Participei, entre 16 e 18/03/2005, em São Paulo do Iº seminário nacional sobre a nova competência da Justiça do Trabalho, promovido pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho. Foram três dias, 900 juízes participantes, duas dezenas de palestrantes(juízes, sociológicos, filósofos, ministros e até políticos de carreira).
Saí com uma certeza: realmente a Justiça do Trabalho não será mais a mesma. Mas a mala veio pesada com milhares de dúvidas e preocupações. Como disse para meus queridos alunos, entrei tonto, saí atordoado. Murphy, na lei da discussão, espelha pragmaticamente o problema: "da discussão nasce a escuridão". Vive-se um clima de revolução, nos moldes anunciados por Grijalbo Coutinho, no recente livro da Anamatra sobre o tema, exatamente na primeira linha da apresentação. Um clima bom, de mudança, com a contribuição rica de tantos pensadores, sérios e crentes nas suas versões das coisas. Das mil e tantas dúvidas e preocupações, escolho duas para comentar. Não vai aí qualquer crítica.
Primeira: em artigo do final do ano passado, levantei o problema da perda de foco da Justiça do Trabalho, pela destruição ou diluição de seus princípios norteadores. Errei? Acho que não. Assisti, embasbacado, a um dos juristas expositores, um nome de peso e de belo discurso, passar os 50 minutos de sua palestra convencendo uma platéia paciente, de 900 juízes trabalhistas, em geral aguerridos, de que operaram, nos últimos anos, um processo trabalhista que não têm qualquer princípio específico. Jogou no lixo minhas duas últimas aulas antes do seminário, dedicadas a demonstrar aos alunos que o processo do trabalho tem princípios próprios e que lhe dão a celeridade e a eficácia conhecidas. Felizmente, ele deixou a pista da bela montagem engendrada para a palestra: há um princípio sobre o qual não dava para tergiversar. E simplesmente não o mencionou. Trata-se da jóia almejada pelos processualistas comuns: o princípio da irrecorribilidade das decisões interlocutórias, ele sozinho capaz de dar um empuxo apreciável ao emperrado processo civil. Tenho de refletir sobre minhas aulas futuras.
Segunda: desde que o filósofo austríaco Kelsen, querendo rivalizar com os faraós, lá pelos anos 30 do século passado, inventou a famosa pirâmide kelseniana, dispondo as normas segundo uma ordem de prevalência hierárquica, não tínhamos assistido a uma tentativa tão exuberante de fazer o urubu cuspir para cima. Para os que não são da área, explico a pirâmide. A Constituição está acima e manda na lei. A lei, que obedece à Constituição, manda no decreto. O decreto, que obedece à Constituição e à lei, manda na portaria. E assim por diante. A chefe, a Constituição, é única e fica no cume da pirâmide.
Pois bem, a chefe disse: a Justiça do Trabalho deve julgar as ações oriundas das relações de trabalho. O que se deve fazer? Obedecer, dizem os sóbrios. Mas há vários dizendo que ação oriunda de relação de consumo não é da competência da Justiça do Trabalho. E não aparentam sobriedade, pois realmente a Constituição disse que são as ações oriundas da relação de trabalho e não as oriundas das relações de consumo que vão para a Justiça do Trabalho. Motivo da confusão: muitas relações de consumo e de trabalho são inseparáveis. Constituem um todo, numa espécie de relação hermafrodita. Ou simbiótica, se preferirem. Nesses casos, são mutuamente inclusivas: sem uma não há a outra. Ademais, a Constituição, nada dizendo até agora, remetia as ações decorrentes de relações de consumo para a Justiça comum, pelo princípio da residualidade. O próprio Código de Defesa do Consumidor - CDC, muito obediente ao definir serviço, excepcionava as relações trabalhistas(até agora entendidas como apenas as de emprego) e que eram remetidas expressamente para a Justiça do Trabalho por determinação constitucional.
Ora, a quem se deve obedecer? Segundo Kelsen e sua pirâmide, à Constituição.
Nossa Constituição escolheu como marco explícito de definição de competência a relação de trabalho(agora não é mais relação de emprego!) e não a relação de consumo. Presente aquela(de trabalho), fixada está a competência da Justiça do Trabalho, independentemente da definição que o CDC dê a serviço. Se, de alguma forma ou modo, ele conflita com a Constituição, dançou! Está derrogado neste particular aspecto.
O que precisa ser feito é identificar, em cada caso específico, se se está diante de uma relação de trabalho, da qual se origina a ação. Se sim, ainda que grudada a uma relação de consumo, deve-se ir à Justiça do Trabalho.
Atente-se para o fato de que uma relação de trabalho não se define dizendo que não é relação de consumo, como pretendem os menos sóbrios. Isso é o mesmo que dizer que algo é homem porque não é macaco. Ora, relação de trabalho não é relação de consumo, não é relação de casamento, não é relação de parentesco, não é relação de compra e venda, não é, nem mesmo, charuto cubano.
Deveremos definir relação de trabalho, através de seus traços distintivos e característicos (alguns já se aventuram a falar em trabalho humano como objeto do negócio jurídico, pessoalidade, dependência econômica, continuidade, ...) e, estando presente, a Justiça do Trabalho se deverá declarar competente para julgar a ação dela oriunda. Mais ainda: independentemente do pólo da relação que a esteja ajuizando.
Alguns disseram: ora, até numa compra e venda há prestação de trabalho. Óbvio. Como se poderá negar isso? Mas foi o trabalho que foi comprado? Ou ele foi uma circunstância necessária de viabilização da compra e venda? Na relação corretor-vendedor, por exemplo, não há compra e venda, há prestação de trabalho, nítida. O litígio decorrente desta relação (o corretor querendo receber sua comissão, o vendedor querendo reclamar parcela retida do pagamento do bem vendido, por exemplo) deverá ser levado à Justiça do Trabalho, se o corretor for pessoa física ou uma daquelas pessoas jurídicas que se resumem a um proprietário, uma esposa detentora de 1% do capital social e um bloco de notas. Se a ação decorrer de um defeito do trabalho vendido(ou comprado!), também é a Justiça do Trabalho que a deverá processar e julgar.
No livro já mencionado da Anamatra há uma frase antológica, atribuída a Bismarck: se os homens soubessem como são feitas as salsichas e as leis, comeriam menos das primeiras e respeitariam menos as segundas. O que fariam, é de se perguntar, se soubessem como são interpretadas?