Estudiosos debatem evolução do conceito de trabalho escravo contemporâneo

Discussão marcou primeiro dia do Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo

Estudiosos debatem evolução e atualidade do conceito de trabalho escravo contemporâneo Discussão marcou primeiro dia do Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo Teve início, nessa terça (16/6), o Seminário Trabalho Escravo Contemporâneo, realizado pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) e pela Escola Nacional Associativa dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Enamatra). O evento, transmitido simultaneamente pelo Instagram, Facebook e Youtube da Anamatra, segue até esta quinta (18/6), sempre a partir das 16 horas. Com o tema central “Trabalho Escravo Contemporâneo: trabalho digno, dilemas e perspectivas”, o Seminário reúne acadêmicos e especialistas para analisar a jurisprudência, as políticas até aqui adotadas pelo Brasil e formas de combate a esta grave mazela social.

No painel realizado na abertura, o tema debatido foi “Trabalho escravo contemporâneo: atualidade do conceito de trabalho análogo a de escravo, aplicação, consciência legal”. Na fala inicial, a diretora de Formação e Cultura da Anamatra e diretora da Enamatra, Luciana Conforti, que atuou como moderadora, afirmou que um dos objetivos do evento é resgatar o protagonismo do Judiciário trabalhista no combate ao trabalho em condições análogas à escravidão.

Luciana Conforti lembrou que, apesar de a alteração do conceito do crime de trabalho análogo ao escravo, que consta no Art. 149 do Código Penal, ter sido realizada em 2003, após a solução amistosa no caso José Pereira, perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, as tipificações, ou seja, as condutas que foram incluídas no tipo penal, são o resultado de experiências que já vinham sendo praticadas no Brasil desde 1995, quando, oficialmente, o presidente da República reconheceu que havia essa prática no país. “O artigo incorporou a experiência da fiscalização e a jurisprudência trabalhista que já se encaminhava para a proteção da dignidade do trabalhador e do meio ambiente de trabalho antes mesmo de 2003”.

Conforti chamou a atenção para o fato de existirem diversos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional para alteração desse conceito, retirando as condições degradantes de trabalho e a jornada exaustiva do tipo penal, que tem como pena a reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. “Isso traz muita preocupação, porque, na verdade, desatualiza o conceito com relação às práticas contemporâneas.”

Análise histórica - O doutor em Antropologia, professor e líder do Grupo de Pesquisa Trabalho Escravo Contemporâneo na UFRJ, Pe. Ricardo Rezende Figueira, fez uma análise histórica do combate ao trabalho escravo até a alteração do conceito, em 2003. O professor afirmou que, no início dos anos 90, após graves casos ocorridos no Estado do Pará, houve formulação de denúncias junto à Organização das Nações Unidas (ONU) acerca da omissão do governo brasileiro diante desses crimes. “A omissão era geral. Era um assunto tabu, não se falava nem se discutia, não fazia parte das pautas de discussão”.

Para que o combate fosse eficaz, segundo Ricardo Rezende, foi necessária a descrição das condutas que caracterizavam o tipo penal, para facilitar a fiscalização do Trabalho, a atuação do Ministério Público do Trabalho e a até a interpretação na Justiça do Trabalho, além das punições no âmbito penal. Por isso, já em 1992, começou a se formular, por meio de intenso diálogo entre membros do Judiciário e integrantes de entidades militantes, o texto que seria aprovado apenas em 2003, que foi considerado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) um modelo a ser seguido.

De acordo com Figueira, até 1995, a luta contra essa prática estava centrada na restrição de liberdade, mas, a partir de 1992, houve uma construção de conceito que levava em consideração um elemento ainda mais importante, que é dignidade humana ofendida. “Ofender a dignidade humana é tratar a pessoa como coisa, é desumanizar o outro, isso é uma situação análoga a de escravo. O Poder Judiciário e a Magistratura trabalhista precisam estar atentos a isso, os direitos humanos evoluem, eles não podem retroceder”, enfatizou.

Pioneirismo - A desembargadora do Tribunal Regional do Trabalho da 8ª Região, Suzy Elizabeth Cavalcante Koury, professora Doutora de Pós-Graduação e líder do grupo de pesquisas CNPq "Emprego, Subemprego e Políticas Públicas na Amazônia", falou sobre o pioneirismo da jurisprudência do TRT paraense. A 8ª Região, segundo ela, mesmo antes de 2003, vem atuando na proteção da dignidade dos trabalhadores.

Na visão de Koury, as formas de trabalho escravo são diferentes nos dias de hoje se comparadas ao que era enfrentado no passado. “Não haverá arma na cabeça, não veremos correntes, mas haverá, sim, esse exercício de poder sobre o outro, de uma tal forma que o outro será subjugado a se tornar ‘coisa’, que é o que temos visto”.

Para a desembargadora, é de suma importância que os magistrados abandonem estereótipos que conduzam a uma naturalização da escravidão, passando a compreender as novas formas de trabalho e de escravidão, que surgem com o advento das novas tecnologias, atentando especialmente às condições de vulnerabilidade e à violação dos direitos humanos básicos. “Nós temos, sim, mecanismos para conseguirmos combater essa escravização contemporânea. Para isso, o juiz precisa ir a fundo e não se impressionar com a forma e sim com o fato”. Por fim, a desembargadora chamou a atenção para a preservação da competência da Justiça do Trabalho, pontuando que não se pode abrir mão de competência, que é poder.

Pesquisas acadêmicas - A diretora geral do Instituto de Ciências Jurídicas da Universidade Federal do Pará (UFPA), Valena Jacob Chaves Mesquita, falou de pesquisas acadêmicas que participa voltadas à temática do trabalho escravo contemporâneo. “O objetivo é formar juristas que conheçam a realidade da escravidão contemporânea, para que tenham consciência desse problema que também é jurídico”, disse.

Nessa linha, falou de pesquisa voltada à análise da jurisprudência do Tribunal Regional Federal da 1ª Região - com jurisdição nos estados do Acre, Amazonas, Amapá, Bahia, Distrito Federal, Goiás, Maranhão, Minas Gerais, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Roraima e Tocantins – que revelou uma “dificuldade” de conceituação do crime, mesmo após a alteração do Código Penal (art. 149), feita em 2003, já que essa jurisprudência ainda vincula à restrição da liberdade de locomoção.

“Estamos vendo os malefícios da jurisprudência penal na jurisprudência trabalhista”, alertou a painelista. Segundo a professora, as situações retratadas nos autos de fiscalização do Trabalho, que caracterizam o crime previsto no Código Penal, não vêm sendo consideradas pelos juízes federais. “O bem jurídico tutelado pelo legislador não é apenas a liberdade de ir e vir, mas sim a dignidade do trabalhador”, defendeu, inclusive com base em entendimento majoritário do Supremo Tribunal Federal (STF) nesse sentido.

A professora de Direito do trabalho da Universidade Federal de Minas Gerais UFMG) Lívia Mendes Miraglia centrou sua explanação na metodologia adotada pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da FDUFMG, da qual é uma das coordenadoras e que é voltada, em especial, à análise da jurisprudência trabalhista, incluindo a do Tribunal Superior do Trabalho (TST), sobre a qual tratou na sua exposição.

De acordo com dados da pesquisa, muitas decisões não mencionam o art. 149 do Código Penal, tampouco a expressão “trabalho em condições análoga às de escravo”. “Em alguns casos, a Justiça do Trabalho não entendeu que aquela situação indigna seria trabalho escravo contemporâneo ou trabalho degradante”. Outro problema, na avalição da pesquisadora, é a própria conceituação do que seria “jornada exaustiva”, muitas vezes interpretada como de natureza quantitativa. “Não se trata de quantidade, mas de intensidade”, observou.

Ao final de sua exposição, a pesquisadora chamou à reflexão a necessidade de aumentar o número de condenações, fazendo jus ao arcabouço jurídico existente. “Eu não discordo sobre a necessidade de empatia, mas não precisamos contar apenas com isso. A lei se faz presente e é necessário aplicá-la para romper com a estrutura de poder que continua escravizando”, Para Miraglia, é necessário desconstruir, no âmbito penal, a conceituação do crime ligada apenas ao cerceamento do direito de ir e vir.

Confira a seguir a íntegra da programação de ontem. 



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Dr. Marco Aurélio Marsiglia Treviso
Diretor de Assuntos Legislativos da Anamatra
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