A recente reforma do Poder Judiciário alterou de forma significativa a competência da Justiça do Trabalho. Não se trata apenas de uma ampliação de sua competência, mas uma verdadeira “alteração de eixo” do Poder Judiciário. O objetivo é centralizar na Justiça do Trabalho a decisão de todas as questões que dizem respeito ao trabalho e aos temas a ele relacionados, como o sistema e a representação sindical, a greve e a fiscalização do trabalho. Além disso, a reforma procurou deixar inquestionável a competência da Justiça do Trabalho para temas que já eram de sua competência, como apreciar pedidos de indenização por danos materiais e morais decorrentes da relação de trabalho.
De fato, não havia sentido que temas relacionados ao trabalho fossem decididos por diferentes órgãos do Poder Judiciário. Por isso, a Magistratura do Trabalho apóia as alterações promovidas porque trazem racionalidade aos serviços prestados pelo Estado, evitam decisões contraditórias e centralizam as questões de trabalho em um órgão especializado e funcionalmente preparado para decidi-las. A esses aspectos positivos, contudo, também se contrapõe uma preocupação com a necessidade de melhorar os recursos da Justiça do Trabalho para atender ao acréscimo de atividade.
Entre todas as alterações produzidas uma tem sido muito polêmica e merece aqui melhor análise. O texto constitucional anterior estabelecia como atividade principal da Justiça do Trabalho “conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores”. Essa curiosa forma de distribuir competência atrelava o órgão judiciário à peculiaridade das pessoas que faziam parte do processo judicial. Ainda assim, sempre se entendeu que essa competência em realidade era material (competência para decidir questões decorrentes da relação de emprego), sob aparente designação de competência em razão das pessoas.
A Reforma do Judiciário alterou o próprio critério de designação de competência para atribuir como principal tarefa da Justiça do Trabalho “processar e julgar as ações oriundas da relação de trabalho”, não mais se referindo às pessoas. Mas, o que é “relação de trabalho”? É essa a dúvida que ainda assombra toda a área trabalhista.
Nos meios jurídicos, não há como negar, sempre se definiu “relação de trabalho” como um gênero do qual “relação de emprego” é espécie. A relação de emprego é a prevista no art. 3º da CLT, subordinada, pessoal e onerosa. A relação de trabalho é todo tipo de prestação de serviços efetuada por pessoa física. Certamente, ao utilizar a expressão “relação de trabalho”, a Constituição quis deixar patente que não importa o tipo de relação contratual que permeia o trabalho prestado (de emprego, autônoma, ou qualquer outra), pois todas as questões que dele decorram devem ser decididas pela Justiça do Trabalho.
Uma corrente jurídica, contudo, defende a tese de que de a Justiça do Trabalho não possui competência para “relações de consumo”. Por isso, sustenta que quando a relação de trabalho seja prestada para consumidor final ou em mercado de consumo, a competência seria da Justiça Comum. O tema é polêmico e suscita acesos debates.
Parece-nos, contudo, que a premissa de que parte essa corrente jurídica é equivocada. Para estabelecer a competência da Justiça do Trabalho é necessário verificar se a controvérsia é oriunda da relação de trabalho, e não decodificar outras peculiaridades dessa relação, pois a Constituição não distingue relações de trabalho de consumo das relações de trabalho que não sejam de consumo.
A se entender que para configurar relação de trabalho é necessário que o tomador dos serviços não seja consumidor final, algumas conseqüências aberrantes seriam produzidas. Um jardineiro que prestasse serviços eventuais, oferecendo-os livremente no “mercado de consumo” não poderia socorrer-se da Justiça do Trabalho casos seus direitos básicos de trabalho fossem desrespeitados. Um médico que preste serviços autônomos para uma cooperativa médica, por sua vez, poderia pleitear direitos na Justiça do Trabalho. Qual a razão lógica ou jurídica para tal distinção? Há razão para que questões relativas ao trabalho do médico sejam decididas na Justiça do Trabalho e as questões do jardineiro na Justiça Comum? Apenas a (maior?) hipossuficiência de uma das partes pode ser o único critério de delimitação da competência dos órgãos judiciários?
Todo trabalho merece proteção. Em uma sociedade globalizada em que o trabalho se precariza e os profissionais “autônomos” se proletarizaram, concentrar todas as controvérsias em um só ramo especializado do Poder Judiciário, com afinidade com as normas de proteção do trabalho, é mais do que contribuir para a racionalidade dos serviços do Estado é reconhecer a relevância, a dignidade e a função social do trabalho que, qualquer que seja, está a merecer a mais rápida e racional resposta possível dos órgãos jurisdicionais.