A Emenda Constitucional número 45, que deu nova redação ao art. 114 da Constituição da República e atribuiu competência à Justiça do Trabalho para julgar demandas até então sob a jurisdição da Justiça Comum, exige providências urgentes, face a repercussão que terá em relação aos feitos em curso.
Com efeito, estabelece o artigo 87 do Código de Processo Civil que a competência é determinada no momento em que a ação é proposta, sendo irrelevantes as modificações do estado de fato ou de direito ocorridas posteriormente, salvo quando suprimirem o órgão judiciário, alterarem a competência em razão da matéria ou da hierarquia.
Significa dizer que a contar dessa data, todas as ações que versarem sobre relações de trabalho, representação sindical, exercício do direito de greve e ações de indenização por dano moral ou patrimonial decorrentes da relação de trabalho, passaram ao âmbito da jurisdição trabalhista.
Como se trata de ampliação da competência material da Justiça do Trabalho, as novas disposições passam a viger imediatamente, atingindo as demandas que se encontram em curso nas mais diferentes esferas e instâncias do Poder Judiciário.
A emenda constitucional não estabeleceu regras de direito transitório. Portanto são necessárias medidas urgentes para que seja possível aplicar, com o menor prejuízo possível, aos processos em curso, as novas regras de competência.
Imaginando-se haver processos na fase de instrução, conclusos para sentença, em grau de recurso, em execução ou até mesmo aguardando providências cautelares perante a justiça comum, não seria nenhum exagero vislumbrar uma tarefa hercúlea ao judiciário trabalhista, que terá de debruçar-se sobre os dados da realidade para oferecer saídas à imensa gama de situações haverão de surgir até que todos os processos sejam encerrados, com a entrega da efetiva prestação jurisdicional.
O objetivo do presente estudo é, portanto, investigar as conseqüências da promulgação da Emenda Constitucional número 45, em 08 de dezembro de 2004, relativamente aos feitos pendentes, nos demais órgãos do Poder Judiciário.
Competência jurisdicional
A jurisdição é um dos poderes de Estado. Ter jurisdição é ter poder para declarar, mediante provocação do interessado e em caráter vinculante, o direito a ser aplicado nas situações em que ocorrerem conflitos intersubjetivos de interesses na sociedade.
Embora a jurisdição, enquanto Poder de Estado não comporte divisão , por uma questão de política de administração da justiça o Estado pode limitar o exercício desse poder, distribuindo-o entre seus juízes e tribunais, através de competências diferenciadas para o julgamento de demandas.
Ruy Cirne Lima, discorrendo sobre competência em direito administrativo, afirma que ela é a “medida do poder que a ordem jurídica assina a uma pessoa determinada" .
Competência seria, para o referido
autor, os limites dentro dos quais alguém pode exercer
o poder e esse conceito não difere do utilizado pelas
demais áreas do direito público.
José Frederico Marques, seguindo a linha das
preleções de Enrico Tulio Liebman, afirma que
competência “é a medida da jurisdição, uma vez que
determina a esfera de atribuições dos órgãos que
exercem as funções jurisdicionais” . Ser competente,
para ele, é ter poder para instruir e julgar demandas
submetidas à apreciação do Poder Judiciário.
Para dividir a jurisdição entre os diferentes sujeitos que exercem funções de Estado, é necessário o estabelecimento critérios. Em determinadas situações a lei leva em consideração o valor econômico em litígio, em outras, a qualidade do sujeito envolvido na demanda, ou ainda, a matéria ou o local onde ocorreu do fato, assim por diante.
Chiovenda , buscando estabelecer critérios para a distribuição da jurisdição, identificou três grandes orientações a serem observadas para esse fim. Segundo ele a competência pode ser distribuída considerando-se os critérios objetivo, funcional e territorial.
Critério objetivo
Pelo critério objetivo leva-se em consideração aspectos relativos aos sujeitos ou à relação jurídica trazida à apreciação do Poder Judiciário. Trata-se da divisão do poder considerando-se o conteúdo da demanda, que tanto pode ser o valor da causa quanto a matéria sob julgamento ou a qualidade de um ou ambos os litigantes no processo .
Pelo critério objetivo as ações são distribuídas entre juízes e tribunais de tipos diferentes. É o caso de atribuir ao Supremo Tribunal Federal as demandas envolvendo crimes de responsabilidade do Presidente da República, ou à Justiça Militar as demandas envolvendo crimes militares, à Justiça Federal as causas de interesse da União, assim por diante.
É também o caso de distribuir causas entre juízes e pretores a depender do valor econômico da demanda ou, considerando a matéria ventilada no processo, distribuir ações entre diversos juízos especializados (v.g. varas especializadas em direito de família, falências, causas de interesse da fazenda publica, etc).
Critério funcional
Pelo critério funcional a causa é distribuída tanto entre juízes e tribunais do mesmo tipo quanto de tipo diferente, tomando-se em consideração a atividade que haverá de ser desenvolvida no processo.
A lei poderá levar em consideração a natureza da atividade do juiz no processo , fixando competências para cognição ou execução, assim como poderá distribuir competência entre diferentes tribunais para proferir a decisão na fase de conhecimento (primeiro grau de jurisdição) ou para apreciar recursos ordinários (segundo grau de jurisdição) ou para apreciar recursos de natureza extraordinária (Recurso de Embargos, Recurso de Revista e o Recurso Extraordinário, etc).
A lei também pode atribuir ao mesmo juízo o julgamento da ação em primeiro e em segundo grau de jurisdição como no caso do art. 34 da Lei 6.803/80, ou como a recente alteração no art. 897-A processo do trabalho, que deu aos embargos declaratórios natureza infringente
Critério territorial
O critério territorial é, na verdade, um critério secundário. Definida a competência considerando-se as pessoas em lide, a matéria na demanda, o valor da causa ou a atividade que o juiz no processo, a lei ainda poderá estabelecer regras para distribuir processo entre juízes com idênticas competências, mas em exercício em áreas diferenciadas.
Trata-se de um critério que considera o espaço geográfico para distribuir a competência, tomando-se em consideração o local onde mora um ou ambos os litigantes, onde está situada a coisa, ou onde ocorreu o fato, assim por diante.
Através desse critério, as causas são distribuídas entre juízes e tribunais do mesmo tipo, ou seja, após concluir-se de que o julgamento de uma demanda seria de um órgão do Poder Judiciário (v.g., Justiça do Trabalho), passa-se a verificar, dentro de uma área geográfica, qual a comarca para qual a demanda deve ser encaminhada. É um exame final que somente será efetuado após ter sido verificada a competência tomando-se em consideração os critérios anteriores.
Por fim e, embora não sendo relevante para o estudo proposto no presente ensaio, apenas a guisa de registro, seria ainda de se falar em uma subdivisão do critério territorial decorrente da distribuição.
Trata-se do caso em que, depois de definida a competência territorial, restassem ainda dois ou mais juízos dentro da mesma localidade com idênticas competências (v.g. como nos casos da existência de diversas varas especializadas na mesma matéria).
Nesse caso seria necessário distribuir a demanda para, após o despacho da inicial ou, a depender da corrente de interpretação dos arts. 219 e 263 do Código de Processo Civil, ser efetuada a citação , para o estabelecimento da competência.
Competência absoluta e competência relativa
A competência pode ser absoluta ou relativa. A depender dos interesses a serem protegidos, a lei pode estabelecer regras diferenciadas para a modificação da competência. Dizem-se relativas, as regras de competência que podem ser modificadas por convenção das partes ou na ocorrência de determinados fatos processuais e, absolutas, as que não admitem modificações.
Dispõe o Código de Processo Civil que “a competência em razão da matéria e da hierarquia é inderrogável por convenção das partes; mas estas podem modificar a competência em razão do valor e do território, elegendo o foro onde serão propostas as ações oriundas de direitos e obrigações” .
Embora a lei faça referência apenas à impossibilidade de modificação da competência em razão da matéria e da hierarquia, é unânime entre os doutrinadores de que também não é possível a modificação da competência em razão da pessoa .
A competência em razão da matéria, da hierarquia e da pessoa não pode apenas ser modificada por convenção das partes. Ela não pode ser alterada em hipótese alguma. Nem mesmo por conexão, continência ou prevenção.
A competência, nesses casos, é requisito de validade da relação processual e a sentença proferida por juiz absolutamente incompetente é anulável, porque falta ao juiz ou tribunal, poder para decidir a demanda objetivamente considerada, sendo inválidas eventuais decisões e sentença.
Critério de competência na emenda Constitucional n. 45
A Constituição da República, promulgada em 1988, adotou o critério objetivo (pessoas em lide) ao estabelecer a competência da Justiça do Trabalho para julgar demandas propostas entre “trabalhadores e empregadores”.
A emenda número 45 continuou utilizando o mesmo critério e, embora mantendo em seu primeiro inciso a pessoa como elemento determinativo da competência, elegeu a matéria como ponto nuclear para os demais itens.
Nesse sentido o primeiro inciso do artigo 114 estabeleceu a competência do judiciário trabalhista para julgar “as ações oriundas da relação de trabalho (matéria), abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (pessoas)” (item entreparênteses acrescentado, não constante da redação original).
Já os demais incisos optaram unicamente pela matéria ao eleger “as ações que envolvam exercício do direito de greve”;(inc. II) “...sobre representação sindical, entre sindicatos, entre sindicatos e trabalhadores, e entre sindicatos e empregadores”;(inc. III) “...mandados de segurança, habeas corpus e habeas data, quando o ato questionado envolver matéria sujeita à sua jurisdição;”(inc. IV) “ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho”;(inc. VI) “ações relativas às penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho;” (inc. VII) e, por fim “a execução das contribuições sociais”(inc. VIII).
Diante do exposto se vê que a emenda constitucional número 45, utilizou o critério da matéria, para ampliação da competência da Justiça do Trabalho.
Ações em curso perante a Justiça Comum
Promulgada a emenda constitucional número 45, em 08 de dezembro de 2004, todas as demandas enquadradas nas novas hipóteses do art. 114 da Constituição da República passaram automaticamente para a competência da Justiça do Trabalho, face o disposto ao art. 87 do Código de Processo Civil.
Trata-se da observância da regra do direito brasileiro, que confere eficácia imediata e plena às disposições legislativas que alterem competência em razão da matéria.
Operada a transformação legislativa, a justiça comum passou a ser incompetente para instruir e julgar essas demandas e, eventual sentença que venha a ser proferida poderá ser anulada “ex-officio” pelo juízo trabalhista, salvo se tenha ocorrido trânsito em julgado, quando poderá ser rescindida por iniciativa da parte interessada, face o disposto no art. 485, II do Código de Processo Civil .
Não se trata de nulidade do processo, mas das decisões proferidas pelo juízo incompetente. É decorrência do disposto no `PAR` 2o do art. 113 do Código de Processo Civil , estabelecendo que no caso de incompetência absoluta somente os atos decisórios do processo serão nulos.
São urgentes, portanto, as medidas a serem adotadas pelo Poder Judiciário para uma rápida implementação da transição entre os juízos, a fim de evitar prejuízos econômicos ao Estado com gastos em processos que poderão ser anulados em um futuro próximo.
Sem prejuízo ao debate que deve ser feito em relação à diversidade de procedimentos entre o processo do trabalho e o processo civil nessa fase de transição, é também de fundamental importância o estabelecimento de um amplo debate entre os operadores jurídicos para interpretar a amplitude da nova redação do art. 114 da Constituição da República e estabelecer os precisos limites da nova competência trabalhista.
Essa discussão deve ser rápida, tendo em mente o fato de que a tramitação de processos perante juízos incompetentes causa prejuízos não apenas ao Estado, mas especialmente aos jurisdicionados, que tem no tempo um inimigo a ser combatido incessantemente.