Recentes acontecimentos no município de Unaí, no Estado de Minas Gerais, dos quais resultaram mortos três fiscais do Ministério do Trabalho e o motorista que viajava com eles, trazem à discussão um tema que ultimamente tem ocupado corações, mentes e páginas da imprensa de grande circulação. Trata-se da presença do trabalho escravo em nosso país. A equipe de fiscalização abatida a tiros durante o percurso que a levaria a uma fazenda sobre a qual havia suspeitas de prática de relações trabalhistas irregulares não se movia, naquela ocasião, a partir de denúncias de trabalho escravo. Porém, de acordo com o que a imprensa tem veiculado, aparentemente alguns empresários rurais da região estariam envolvidos com essa prática em outros Estados. A ocorrência de acontecimento tão chocante quanto audacioso provoca algumas reflexões.
Aprendemos que a escravidão foi abolida no Brasil no ano de 1888. Certo ou errado? Depende. A escravidão foi legalmente extinta pela princesa Isabel, no dia 13 de maio daquele ano. O trabalho forçado, a escravidão por dívida e a privação do elementar direito cidadão de ir e vir ainda existem no nosso país, apesar de inscritos no artigo 149 do Código Penal Brasileiro como crimes. Ou seja, pode-se falar, sem risco de erro, que, na prática, o trabalho escravo ainda existe em nosso país - e em várias partes do mundo.
A condição do trabalhador escravizado é a de alguém que não pode decidir por si próprio, não é sujeito de direitos e é tratado como mercadoria. O trabalhador que se encontra nessas condições é aliciado em locais distantes daquele onde vai trabalhar. Geralmente, é enganado pelo empreiteiro ou ``gato``, que promete contrato assinado em carteira, boas condições de trabalho, moradia e alimentação dignas etc. A realidade se mostra bem diferente quando o trabalhador se depara com maus-tratos, fome, doenças e, o que é pior, seu salário é retido quase que inteiramente com a desculpa de que é preciso ressarcir o patrão pelas despesas feitas com a sua viajem até a fazenda. O trabalhador, então, é obrigado a se submeter aos cálculos nem sempre honestos do patrão e, se tentar deixar o trabalho, é castigado, muitas vezes com a morte.
Em artigo recente, o padre Ricardo Rezende, da Rede Social Justiça e Direitos Humanos e do Movimento Humanos Direitos, indica que o número de casos conhecidos de escravidão rural no Brasil oscila entre 25 e 40 mil pessoas, em pelo menos 10 Estados, e que a incidência de tais situações se encontra especialmente em fazendas dedicadas à pecuária, fruticultura e usinas de açúcar e álcool, a maioria localizada na Região Amazônica. Os trabalhadores escravizados emigram de localidades onde há grande miséria e falta de opções de trabalho, como os Estados do Maranhão, Piauí, Goiás e Tocantins, entre outros, e os empresários que praticam esse crime geralmente são pessoas poderosas. Dados do Grupo de Pesquisa sobre Trabalho Escravo da UFRJ informam que o Estado com maior incidência dessa prática é o Pará, onde ocorreram 144 entre os 240 casos identificados no ano de 2003. Ali também se encontram 20 empresas e pessoas condenadas por esse crime, conforme as fontes indicadas anteriormente.
Algumas frentes e iniciativas vêm tornando mais visível essa chaga e menos impunes seus autores. Desde os anos 70, a Comissão Pastoral da Terra vem denunciando crimes desse tipo e atualmente também promove cursos e encontros em convênio com sindicatos de trabalhadores rurais e com a CUT. O Ministério do Trabalho mantém o Grupo Especial de Fiscalização Móvel, que tem agido de forma corajosa e nem sempre tem recebido o apoio necessário ao cumprimento da missão que move seus membros até o interior das fazendas a fim de resgatar trabalhadores escravizados e obrigar os patrões a regularizar a situação funcional e a indenizar os prejudicados.
A OIT está apoiando uma pesquisa por meio da qual se pretende recompor a cadeia produtiva e de comercialização de quem tenha usado trabalho escravo, a fim de que a sociedade civil possa realizar campanhas de boicote aos produtos que tenham essa proveniência. A mesma OIT lançou este ano uma Campanha pela Erradicação do Trabalho Escravo. No ano passado, foi criado o Comitê de Combate ao Trabalho Escravo na região Norte e Noroeste Fluminense, em seminário organizado pelo MST, a Uenf, a UFF, a Comissão Pastoral da Terra e outras entidades, e realizado na Universidade Cândido Mendes, em Campos dos Goytacazes.
Trabalho escravo hoje em dia? Existe sim, e muito mais perto do que imaginamos.