Sofrimento dos trabalhadores de frigoríficos não pode ser banalizado, aponta presidente da Anamatra


Em webinário sobre o tema, juíza Noemia Porto defende direito fundamental ao meio ambiente de trabalho seguro

A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, participou, nessa quarta (15/7), do Webinário “Trabalho em Frigoríficos no Contexto da Pandemia”. O evento foi realizado pela Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra).

Em sua intervenção, a presidente afirmou que a dimensão constitucional democrática de direito não pode ignorar a situação dos trabalhadores e das trabalhadoras em frigoríficos. Segundo Noemia Porto, a ocorrência de acidentes de trabalho, tão comuns nessa atividade, representa substancial desafio à realização de direitos fundamentais. “Ao lado do que já conhecíamos como acidentes do trabalho, temos em curso uma pandemia que atingiu e contaminou os trabalhadores que seriam os responsáveis pela atividade essencial de produção alimentar. Sem dúvida, uma atividade essencial, mas que tem sido desenvolvida ao custo da saúde e das vidas de muitas pessoas”, apontou

Noemia Porto recordou que, em termos jurídicos, a Constituição Brasileira de 1988 assegura aos trabalhadores urbanos e rurais o direito à redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; bem como seguro contra acidentes do trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização por este último devida em caso de dolo ou culpa. “Em termos constitucionais, o meio ambiente, enquanto bem essencial à sadia qualidade de vida, foi alçado ao patamar de direito fundamental. São essas as normas que o sistema de justiça deve se compromissar em cumprir”.

A presidente citou o documentário “Carne e Osso”, produzido pela ONG Repórter Brasil em 2011 (confira ao final), que tentava visibilizar a descrição dos trabalhadores sobre a quantidade definida para a produção que era e é medida por segundos, por minutos, por hora, por jornada. “Os trabalhadores revelavam no documentário ter efetiva consciência de quanto deveriam produzir em cada uma dessas frações horárias para corresponder à meta estabelecida pelo empregador. O cenário denunciava a instrumentalização das pessoas e não de respeito a elas como sujeitos de direitos”.

Segundo Noemia Porto, temas como os limites da jornada de trabalho, o desgaste do corpo do trabalhador e da trabalhadora imposto por ritmos extenuantes de labor e, ainda, o assédio moral, e agora a contaminação pelo novo coronavírus são constantes, e infelizmente persistentes, na realidade concreta do trabalho em frigoríficos. “A fiscalização do trabalho no Brasil há tempos alerta que a lógica que se adotou foi eminentemente matemática e levando-se em conta o ponto de vista da produção, sem nenhum questionamento ou preocupação com o custo (humano) que resultaria de se manter tal sistema. O trabalho em frigoríficos era e é sinônimo de matemática da produção”.

A presidente da Anamatra também apontou outro problema que, em sua avaliação, transcende o problema dos frigoríficos que é o volume de transtornos e sofrimentos mentais decorrentes do trabalho, cuja incidência tem aumentado bastante, em face da competitividade intensa e da produtividade acelerada. “Em tempos de teletrabalho, nas categorias nas quais isso é possível, há uma ideia de sobrecarga, desgaste mental, ansiedade, cansaço generalizado. A despeito disso, as empresas empreendem, até hoje, processo de negação, isto é, a depressão não é culpa do trabalho, mas, sim, tem causas em circunstâncias particulares e pessoais de cada trabalhador”, alertou.

Conta não fecha – Na opinião da presidente, a indústria frigorífica brasileira, que conquistou o mercado internacional, é vista como orgulho para o país, gera diversos empregos formais e possui cadeia produtiva muito longa, além de propiciar arrecadação para o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Mas, para a fiscalização do trabalho, os trabalhadores, os sindicatos, o Ministério Público do Trabalho e o Poder Judiciário Trabalhista, aparece uma faceta diferente, a de um setor econômico que deixa um rastro de trabalhadores doentes. “Há até hoje uma conta que não fecha: as empresas produzem mais doentes do que a cobertura propiciada pela arrecadação de valores pagos a título de seguro social”.

O agravante dessa situação, segundo Noemia Porto, é o descaso do setor econômico e de infortúnios que atingem a vida dos trabalhadores, não apenas no âmbito profissional, mas também familiar e social, o que revela um problema do conjunto da sociedade e não apenas de um setor. “O sistema econômico privado se sustenta a partir da estrutura pública colocada à disposição da livre-iniciativa. São ilusórias, portanto, a crença e a defesa de uma ausência estatal. Aliás, ocorrente a omissão da regulação jurídica (do sistema de proteção social), ou sua insuficiência, isso permite o aprofundamento das desigualdades geradas sistematicamente pelo capitalismo”, alertou.

Ao final de sua exposição a presidente a ressaltou o papel do direito, no regime democrático, de indicar atuações econômicas dentro de certas balizas constitucionais, centradas na liberdade e na igualdade. Segundo a magistrada, trata-se da própria normatividade da Constituição. “O direito não constrói, por si, segurança e bem-estar no trabalho. Todavia, sua autonomia e a normatividade da Constituição exigem compromisso vertical (dos poderes constituídos) e horizontal (envolvendo todas as relações entre particulares) com os direitos fundamentais. A questão do trabalho em frigoríficos é uma questão de compromisso por não se permitir a banalização do sofrimento’”.

Participantes - Também participaram do webinário, conduzido pelo presidente da ANPT, José Antonio Vieira de Freitas Filho, a ministra do Tribunal Superior do Trabalho e membro do Ipeatra Delaíde Arantes, a presidente do Ipeatra e procuradora regional do Trabalho, Margaret Carvalho, a diretora Jurídica do Ipeatra e desembargadora do Tribunal Regional da 4ª Região (TRT 4/RS), Brígida Barcelos, o médico do Trabalho e Analista Pericial do MPT, Elver Moronte, e os integrantes do Projeto Nacional Frigoríficos da Procuradoria-Geral do Trabalho e procuradores do Trabalho em Passo Fundo (RS) e Guarapuava (PR), respectivamente, Lincoln Roberto Cordeiro e Priscila Dibi Schvarcz.


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