"Bailarina inconstante e volúvel, a justiça troca de par no decorrer do jogo das contradições da história. Ora a vemos bailar com os poderosos, ora com os fracos, ora com os grandes senhores, ora com os pequenos e humildes. Nesse jogo dinâmico todos querem ser seu par e, quando ela passa para outras mãos, logo será chamada de prostituta pelos relegados ao segundo plano. A justiça sobrevive a todos os ritmos e a todos os pares, como se pairasse em um lugar onde os choques e os conflitos não existissem". Com esse "baile de abertura", Roberto Aguiar formula uma das mais críticas abordagens sobre o sentido da justiça.
Essas palavras chamam à reflexão sobre a idéia do justo presente no imaginário coletivo. Entre as pessoas do povo predomina a falsa idéia de que muitas injustiças são praticadas pelos juízes em razão de brechas na lei. Supõe-se que a lei possui uma verdade única e assim caberia ao juiz desvendá-la. Sua função consistiria em reproduzir de forma mecânica, automática, silogística e inflexível o sentido previamente contido na lei. Essa idéia é reforçada pela imagem da justiça representada por uma mulher com os olhos vendados, para que não veja as conseqüências do que faz.
Ora, uma lei pode conter vários significados, mesmo que incoerentes entre si, possuindo sentido equívoco ou plurívoco. Bem por isso o ato de julgar não se resume à reprodução das escolhas do legislador, pois este utiliza termos abertos, genéricos, imprecisos e muitas vezes ambíguos, produto de uma sociedade multifacetada e fragmentária, com demandas múltiplas, onde o legislador é chamado a intervir em tudo, usando a lei em profusão para atender à pressão dos acontecimentos.
Não pode o juiz incorrer em injustiça alegando comodamente erro da lei ou imperfeição do legislador. Essa postura é conveniente para quem prefere ter a consciência anestesiada e não se angustia com a questão da justiça e com as conseqüências sociais das decisões que adota. De fato, a lei não é direito nem se confunde com a justiça, é simples texto, que somente ganha vida quando aplicado às situações concretas, através da incidência de um texto sobre um contexto.
Isso se dá porque em sua atividade o juiz exerce enorme poder criativo, pois o ato de interpretar não importa uma única resposta correta para todas as situações da vida. Cabe ao juiz sopesar interesses, valorar a lei, reavaliar opções do legislador, criando a partir daí a norma individual e concreta. A decisão não tem simples caráter declaratório e não cabe ao julgador apenas descobrir um direito previamente contido na lei ou a idéia de justiça nela envolvida. Ao decidir o juiz está diante de múltiplas possibilidades e terá que fazer escolha de uma entre as diversas interpretações.
Surge a questão acerca da justificação da escolha realizada. O primeiro compromisso do juiz é com a justiça. Seu dever é encontrar a solução que considera mais justa no caso concreto. A idéia do justo não é estabelecida a priori, não é algo que preexista na lei. O justo surge do caso concreto. E, então, para demonstrar que a decisão é justa e que não decorreu de puro arbítrio, é indispensável que seja apresentada a partir de uma interpretação adequada e corretamente justificada. O juiz deve, passo a passo, encontrar as idéias de justiça à luz do caso a decidir, na idéia de que o justo não está patente na lei, mas é algo que o próprio juiz constrói.
Assim apresentada, a justiça, a bailarina de que fala Roberto Arguiar, "não será de todos e de ninguém, não se porá acima dos circunstantes, mas entrará na dança de mãos dadas com os que não podem dançar.? E assim é que a busca da justiça deve estar inserida "na luta daqueles que se empurram e gritam para que seus ritmos e músicas sejam ouvidos: os ritmos e músicas da vida, da alegria, do pão e da dignidade?.
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(*) Mestre e Doutorando em Direito, presidente do TRT da 22a. Reg. (PI)