado Social), a concretização das liberdades (de patrões e empregados) e a densificação de um espaço essencial para o exercício da cidadania (inclusive na reclamação de direitos sociais sonegados, individual ou coletivamente).

A Justiça do Trabalho concorre, ademais, para uma maior segurança jurídica nas arenas da livre concorrência; isto porque, ao fim e ao cabo, somente a ela os bons empresários poderão confiar a sua última esperança: a de que, respeitando a legislação social, não serão vencidos, nos mercados nacionais, por concorrentes que a desprezem, conseguindo, com isto, oferecer produtos de igual qualidade a menores preços. Nada disso é mensurável em reais, dólares ou euros.

A rigor, valendo tal critério de “custo/benefício”, caberia extinguir não apenas a Justiça do Trabalho, mas todo o Poder Judiciário brasileiro, à exceção, talvez, da Justiça Federal comum. Com efeito, somente a Justiça Federal comum – porque cuida, entre outras coisas, de cobrar e executar tributos e outros créditos federais − arrecada mais do que gasta, de acordo com os dados do Justiça em Números. Nenhum outro, dentre os demais ramos da Justiça nacional, é, nesse sentido, “superavitários”. Aliás, entre 2009 e 2015, as despesas da Justiça do Trabalho elevaram-se em apenas 9%, enquanto as despesas na Justiça Estadual, p. ex., elevaram-se, por franca e reconhecida necessidade, à taxa de 42%. Serão todas extintas?

A “utilidade” da Justiça do Trabalho revela-se por outros dados, igualmente disponíveis no Justiça em Números. Em 2014, a Justiça do Trabalho “baixou” 4,2 milhões de processos, tendo recebido para julgar cerca de 4 milhões de processos. Julgou, portanto, mais casos do que recebeu, diminuindo seu estoque de processos pendentes. O Índice de Produtividade de Magistrados (IPM) apresentou alta de 18,3% entre 2009 e 2014. E a tendência é que o “custo” desses serviços tenda a cair: a Justiça do Trabalho é a mais informatizada dentre todas as justiças, sendo certo que, ainda em 2014, o percentual de casos apresentados por meio eletrônico já ultrapassava a metade das ações ajuizadas (57%), o que significa economia de recursos materiais e humanos.

A Magistratura do Trabalho também atende com excelência ao princípio da duração razoável do processo. Em 2014, p. ex., a sua taxa de congestionamento foi 21 pontos percentuais inferior à média geral do Poder Judiciário. É seguramente a Justiça mais rápida do país. E a mais produtiva: basta ver que, em relação a 2009 – e a despeito do forte crescimento no número de ações novas −, o total de processos baixados na JT aumentou ainda mais (= 26% de elevação), de modo que o Índice de Atendimento à Demanda, em 2014, fosse de 105,5% (o maior desde 2009). Em 19 de 24 tribunais trabalhistas, o IAD superou o patamar de 100% em pelo menos uma das instâncias. Em média, cada magistrado do Trabalho baixou o equivalente a 1.238 processos (média de 103 casos resolvidos por mês, por magistrado). Não foi diferente em 2015: a Justiça do Trabalho foi praticamente a única a experimentar aumento percentual do número de casos novos em relação ao ano anterior, com alta de 1,7%; mas foi também o único ramo da Justiça a aumentar o seu número de processos baixados, com alta de 1,2%. 

IV.

Quero falar mais, porém, da Magistratura nacional. E quero falar dos seus supostos “privilégios”. A esse propósito, os números são igualmente inapeláveis.

Entre 2008 e 2013, estimava-se que cento e vinte magistrados haviam se exonerado voluntariamente, enquanto trezentos e vinte e oito juízes aposentaram-se precocemente e outros oitenta e três candidatos aprovados em concursos para a Magistratura sequer tomaram posse. Se as condições são tão favoráveis, por que é tão elevado ─ e crescente ─ o desinteresse?  Esse estado de coisas sinaliza, para o futuro próximo, um rebaixamento da qualidade técnica média do magistrado brasileiro. Convém que o Parlamento perceba, a tempo, que a deterioração dos direitos e das garantias da carreira tende a sucateá-la; e, adiante, as consequências não sejam suportadas pelo cidadão.

Pesquisa levada a cabo pelo Conselho Nacional de Justiça (“Questionário Pesquisa de Satisfação de Magistrados”) já revelava, em 2013, que significativa maioria entre os juízes ouvidos manifestava elevada insatisfação com as condições de trabalho na carreira, seja na perspectiva vencimental, seja ainda na perspectiva estrutural (p. ex., quanto às condições de segurança, consideradas ruins ou péssimas por 77,5% dos pesquisados). O mesmo Conselho Nacional de Justiça indicava que, nesse ano de 2013, havia 150 juízes vivendo sob ameaça de morte.

Quanto aos subsídios, a despeito das normas do art. 37, X (que trata da revisão geral anual da remuneração dos servidores públicos), e do art. 95, III (que trata da irredutibilidade de subsídios), ambos da Constituição, o fato é que a Magistratura nacional experimenta atualmente, com índices otimistas (para janeiro/2017), 36,54% de perdas vencimentais (i.e., mais de um terço do seu poder de compra), tendo em conta o valor originário dos subsídios como fixados em janeiro de 2006.

No biênio 2015/2016, a situação tornou-se ainda mais grave, para a Magistratura e o Ministério Público, na comparação com as demais carreiras de Estado e afins da União. Praticamente todas essas carreiras tiveram reajustes: delegados da Polícia Federal, auditores fiscais da Receita Federal, defensores públicos da União, comandantes das Forças Armadas, auditores fiscais do Trabalho etc., totalizando impacto orçamentário de cerca de R$ 3,8 bilhões em 2017; e, nada obstante, contra o pleito da Magistratura, esgrimiu-se o argumento da austeridade fiscal, à vista do déficit projetado para 2017 e do ideário subjacente à EC n. 95/2016 (teto do limite de gastos). Ao fim e cabo, apenas os juízes e os membros do MP ficaram de fora. A última revisão parcial deu-se, para os juízes, com a Lei n. 13.091/2015; desde então, nada se concedeu, a despeito da perda acumulada de 17,99%, pelo IPCA-E.

Basta ver que, se atualizássemos o valor do subsídio do ministro do Supremo Tribunal Federal em janeiro de 2006 (= R$ 24.500,00), chegaríamos, pelo IPCA-E Geral acumulado até dezembro/2016 (88,32%), a nada menos que R$ 46.138,39 para janeiro/2017; e, no entanto, o subsídio atual do ministro do STF é de R$ 33.763,00. Jamais se pediu, portanto, mais do que se conquistara em 2006, com a fixação dos subsídios em parcela única, eliminando os chamados “penduricalhos”. A Magistratura clama, desde então, pela preservação da sua independência econômica e da sua dignidade social. A Magistratura só quer o que lhe foi prometido: subsídios dignos, em parcela única, com revisão periódica. Nada mais, nada menos. E, parafraseando Rui Barbosa, essa independência econômica ─ direi “liberdade” ─ não pode ser “um luxo dos tempos de bonança; é, sobretudo, o maior elemento de estabilidade das instituições”. 

Juízes não querem ser heróis; nem o serão, necessariamente. Exigem ─ e devem exigir ─ condições adequadas para o desempenho das suas elevadas funções. Decidirão questões vitais, decerto as mais vitais, para milhões de cidadãos e para toda a sociedade; querem fazê-lo com tranquilidade e paz de espírito. Não querem decidir como se tivessem de bater metas e mais metas pelo mero compromisso de cumpri-las, alienados do real valia do seu trabalho. A função judicante não pode ser secundária, não pode ser mecânica, não pode ser menor. Precisa ser responsável, precisa ser transformadora. Mas, para isto, precisa ser valorizada.

Serenidade, seriedade, simplicidade, desassombro. Que o juiz seja o Tom Sawyer moderno. E aqui não me aproprio diretamente do carismático personagem de Mark Twain; aproprio-me dele pelos versos eternos de Geddy Lee, na canção homônima do Rush : a sua mente não será jamais de aluguel, mas não o tenha por arrogante; e a sua reserva será a sua silenciosa defesa, contornando as vicissitudes diárias. Eis o juiz destes dias de tempestade.

V.

Ainda sobre a Magistratura, Sr. Ministro, peço licença para uma derradeira reflexão. E a inicio a partir da “Ode Triunfal” de Álvaro de Campos, o mais futurista dentre os três principais alter egos heterônimos de Fernando Pessoa. Sobre a modernidade, disse:

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

[…]

Ó coisas todas modernas,

Ó minhas contemporâneas, forma actual e próxima

Do sistema imediato do Universo!

Nova Revelação metálica e dinâmica de Deus!

Este é, com efeito, o tempo da técnica e das tecnologias. Da reinvenção dos métodos, da simplificação do complexo e da complexificação do simples. E isto se refletiu no modelo de gestão do Poder Judiciário.

A partir da Resolução CNJ n. 198/2014, os tribunais passaram a se alinhar à Estratégia Nacional do Poder Judiciário  ─ a que está em vigor, para o sexênio de 2015/2020 ─, que é pensada a partir de metas de medição continuada e de metas de medição periódica que definirão, no conjunto de uma cesta de indicadores e de iniciativas estratégicas diversas, qual é a “qualidade” da jurisdição universalmente prestada. Nos termos do art. 7º da Resolução 198, a execução da estratégia é da responsabilidade dos juízes de 1º e de 2º graus, assim como dos conselheiros, ministros e serventuários do Poder Judiciário. A decisão da estratégia, porém, deriva dos Encontros Nacionais do Poder Judiciário, de que participam os presidentes e corregedores dos tribunais e dos conselhos, mas onde não têm voz ou voto as próprias associações de magistrados (à exceção das associações nacionais, que geralmente têm somente voz). Há, portanto, um claro processo de alienação dos juízes de 1º e 2º graus, e notadamente dos primeiros, que praticamente não opinam – e tanto menos deliberam – sobre as estratégias que têm de executar. Nestes dias de tormenta, mais do que antes, técnica e gestão não podem significar alienação.

Por outro lado, à vista da Resolução CNJ n. 106/2010, que “[d]ispõe sobre os critérios objetivos para a aferição do merecimento para promoção de magistrados e acesso aos Tribunais de 2º grau”, pode-se bem dizer ao juiz que agora ingressa na carreira, com alguma simplificação, que, para obter boa classificação entre seus pares, ele deverá fundamentalmente se preocupar com dois predicamentos: a um, a produtividade, para que produza mais (e quanto mais, melhor); pode-se esperar, inclusive, que certo juiz acompanhe a produção de seus “concorrentes” mais imediatos, para assim tomar decisões racionais sobre a conservação ou a ampliação da sua produção bruta de decisões judiciais e afins, conforme as características da sua realidade, numa curiosa ressignificação do conceito de “mercado”. Além disso, deve ocupar-se também com a “qualidade” de suas sentenças; mas, nesse particular, bastará escrever bem, objetiva e claramente, e, para mais, seguir rigorosamente as súmulas do Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais Superiores (ainda que, a teor do artigo 103-A da Constituição, apenas as súmulas vinculantes, aprovadas por dois terços dos membros do STF, vinculam os demais juízes, e não todas as súmulas do STF e dos tribunais superiores).

Em síntese: “Juiz: produza muito, e produza uniformemente, seguindo súmulas e precedentes, ainda que a Constituição não os tenha por vinculantes”. Caminhamos para um modelo fordista-taylorista de produção judiciária. Esse modelo faz com que, a bem de melhor produtividade, os magistrados vejam-se tentados a olvidar os dramas humanos que estão por detrás das ações que julgam. E, no limite, sujeitem-se a toda sorte de exaustão, mental e física, na busca de números que assegurem bons lugares nas classificações por merecimento. Urge repensar tal modelo.

Com efeito, repetindo H. G. Wells, “um animal em perfeita harmonia com seu meio torna-se uma perfeita máquina”; mas, por outro lado, “não há inteligência onde não há mudanças, nem necessidade de mudanças”. Se a técnica neutraliza o pensamento crítico, já não se distingue, na ação humana, o elemento genuinamente humano. Ou, no lirismo punk paulista dos Inocentes, em canção de 1989:

Palavras queimam em desastre

Exterminaram toda a arte

Fechem os olhos dos jornais

Apunhalaram os animais.

[…]

[E] Quando a fumaça se dissipa no ar

Não se sabe quem é máquina…

Quem é homem…”

Nestes dias de tormenta, ainda queremos uma Magistratura de homens. Aliás, de mulheres e homens. Aliás, de pessoas. Não de máquinas.  

VI.

Quero falar, por fim, de recursos materiais e humanos. De condições de trabalho para juízes do Trabalho. Da estrutura da Justiça do Trabalho. Sabemos que estes dias são dias de restrições orçamentárias e de estrépitos de responsabilidade fiscal  (conquanto o recente Programa de Regularização Tributária, ou “novo REFIS”, e a própria Reforma Trabalhista representem inacreditável renúncia fiscal); e que tratar de aumento de unidades, cargos e funções neste momento é algo absolutamente impopular, notadamente sob os ventos da Emenda n. 95/2016, do “Teto de Gastos Públicos”  (que aliás desafiou, por parte da ANAMATRA, o ajuizamento da ADI n. 5633) . Faria bem, portanto, se nós ouvíssemos o sábio conselho do injustiçado Edgar, no final do Quinto Ato, em “Rei Lear” (de William Shakespeare):

Ao peso destes tempos

Temos que obedecer.

Dizer o que devemos;

Não o que é bom dizer.

O mandato que a nós foi confiado, porém, impõe que eu fale. Já são conhecidas as distorções na distribuição da força de trabalho entre o 1º e o 2º grau de jurisdição: enquanto 92% dos processos judiciais tramitam nas primeiras instâncias dos tribunais, apenas 83% dos servidores da Justiça atuam nas unidades da primeira instância. Há, por evidente, um descompasso estrutural a se equacionar, que passa pelo fiel cumprimento da Resolução CNJ n. 219/2016, o que está bem confiado à Presidência do Conselho Nacional de Justiça. Na Justiça do Trabalho, sequer os marcos da Resolução CSJT n. 63/2010 estão adequadamente atendidos em diversos pontos do país. Decorre dessa deficiência uma série de problemas ciliares, como o crônico déficit de fixação de juízes substitutos e das respectivas assistências: enquanto algumas regiões do país já têm a questão bem resolvida, outras lutam ainda para minimizar a condição estrutural desfavorecida dos juízes substitutos. Todas essas deformidades estruturais devem ser identificadas, sopesadas e solucionadas. É curial, sobretudo, que tenham curso imediato os projetos de lei voltados à criação de novas unidades judiciárias e de novos cargos de juízes e desembargadores, que já estão no Congresso Nacional, para ao menos minimizar os riscos de inanição estrutural e orçamentária que, em 2016, levou alguns tribunais do trabalho a declararem um inédito “estado de emergência”. E, para esse fim, a ANAMATRA coloca-se à inteira disposição do Parlamento, do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Superior da Justiça do Trabalho.

Por fim, restam-me as necessárias palavras de gratidão. Deve-se a Low Witt a receita poética da plenitude, multicitada nas redes sociais: que nunca nos falte a estrada que nos leva, a força que nos levanta, o amor que nos humaniza e a razão que nos equilibra. “O pão de todo dia e o verso de cada poema”. É o que quero saldar.
Sobre a estrada que me leva, e que me conduziu até aqui, devo prestar uma singela e sincera homenagem a Germano Siqueira, meu querido amigo, altivo e pertinaz presidente da ANAMATRA no biênio 2015-2017. Tenho dito sempre, e faço questão de repeti-lo agora: sem o seu “pecado original”, praticado em finais de 2014 ─ quando você me sondou para a sua vice-presidência ─, eu provavelmente não estaria aqui, neste púlpito, no dia de hoje. Você também esteve no olho do furacão. Suportou-o como poucos, e não foram poucas as cicatrizes, para você e para a sua família. Sou disso testemunha ocular. E, se vale agora a nossa penitência, nem sempre nós lhe dedicamos o mais compreensivo dos olhares. Mas que valha então a palavra deste seu amigo, já dita ontem, para nos redimir a todos: você combateu o bom combate, terminou o caminho e guardou a fé. Obrigado, em nome da Magistratura do Trabalho.

Tenho de agradecer, também, aos queridos colegas da Diretoria de 2015-2017, que igualmente me socorreram, palmo a palmo, na difícil tarefa de pavimentar esta longa estrada que agora culmina com a posse da nova Diretoria. Dirijo esse agradecimento especialmente aos que ficam comigo, e àqueles que se agregam ao bom combate. Para vocês, sobre os dias tempestuosos que nos esperam, empresto da banda Unbrokken ─ de uma emblemática canção chamada The Challenge ─ as mesmas palavras que gostaria de dizer a todos os nossos colegas, inclusive aqueles que não nos apoiaram, porque agora somos a ANAMATRA de todos:

Vento na face, enquanto bate o coração
É o começo de uma nova vida
E o Ontem não existe mais.  

Sobre a força que me levanta, tenho de render uma justíssima e emocionada homenagem aos meus queridos pais, Regina Guimarães e Sebastião Feliciano, que estiveram comigo em todos os momentos da minha vida, dos mais tenebrosos àqueles mais gloriosos. Nunca, jamais me faltaram. E me valeram, nos quarenta e quatro anos de vida, o mais sólido alicerce que um ser humano poderia ter. Se e quando falhei, meus queridos pais ─ porque falhei, e ainda falharei ─, terá sido por minha exclusiva culpa e responsabilidade. Vocês foram perfeitos. Lembram-me Mario Quintana, no poema “As Mãos de meu Pai”: vocês dois fizeram acender em mim os melhores gravetos, contra os piores ventos. E os fizeram arder, fulgir, com o milagre das suas mãos. Muito obrigado.

Enfim, sobre o amor que humaniza e a razão que equilibra, dirijo uma palavra de profundo carinho, amor e gratidão a meu filho, Gabriel Feliciano, e ao meu anjo guardador, Luana Alves.  Você, Gabriel, recolhe a minha esperança de que, quando todos nós passarmos, o país estará nas melhores mãos. Muito será cobrado da sua geração; mas eu creio piamente que vocês estarão à altura das nossas muitas expectativas; e, em especial, das expectativas cívicas. Vocês podem e farão.

E a você, Luana, porque palavras me faltariam, e porque será você o meu porto seguro, inicio esses dois anos já com desculpas pela ausência, dedicando-lhe as melhores linhas de Vicente de Carvalho:

Não me culpeis a mim de amar-vos tanto,

Mas a vós mesma e à vossa formosura,

Pois  se vos aborrece, me tortura

Ver-me cativo assim de vosso encanto. […]

VIII. Para mais, nestes tempos adversos, é içar as velas e seguir com fé. A montante, temos um patrimônio político, ético e jurídico de quarenta anos, desta ANAMATRA construída com tantas lutas, revezes e regozijos. A jusante, há muito pela frente a ser feito. Pela Magistratura, pela Justiça do Trabalho, pelas cores do Brasil.

Não serão dias fáceis. Com Cecília Meireles, posso bem antecipar “mágoas sombrias, momentâneos lampejos, vagas felicidades e inatuais esperanças”. Sim, dias de tormenta. Mas serão os nossos dias. Dentro deles viveremos, dentro deles choraremos. Dentro deles, meus amigos, triunfaremos.

Muito obrigado.

*******

…É isto!

A partir desta coluna, amigo leitor, a coluna “Juízo de Valor” passa a ser mensal, considerando-se o imenso lote de responsabilidades que passou a pesar sobre os ombros deste humilde colunista desde quarta-feira última. Adiante, quando houvermos bem cumprido a missão que nos foi destinada, voltaremos à tradicional quinzenalidade. De todo modo, o e-mail abaixo segue à sua disposição, para críticas, ponderações e sugestões de temas.

Mês que vem… abuso de autoridade! Juro. Até porque, em tempos de duplas desafinadas (Joesley/Wesley), esse assunto está estranhamente voltando à tona. Com toda força.

*Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.

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