Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo continua nesta quinta (18/6), das 16 às 18 horas
A participação da sociedade civil no combate, políticas públicas e dilemas. Esse foi o mote dos debates do segundo dia do Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo, nesta quarta (17/6), evento transmitido simultaneamente pelo canal da TV Anamatra no Youtube e pelas redes sociais da entidade Facebook e Instagram (@anamatraoficial).
Na fala de abertura, o diretor de Cidadania e Direitos Humanos da Anamatra, Marcus Barberino, que coordenou o painel, destacou a importância da participação dos representantes da sociedade civil nos debates acerca do trabalho escravo no Brasil. Na visão do magistrado, a atuação das instituições representadas no painel é muito complexa. “Precisamos compreender como que a política de combate ao trabalho escravo se desenvolveu, como ela recebe críticas e como ela ganhou visibilidade para a sociedade, tanto para os trabalhadores, como para o sistema de justiça do Estado, como para empregadores e toda a sociedade civil que se engaja nesta causa”.
Para o juiz, a luta contra esse tipo de exploração se caracteriza como política de estado. Barberino lembrou que a Constituição Federal é mais que um conjunto de normas, pois apresenta uma análise sociológica e estrutural da sociedade brasileira. “É uma etnografia do quem somos, que diagnostica os nossos problemas desde a nossa fundação e reconhece o caráter multicultural e multirracial da sociedade brasileira e prescreve soluções e comandos a seguir. Esses comandos tem a ver exatamente esse diagnóstico cultural e sociológico, que resulta do reconhecimento da nossa profunda desigualdade”.
O magistrado ressalta que os comandos apontados pela Constituição são muito claros, especialmente para aqueles que servem ao público e para as mais variadas camadas da sociedade, inclusive para aquela que detém a propriedade. Essa propriedade, de acordo com a CF, tem função social. “A propriedade tem direito relacional com as outras dimensões do viver e existir. Isto implica na proteção da dignidade da pessoa humana, em uma atividade econômica sustentável, social e ambientalmente. Tudo isso é dever coletivo de todos nós brasileiros”.
Relação sociedade civil x Estado – A coordenadora do projeto “Escravo, Nem Pensar!” da agência de notícias Repórter Brasil, Natália Susuki, afirmou que a sociedade civil não apenas participa da discussão, do desenvolvimento e da formulação de políticas públicas, mas atua como protagonista, não apenas sobre a erradicação do trabalho escravo. “A sociedade civil protagoniza ações que subsidiam ações que posteriormente vão subsidiar o Estado a refletir, a desenvolver tecnologias, visando direcionar aquilo que vai entregar para a população ferramentas de proteção do trabalho, direitos, serviços”. A jornalista explica que, no caso do trabalho escravo, esse protagonismo se deu por meio de uma interação, nem sempre cooperativa, mas colaborativa, entre Estado e sociedade.
Susuki lembrou que o entendimento de que o trabalho escravo é algo inaceitável, que se trata de uma violação dos direitos humanos e deve ser combatido nem sempre foi colocado da forma como se entende atualmente. “Isso foi construído ao longo de décadas, a duras penas. O Estado só reconhece a existência do problema em 1995, quando as medidas de combate começam a ser institucionalizadas. Até então, o Estado se omitia, dissimulava práticas e foi coparticipante de violações dos direitos humanos”.
No entendimento da repórter, em meio ao processo de redemocratização e a edição da Constituição de 1988, a forte atuação da sociedade civil foi fundamental para que o entendimento criminal da prática fosse reconhecido. “A sociedade civil ensinou para o Estado o que era esse fenômeno. Fenômeno este que não era nomeado, que era aceito, disperso, porém arraigado na cultura brasileira”.
Natália também falou sobre o importante trabalho realizado pelo portal Repórter Brasil, que foi fundado em 2001 e que se aprofundou na temática do trabalho escravo. “Na época, não havia veículos que tratassem do tema de forma sistemática. Atribuo à organização a elaboração e a consolidação desse imaginário do que é trabalho escravo hoje”.
Atuação junto às empresas - Em seguida, a diretora Executiva do Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Inpacto), Mércia Silva, enfatizou que não se pode esquecer que o Brasil viveu quase 400 anos de trabalho escravo e que a destruição de terras no país ocorreu de forma desigual e discriminatória. “Essa herança e essa noção de que ‘isso me pertence’, fazem com que hoje o povo brasileiro tenha muita dificuldade de separar o público do privado. Essa elite que foi beneficiada se sente dona daquilo que é publico”.
Para Mércia, essa noção de hierarquia entre os seres humanos gera racismo. “Esse racismo não é apenas de cor, mas também tem a ver com o local de nascimento, sotaque, tamanho. Essa separação se reflete na noção do que é o trabalho, do que é o direito do outro e do que é, inclusive, a condição de oferta de trabalho”.
A coordenadora do InPACTO enfatizou a importância da participação efetiva da sociedade civil na construção de medidas combativas, citando a criação, em 2005, do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, que foi assinado por empresas que assumindo um compromisso de combate ao trabalho escravo. Já em 2014, lembra Mércia, foi criado o InPACTO, como uma ferramenta para auxiliar essas as empresas e possibilitar maior fiscalização . “A estratégia era formar uma equipe técnica dedicada e que pudesse agregar mais informações e tecnicidade, abrindo um espaço em que as empresas pudessem trazer as dúvidas, já que se trata de um desafio novo”.
A respeito das novas tecnologias de enfrentamento de autoria do Instituto, a coordenadora destacou, inclusive com o auxílio de vídeo ilustrativo, o Índice de Vulnerabilidade InPACTO, que possibilita reconhecer o risco de trabalho escravo em cadeias produtivas para elaborar planos de ação mais eficientes, por meio da análise de informações socioeconômicas dos municípios onde se produz ou se faz negócios. O propósito do índice é tratar esse grave problema global a partir de soluções locais para garantir a dignidade humana. Essas informações permitem que as empresas priorizem ações de prevenção e de remediação, em conformidade com os princípios orientadores para empresas e direitos humanos.
Por fim, Mércia Silva, fez questão de ressaltar que a população negra é a mais afetada pela escravidão contemporânea. “A gente tem que entender que esse grupo sempre foi desprovido do acesso ao chamado estado protetor e sempre teve um estado que cobrava. Precisamos começar a reverter essas lógicas”.
Nesse sentido, a doutora contou suas próprias experiências, como mulher negra. “Demorei para entender que metade dos ‘nãos’ que eu recebia tinham a ver com a minha cor, com meu endereço ou meu sobrenome. Tive que transformar minha dor em expertise. Tive que deixar de sentir a minha dor para ajudar aquele outro a deixar de ser um violador”.
Visibilidade - Representado a Comissão Pastoral da Terra (CPT), o Frei Xavier Plassat falou da história da pastoral que, segundo ele, se confunde com a própria história da construção do combate ao trabalho escravo no Brasil. “A CPT nasce no início dos anos 70, para ser uma pastoral da denúncia, inicialmente no interior da Amazônia, em uma época em que imperava o regime militar”. Nessa época, narrou Plassat, a igreja se colocou em confronto com o latifúndio. “Demos visibilidade e nome ao crime, até então evitado, ou pior, considerado com naturalidade”.
Na avaliação de Plassat, os anos evidenciaram o fato de que tirar alguém da escravidão é essencial e importante, mas não resolve a questão da erradicação. Nesse ponto, a CPT, juntamente com outras entidades da sociedade civil organizada, explicou, passaram a pensar o problema de forma estrutural, detectando, por exemplo, estereótipos que estão no topo da cadeia de exploração, como a população preta e parda. “A miséria e a vulnerabilidade levam categorias de trabalhadores a acreditar em qualquer promessa”, observou.
Ao final de sua exposição, Frei Xavier defendeu que o combate ao trabalho escravo não se limite à questão da liberdade formal, mas sim seja um processo integrado de erradicação e de reconstrução de possibilidades de trabalho. “Precisamos juntar forças para combater o retrocesso. Nenhum valor da dignidade humana pode ser colocado atrás de qualquer interesse econômico. E nisso os magistrados do Trabalho têm um papel considerável. Continuaremos de mãos dadas”, anunciou.
Participações especiais – A programação desta quarta foi marcada por participações especiais, entre elas as das atrizes Bete Mendes e Cristina Pereira, representantes do Movimento Humanos Direitos (MHud). A atuação do MHud é voltada à divulgação de causas sociais, por meio da cooperação com outras organizações já existentes, para ampliar a visibilidade sobre os crimes cometidos contra os direitos humanos no Brasil e no mundo.
“A circunstância em que vivemos hoje é preocupante. Começou um processo de desfazimento dos direitos trabalhistas, buscou-se ridicularizar a importância da Justiça do Trabalho e se insinuou até pela sua própria extinção. Cabe manter acordada a esperança, lutar pelo direito e pela dignidade do trabalhador,” ressaltou Mendes.
“Sabemos da importância da Justiça do Trabalho e do papel da Anamatra neste tema”, apontou Cristina Pereira. A atriz falou da atuação do MHud desde a sua fundação, em 2003. “Não podíamos ficar indiferentes. Como cidadãos, nos sentimos interpelados. Havia e há uma questão ética que nos impulsiona. Onde um ser humano é pisoteado, toda a humanidade é pisoteada”, apontou.
O auditor fiscal do Trabalho Marcelo Campos também ressaltou a importância do tema do Seminário e da relevância da Fiscalização do Trabalho. Falou, ainda, da evolução do conceito de trabalho escravo, que passou a ser vinculado à supressão da dignidade da vítima e de seus direitos e não de sua liberdade de ir e vir. “Se um trabalhador, urbano ou rural, tem suprimidos o conjunto de seus direitos laborais, desde a formalização até aqueles relacionados à saúde e à segurança, nós estamos diante de uma vítima de uma das hipóteses do trabalho escravo contemporâneo”, apontou Campos, ressaltando, também, a evolução jurisprudencial relativa ao tema, em especial da Justiça do Trabalho.
Confira a seguir a íntegra da programação de hoje.