1. Sobre o sindicato, o Direito e as utopias
Diz um jurista italiano, talvez Romagnoli, que o Direito do Trabalho tem vários pais. Aliás, um deles, curiosamente, foi um Papa: Leão XIII, autor da famosa “Rerum Novarum”. Mas o pai realmente importante foi sem dúvida o sindicato.
Foi ele quem pressionou o Estado, a ferro e fogo, para que saísse de seu laissez-faire e enfrentasse a questão social. Foi também ele que inventou a greve e a convenção coletiva, virando de cabeça para baixo a própria idéia de contrato.
Mas de onde terá saído, então, o próprio sindicato?
Talvez se possa dizer que ele nasceu de mãe solteira - a fábrica concentrada. Foi ela que abrigou em seu ventre aquelas vidas antes dispersas, para melhor controlá-las e racionalizar a produção. Foi também ela que - sem saber - acabou reconstruindo as solidariedades desfeitas .
É importante observarmos as condições peculiares daquele parto.
A fábrica – como uma verdadeira gestante – a cada dia crescia mais. Os trabalhadores, tal como os produtos, eram cada vez mais numerosos e homogêneos. As relações de trabalho, antes instáveis, iam se fazendo duradouras e previsíveis.
Foi esse corpo, inseminado por uma forte questão social, que deu à luz a resistência coletiva. Sofrendo as mesmas dores, e sonhando sonhos iguais, os trabalhadores se viram uns nos outros, como num espelho, e foram aprendendo a conspirar.
É curioso notar como o próprio Direito também foi marcado pela mesma realidade, guardando os traços – digamos assim – de sua avó.
Basta observar as suas normas uniformes, abundantes e detalhistas, fazendo lembrar a produção em massa e em série; os seus princípios fortes e perenes, como que reproduzindo aquelas relações que se estendiam no tempo. Além disso, sempre foi um Direito de empregados, de preferência formais (daí a nossa CTPS, identificando e enquadrando o seu portador).
Com o tempo, os modos de resistência e as normas de proteção – antes espontâneos e livres - foram se institucionalizando cada vez mais. Nos anos gloriosos do capitalismo, tornaram-se peças importantes do próprio sistema, articulando-se com as políticas que produziram o Estado do Bem-Estar.
Assim, mais do que subprodutos do capitalismo, tanto o sindicato quando o Direito que conhecemos são resultado de um seu modo de ser, representado por aquelas formas específicas de produção (de bens) e reprodução (social). E é exatamente esse modo de ser que está vivendo um processo de transformação.
Hoje, como sabemos, a fábrica se move e se reparte em mil lugares. As relações de emprego – repetindo os novos produtos - são precárias, heterogêneas e fugazes. E o que é pior: muitas vezes, já nem são de emprego. O empregado é expulso, como lixo; e, quando tem sorte, é reciclado, voltando ao ciclo produtivo como autônomo (real ou falso), terceirizado ou simplesmente informal.
Assim, e como já escrevemos em outro lugar, o trabalhador já não percorre uma estrada em linha reta, contínua e ascendente, que o levava do aprendizado ao último degrau de um ofício. Um dia pode ser pedreiro, depois servente, em seguida camelô, mendigo e de novo pedreiro ou malabarista de rua. Sua vida é construída de recortes e emendas, rupturas e colagens.
Ao mesmo tempo, muda o perfil do Estado, que agora se ajusta a uma nova ideologia e pratica uma outra política econômica. Muda, na verdade, todo o modelo, embora o capitalismo, na essência, continue o mesmo. Tudo isso põe em crise o sindicato. E a crise do sindicato também é a do Direito.
É importante notar, a propósito, a relação entre o sindicato e o Direito. O sindicato não foi apenas o pai que o gerou – mas, como todo pai, ajudou a formá-lo, participando de seu crescimento. Ao mesmo tempo, deu-lhe força, adicionando à sanção do Estado a sanção da greve. Por sua vez, o Direito soube lhe retribuir, criando patamares mínimos ao contrato coletivo, punindo atos anti-sindicais e protegendo até as formas de autotutela.
Pois também essa relação entra em crise. Filho e pai se abandonam. Nem o sindicato consegue produzir e fortalecer as normas estatais, nem estas o protegem como antes. Cada vez mais a lei é descumprida. Ao mesmo tempo, pouco a pouco, os patamares mínimos se vão .
No entanto, toda essa crise faz nascer, paradoxalmente, novas utopias. E não são utopias delirantes, desligadas do mundo ou saudosas de um passado que já não existe. Elas consideram os novos modos de produzir, mas tentam reverter o seu teor precarizante. E, embora estejam apenas germinando, carregam talvez a semente de uma transformação maior, já não apenas do modelo, mas de todo o sistema.
Mas o que se imagina, em linhas gerais?
Para começar, o sindicato terá de reconstruir, em níveis maiores, as solidariedades desfeitas. E abrir as suas portas para a diversidade, que hoje inclui desempregados, subempregados, cooperativados, estagiários e pequenos autônomos, acolhendo essas vidas picotadas e sem rumo.
Assim, deixará de ser um sindicato dos pequenos lugares, e das pequenas bandeiras, interagindo com a sociedade e o mundo. Suas metas já não serão apenas trabalhistas, envolvendo temas como a ecologia, direitos das minorias e modos alternativos de produção. Sua arma não será tanto a greve, mas a denúncia e o boicote.
Talvez desse modo o sindicato consiga realizar a outra utopia, a do Direito. Tal como ele próprio, esse Direito terá de ser maior do que nunca foi, capaz de proteger o trabalhador em seus múltiplos percursos pela vida.
É claro que são lutas difíceis – mesmo porque batem de frente com as próprias tendências psicológicas e culturais do homem pós-moderno, que vive o individualismo, a descrença e o medo. Mas já se podem notar alguns sinais positivos.
A CUT, por exemplo, avança cada vez mais no campo da economia solidária. O CONLUTAS, grupo dissidente da mesma CUT, tenta reunir trabalhadores e excluídos de todo o gênero. No campo do Direito, a doutrina já vem ensaiando, há alguns anos , as primeiras proposições - sobretudo nos países europeus.
Pois bem. É exatamente nesse ponto que entram as novas regras de competência. Elas poderão ser o primeiro passo para a construção de um novo sindicato, sintonizados e ao mesmo tempo indignado com a nova realidade do mundo do trabalho. Ao mesmo tempo, ajudarão a construir uma nova Justiça e um novo Direito.
Essa nova luta exige uma leitura ampliativa das novas regras. E isso, naturalmente, também traz riscos.
Um deles é o de que os juízes que antes optavam pela relação de emprego, em casos de fronteira, comecem a desqualificar a relação para a de autonomia, especialmente se houver pedidos sucessivos.
Aliás, a propósito, não custa notar o que vem acontecendo com a subordinação e a sua moeda de troca – o salário. Antes, um e outro se alargavam cada vez mais, não só por obra da doutrina, mas na prática dos juizes. Agora, reduzem-se até por via legal. Com a nova competência, será preciso reverter essa situação.
Outro risco diz respeito ao volume de processos, que podem obstruir as pautas, atrasando a prestação jurisdicional. Mas até isso pode ser atenuado, seja através das ações coletivas, seja (se isso vier a ocorrer) com a imposição de multas pelo juiz do trabalho, como há mais de dez anos vem defendendo Antônio Álvares da Silva . O fundo de indenizações trabalhistas, que está para sair, será outro instrumento importante, dando mais efetividade à execução.
De mais a mais, e como também já escrevemos, a pior demora não é essa – mas aquela outra, invisível, representada pelos processos que não chegam sequer a serem ajuizados... E é preciso notar que os contratos civis tendem a ser cumpridos com muito mais freqüência que os de trabalho.
2. A nova competência e a reforma sindical
Num momento em que todos se preocupam com as questões práticas de uma competência que já aconteceu, pode parecer uma perda de tempo confrontá-la com uma reforma que pode nem vir a acontecer.
Aliás, essa é a atual aposta da classe patronal, que resolveu abrir guerra à reforma, ou pelo menos aos seus aspectos mais positivos – como é o caso da substituição processual. Pelas últimas notícias , um novo consenso só seria possível se se garantisse, antes, a moeda de troca – representada pela flexibilização de direitos, na reforma trabalhista. E, nesse caso, a emenda sairia bem pior que o soneto...
Ainda assim, vale a pena estudar, aqui e ali, alguns aspectos do anteprojeto. Afinal, apesar das resistências, há sempre a possibilidade de que venha a ser aprovado, mesmo em troca daquela moeda, e é preciso trabalhar com essa hipótese.
É que a nossa relação com o Direito começa antes mesmo de seu começo. Pois o Direito, mesmo quando assume a forma da lei, é produto de muitas vontades, dentre as quais se inserem as nossas pequenas ações e omissões.
Cada vez que nos preocupamos com a reforma sindical, estamos também nos ocupando dela. Mas mesmo a nossa despreocupação sempre ocupa algum espaço, na medida em que fortalece os consensos já firmados. Por isso, e como diz o poeta, mais vale fazer a hora do que esperar acontecer.
Além do mais, boa parte da Emenda Constitucional n. 45 veio exatamente preparar o terreno para que fosse plantada a reforma . E boa parte da reforma já pode ser – ou já poderia estar sendo - aplicada, mesmo antes de ser aprovada.
A explicação é simples. Vários dispositivos do anteprojeto apenas explicitam o que já consta, genericamente, da Constituição Federal e das convenções da OIT ratificadas pelo Brasil. Outros repetem o CPC ou o CDC, ou se escondem, meio timidamente, em alguns recantos da própria CLT.
Para todos esses casos, o anteprojeto de reforma pode servir como uma espécie de apelo, como se ganhasse voz e pedisse: “apliquem-me!”. Mas também pode nos ajudar a entender e a exercitar melhor o Direito que já vinha sendo aplicado pelos tribunais.
É sempre bom notar que o anteprojeto tem vários aspectos negativos, ou no mínimo perigosos, mas também incorpora alguns avanços importantes. Mesmo nos pontos em que não traz inovações formais, pode acabar produzindo, como dizíamos, transformações reais.
2. O sindicato e as ações judiciais
2. 1. Ações coletivas em geral
A Justiça do Trabalho ganhou competência para “as ações oriundas da relação de trabalho (...)”, as que envolvem “exercício do direito de greve” e as de “representação sindical” (art. 114, inc. I, II e III).
Dentre as “ações oriundas da relação de trabalho”, as que envolvem o sindicato são basicamente aquelas em que ele age como substituto processual. Como sabemos, com o fim do Enunciado n. 310/TST, e a interpretação que o STF vem dando à matéria, a substituição processual se tornou ampla – não se restringindo às hipóteses previstas expressamente na lei ordinária.
A propósito, não custa lembrar que – num contexto de instabilidade no emprego – só a substituição processual garante o acesso à Justiça para os que ainda estão ou (já tendo sido uma vez) não estão ainda empregados. Tanto uns quanto os outros ficam a salvo das retaliações patronais, representadas pela perda de um emprego presente ou de um reemprego futuro.
Em outras palavras, é a substituição processual que impede aquela demora invisível - muito pior que a lentidão dos processos – representada pelas demandas que não chegam sequer a serem ajuizadas. Ao mesmo tempo, torna um pouco menos ilusório o ius resistentiae do trabalhador, que hoje só existe no plano coletivo. E, de quebra, minimiza os efeitos da prescrição trabalhista, que instabiliza ou invés de estabilizar, permitindo o enriquecimento sem causa do devedor.
O resultado final é o aumento da eficácia social de todas as normas de proteção ao trabalhador. Sabendo que, a qualquer momento, pode ser realmente demandado, o empregador passa a tratar o seu empregado da mesma forma com que trata o motorista de táxi – pagando o preço, sem questionar.
Desse modo, se as ações coletivas se generalizarem, quase poderemos dizer que haverá uma nova CLT, que as pessoas cumprirão de uma forma bem mais completa e espontânea, tal como fazem, em geral, com o Código Civil. Assim, paradoxalmente, até o número total de demandas poderá diminuir.
Como o anteprojeto de reforma sindical trata do assunto?
A redação primitiva, guardada a sete chaves, previa ações para a defesa de interesses difusos, coletivos, individuais homogêneos e individuais puros – estes últimos, sempre que houvesse um ponto comum de fato ou de direito, como no litisconsórcio facultativo.
Mas a última versão, já oficial, remete a questão dos direitos difusos para o processo comum. Assim, se for aprovado como está, devem continuar as discussões sobre a sua pertinência no campo trabalhista, a legitimação para a causa etc.
Além disso, o anteprojeto passa a chamar de “individuais” os “individuais puros”; e os restringe às hipóteses de insalubridade e periculosidade (art. 195 `PAR` 2º da CLT), FGTS (art. 25 da Lei n. 8 036) e cumprimento de cláusula de contrato coletivo ou de sentença normativa (art. 114 `PAR`2º da CF).
Como se nota, são hipóteses já previstas. O anteprojeto apenas esclarece que não precisa haver um fato jurídico comum, interligando os direitos dos trabalhadores. Mas mesmo essa exigência, a rigor, não consta da lei atual. Ou seja: já pode um sindicato ingressar em juízo, pelo menos naquelas hipóteses, ainda que as questões se relacionem por um simples ponto de fato ou de direito. Na verdade, a nosso ver, pode fazê-lo ainda que se trate de um único trabalhador.
Fora daquelas hipóteses, segundo o anteprojeto, o sindicato poderá agir amplamente, desde que os direitos decorram de um mesmo fato ou ato jurídico, e as questões comuns prevaleçam sobre as individuais. Mas também aqui o anteprojeto não inova. Apenas regulamenta um dispositivo da Constituição, adotando a interpretação do STF.
A legitimidade será da entidade sindical. Na redação primitiva, o Ministério Público do Trabalho tinha legitimação concorrente. Já a versão oficial do anteprojeto se limita a dizer que
“Quando não ajuizar a demanda nos casos previstos em lei, o Ministério Público do Trabalho atuará como fiscal da lei, sempre que estiver presente o interesse público ou social” (art. 114 `PAR`único)
O problema é definir quais seriam esses “casos previstos em lei”. Assim, continuará a polêmica entre os que ampliam e os que reduzem o papel do Ministério Público do Trabalho . Ora, é tudo muito simples. Quanto menos força tiver o MP, menos força terá o direito. Assim, a alteração foi no mínimo preocupante.
Segundo o anteprojeto, a competência originária será dos juizes do primeiro grau, que poderão não só antecipar a tutela nas obrigações de fazer, como também nas de dar , como já se encontra previsto, genericamente, no CPC (arts. 461 e 273 `PAR`6º do CPC). A única exigência, na hipótese de obrigação de dar, é a apresentação de “memória discriminada e atualizada dos cálculos, com a justificativa dos valores e suficiente identificação dos beneficiados” (art. 161). Trata-se de um critério que já pode ser adotado, dentro dos amplos poderes que a lei confere ao juiz (art 765 da CLT e 125 do CPC).
2.2. Ações que envolvem o exercício do direito de greve
Essas ações, naturalmente, já podiam ser propostas antes mesmo da EC n. 45 – também por força das convenções da OIT e do art. 9º da CF. Agora, com um texto tão claro e preciso, provavelmente serão mais comuns.
Não se trata, aqui, de julgar a greve, muito menos de fixar novas condições de trabalho. Para isso há o `PAR` 3º do art. 114 da CF, sobre o qual falaremos adiante. O que se trata, aqui, é de direitos individuais. Logo, a competência originária é do juiz de primeiro grau.
Em geral, essas ações envolvem a prática de atos anti-sindicais. Como exemplo podemos citar a contratação de substitutos (salvo nos casos previstos), o oferecimento de prêmios aos não-grevistas e as despedidas retaliatórias – mesmo se praticadas depois da greve.
Mas é possível haver uma ou outra ação que envolva greve e não implique ato anti-sindical. Ainda nesse caso, a competência será do juiz do trabalho.
Observa Reginaldo Melhado que, agora, o sindicato poderá insurgir-se, na Justiça do Trabalho, contra ações da própria polícia que embaraçam a greve – inclusive através de mandado de segurança e habeas corpus. E podem ser parte
“os empregados, os empregadores, o Ministério Público, os trabalhadores não empregados, o vizinho afetado pela greve” .
Pergunta-se: e na hipótese de uma ação possessória, movida pelo empregador, a pretexto de viabilizar o acesso de terceiros ao estabelecimento?
Até antes da EC n. 45, muitas empresas (em geral, bancos) vinham propondo ações de interditos proibitórios na Justiça Comum, que volta e meia as julgava procedentes, desfazendo piquetes ou até proibindo manifestos.
Mesmo com a EC n. 45, alguns autores, como o grande processualista Manoel Antônio Teixeira Filho, sustentam que nada mudou. É que a natureza da ação seria “exclusivamente possessória” . Além disso,
“(...) o conflito ocorre entre uma pessoa jurídica, de um lado, e um sindicato de trabalhadores, de outro. Ou seja, o conflito ocorre entre duas pessoas jurídicas, não se podendo, pois, cogitar de relação de trabalho (...)”
Em sentido contrário, porém, pode-se argumentar que a CF não restringe a competência da JT às relações de trabalho. Além disso, o fato de ser possessória a ação não impede que os direitos envolvidos se relacionem muito de perto com a greve – e a decisão nela repercuta diretamente.
Mas vejamos como a reforma sindical trata do assunto.
O anteprojeto abre um capítulo próprio, destacado das “ações coletivas”, para tratar da “ação em matéria de greve”. Esta ação se destinaria apenas a garantir a prestação de serviços mínimos, tanto no caso de atividades essenciais, como na hipótese em que a empresa pode sofrer prejuízos irreparáveis.
Acontece que ambas as hipóteses são novas. A atual lei de greve prevê outras soluções. Desse modo, em princípio, não há como aplicar, ainda, a solução contida no anteprojeto.
Já os atos anti-sindicais praticados durante a greve foram deslocados, no anteprojeto, para o capítulo intitulad “Da ação de prevenção e repressão à conduta anti-sindical”, sobre o qual falaremos adiante.
2.3. Ações sobre representação sindical
Até antes da EC n. 45, como sabemos, era a Justiça Comum que julgava as questões envolvendo a disputa dos sindicatos pelo monopólio de representação.
Como nota Dallegrave Neto , a guinada começou com a Lei n. 8 894, que deu competência à Justiça do Trabalho para os dissídios com origem em convenções ou acordos coletivos, mesmo envolvendo conflitos de sindicatos entre si ou com o empregador.
Mas embora se refira apenas às “ações sobre representação sindical”, o novo inciso III do art. 114 deve ser interpretado de uma forma extensa. Como observa o Ministro Dalazen, ele abrange
“ quaisquer dissídios intra-sindicais, intersindicais, ou entre sindicato e empregador, que envolvam a aplicação do direito sindical, de que é mero exemplo a disputa intersindical de representatividade” .
É que, em última análise, tudo isso tem a ver, direta ou indiretamente, com a representação sindical. Inclusive as ações individuais, envolvendo o dirigente – pois ele é um representante, como observa Reginaldo Melhado. Por isso, melhor seria que
“... a reforma constitucional houvesse optado por outra técnica legislativa, fixando a competência genérica sobre direito sindical, evitando este deslize atávico de fazer referência aos sujeitos da relação jurídica material subjacente ao litígio”
Desses conflitos, os que mais vinham crescendo, no âmbito da Justiça Comum, eram os intra-sindicais. A razão principal foi o racha na CUT, que tem provocado lutas internas das minorias contra as lideranças. Ações envolvendo eleições, estatutos e assembléias têm sido as mais freqüentes. Para José Antônio Pancotti , o procedimento burocrático criado pela Portaria MT n. 343 para registro sindical também “pode gerar demandas” .
A competência será das varas ou dos tribunais? A nosso ver, das varas. E mesmo quando se tratar de ação envolvendo sindicatos. O que justificava a competência dos tribunais nos conflitos coletivos era mais o poder normativo do que propriamente a natureza coletiva dos interesses envolvidos.
Como o anteprojeto de reforma trata a representação sindical?
Para começar, só os sindicatos criados antes da futura lei poderão manter (se o desejarem) o sistema da unicidade. Os outros terão de enfrentar o pluralismo.
Além disso, para atuar como sindicato, a entidade deverá atender a certos requisitos. Mais precisamente, a representação exigirá representatividade. Mas a representatividade será de dois tipos: “comprovada” ou “derivada”.
A representatividade “comprovada” dependerá de quantitativos mínimos. Assim, v..g., se se tratar de sindicato, seus filiados deverão somar pelo menos 20% dos trabalhadores do ramo. Com as federações, confederações e centrais, os índices são outros.
Caso uma daquelas três últimas entidades exceda o mínimo exigido, poderá usar a “sobra” para criar uma entidade de nível inferior ao seu. Esta última terá, então, representatividade “derivada”. E fará parte da estrutura orgânica da entidade que a criou.
2. 4. Ações de prevenção e repressão à conduta anti-sindical
Essas ações não constam expressamente das novas regras da CF. Mas podem ser inseridas ou no inciso I (ações oriundas da relação de trabalho) ou no III (ações sobre representação sindical, se ampliarmos ainda mais essa expressão), ou , conforme o caso, no II (greve).
Também aqui, a EC n. 45 se completa com a reforma sindical – mesmo ainda não vigente.
É que, ainda uma vez, o juiz do trabalho já poderá aplicar (e às vezes já aplicava) as mesmas regras, que constam genericamente não só da CF como de convenções da OIT (a de n. 98, p. ex.) e das decisões de seu Comitê de Liberdade Sindical, que formam uma verdadeira jurisprudência.
Segundo o anteprojeto, “sempre que o empregador impedir ou limitar a atividade e a liberdade sindical”, o juiz do trabalho poderá impedi-lo, “em decisão imediatamente executiva”. A competência será (na verdade, já é) das varas.
Dois exemplos de conduta anti-sindical, extraídos do anteprojet “subordinar a admissão ou a preservação do emprego à filiação ou não a uma entidade sindical” e “despedir ou discriminar trabalhador em razão de sua filiação a sindicato, participação em greve, atuação em entidade sindical ou em representação dos trabalhadores nos locais de trabalho” (art. 175, I e III).
2.5. Ações relacionadas com a representação nos locais de trabalho
Como sabemos, a CF já previa um representante dos trabalhadores nas empresas de mais de 200 empregados, “com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com os empregadores” (art. 11)
Já o anteprojeto de reforma cria uma representação bem mais ampla, em toda empresa a partir de 30 ou mais empregados – desde que os próprios trabalhadores ou o sindicato a desejem. A PEC que o acompanha não cita números.
Um dos pontos polêmicos do anteprojeto é a possibilidade de a RLT negociar diretamente com o empregador. A nosso ver, o dispositivo – se aprovado - será inconstitucional. Além de se chocar com a norma expressa no art. 8º., VI, cria uma espécie de sindicato de empresa disfarçado.
Outro ponto complicado diz respeito à possibilidade de mediação de conflitos individuais. Com isso, a RLT passa a funcionar como comissão interna de conciliação prévia, solução que sempre nos pareceu perigosa.
O anteprojeto assegura aos trabalhadores importantes direitos, alguns deles já previstos em convenções da OIT ou (genericamente) na CF. Assim, por exemplo, o direito à informação e o de assembléia.
3. Contrato coletivo
Nesse ponto, nenhuma mudança houve na CF. A competência para julgar questões relativas aos acordos e convenções coletivas continua a ser, naturalmente, da Justiça do Trabalho.
Já o anteprojeto de reforma sindical substitui a convenção e o acordo pelo contrato coletivo. Tal como já acontece, poderá haver contratação em nível de empresa ou grupo de empresas; mas não por categoria, já que esta foi substituída pelo ramo de atividade (no caso de sindicatos e federações) e pelo setor econômico (no caso de confederações) .
O contrato coletivo pode ser firmado com apenas uma empresa, como hoje acontece; se envolver todo o ramo de atividade, terá base mínima municipal. Sua abrangência pode ser também intermunicipal, estadual ou nacional. A idéia é introduzir algo semelhante à “negociação articulada” italiana, com o desdobramento e a explicitação, em níveis menores, daquilo que foi decidido mais genericamente nas instâncias superiores.
Na redação primitiva do anteanteprojeto, constava o princípio da norma mais favorável. Ao mesmo tempo, porém, havia a possibilidade de um contrato coletivo de nível superior impedir a rediscussão de uma matéria em nível inferior. Já a nova versão retirou a menção ao princípio e conservou este último dispositivo.
Assim, alguns entenderão que um contrato coletivo de nível superior poderá impedir até a melhoria das condições de trabalho, por parte do inferior. Na verdade, pode ser que se venha a questionar – sem razão - a própria sobrevivência genérica do princípio da norma mais favorável, ou seja, a sua aplicação em quaisquer situações.
A nosso ver, interpretações como essas não podem prevalecer. Mesmo tendo sido formalmente excluído, o princípio permanece vigente. Suas raízes estão plantadas não só na CF e nas normas da OIT, mas no próprio coração do Direito do Trabalho.
Mas o grande risco da reforma está em abrir caminho para uma radicalização no processo que transforma normas de ordem pública em normas de ordem dispositiva, em nível coletivo. Na verdade, é essa a grande aposta dos setores empresariais e mesmo de fortes segmentos do sindicalismo.
E essa inesperada parceria é facilmente explicável: enquanto os primeiros apostam que, desse modo, poderão precarizar à vontade, os últimos esperam que a reforma os tornará suficientemente fortes para evitar esse risco. Além disso, embora não o digam, sabem que assim poderão recuperar um pouco o espaço político perdid se já (quase) não conseguem negociar para cima, pelo menos terão a glória de evitar algumas negociações para baixo...
A propósito, é interessante observar a evolução das propostas a respeito da negociação e do contrato coletivos. O relatório final do Fórum Nacional Trabalhista afirmava que
“O novo marco normativo da negociação coletiva deve considerar a realidade dos setores econômicos, das empresas ou das unidades produtivas, e as necessidades dos trabalhadores, ressalvados os direitos definidos em lei como inegociáveis (...)”
A redação mostra as ambigüidades e os riscos do consenso firmado entre trabalhadores, Governo e empresários.
Com efeito.
Na primeira parte, parece fazer apenas um exercício de retórica. Ao mesmo tempo, porém, abre espaço para uma possível diferenciação de tratamento entre os trabalhadores de pequenas e grandes empresas.
Já na parte final, parece se preocupar em garantir a mesma relação hoje existente entre a lei e a negociação coletiva. Mas na verdade abre espaço para que uma lei futura reduza os patamares mínimos de proteção, apostando na hipótese de que isso seria possível, em termos constitucionais.
Depois do relatório final do FNT, eis que surge o primeiro “Anteanteprojeto de Lei de Negociação e de Contrato Coletivo de Trabalho”, que definia o contrato coletivo como
“o negócio jurídico por meio do qual se estabelecem relações complementares de trabalho e as relações obrigacionais entre os atores coletivos” (art. 1º., inc. II).
Note-se que, embora vaga, a expressão “relações complementares” era interessante, pois marcava o papel secundário do contrato coletivo no confronto com a lei. Foi talvez por isso mesmo que um segundo e mais amplo anteanteprojeto a eliminou, passando a definir o contrato coletivo apenas como
“o negócio jurídico por meio do qual se estabelecem as condições de trabalho e as relações obrigacionais entre os atores coletivos” (art. 97, II).
A mesma redação foi mantida na última versão. Daí por quê, segundo se comenta, o presidente Severino, atendendo a pressões empresariais, já teria prometido todo o empenho para acelerar o seu andamento. É preciso limpar a área para o que vem depois. E o que vem depois é o que de fato lhes interessa - a reforma trabalhista. Afinal, e como já observamos em outros textos, foi só a esse preço que os setores patronais admitiram participar da costura da reforma sindical.
Não custa lembrar que os direitos sociais contidos na CF são cláusulas pétreas.
4. Poder normativo
Sobre o poder normativo, ensina Maurício Godinho Delgado que é
“ato-regra (Duguit), comando abstrato (Carnelutti), constituindo-se em ato judicial (aspecto formal), criador de regras gerais, impessoais, obrigatórias e abstratas (aspecto material). é lei em sentido material, embora preserve-se como ato judicial, do ponto de vista de sua produção e exteriorização”
Como sabemos, o poder normativo era alvo de muitas críticas, dentre as quais a de esvaziar o sindicato e a de criar regras casuísticas,
“...ocasionando toda uma construção de direito paralelo e assistemático, que era manipulada segundo os interesses de ocasião...”
De outro lado, porém, não se pode negar que o mesmo poder normativo serviu muitas vezes para estender conquistas a categorias mais frágeis, além de ter inspirado não só o legislador como os próprios sindicatos, nas negociações coletivas .
A propósito, a comissão de juizes que vinha acompanhando a reforma sindical concluiu pelo fim do poder normativo, mas desde que articulado com várias outras medidas, como a proteção ao emprego e a abertura dos sindicatos para a democracia e a multiplicidade.
Sem essas medidas, pode acontecer, como acredita o colega Dirceu Buyz Pinto , que o poder normativo se constitua no “último obstáculo” contra o processo de transformação de normas de ordem pública em normas dispositivas coletivamente. Assim, é preocupante essa sua morte anunciada.
Agora, à primeira vista, apenas em casos de greve em atividades essenciais, “com possibilidade de lesão do interesse público”, é que haverá dissídio coletivo propriamente dito. A legitimação é do MP, com exclusividade.
Nesse caso, além de declarar a licitude ou não da greve, o tribunal julgará as reivindicações dos trabalhadores, tal como acontece hoje. E a razão é simples.