"Uma Constituição aberta não deve abrigar preconceitos." (Paulo Bonavides).
"Ninguém respeita a Constituição e todos acreditam no futuro da nação. Que país é este?" (Renato Russo)
1. Introdução; 2. Conceito de terceirização; 3. A terceirização no setor público; 4. A normatividade constitucional e infraconstitucional a respeito do tema; 5. Conclusão.
1. Introdução.
Pretende-se neste texto defender a tese de que a terceirização na Administração Pública constitui ato que fere a ordem normativa. Aliás, já impressiona-me apresentar este tema como tese, diante de tantas obviedades em que se baseia.
Aliás, dentro dessa lógica do raciocínio, seria mais propício tentar entender porque algo tão óbvio quanto a ilegalidade - ou mais propriamente, a inconstitucionalidade - da terceirização no serviço público não é vista pelo mundo jurídico. Mas, isto já é assunto para sociólogos e antropólogos.
O fato é que, como a situação está aí posta e quase
consagrada como prática perfeitamente legal, torna-se
necessário demonstrar o equívoco da orientação
jurídica que lhe diz respeito.
Pois bem, enfrentemos, diretamente, a questão.
2. Conceito de terceirização.
A terceirização é prática administrativa que se instalou no modelo produtivo que se convencionou chamar de "toyotismo". A expressão, no entanto, por si só, não diz nada, representando apenas um modismo de uma pretensa demonstração de intelectualidade. "Toyotismo", como o próprio nome diz, é o modelo de produção adotado pela fábrica japoneza de automóveis, a Toyota, que, na verdade, representa um modo de pensar a produção.
Segundo Thomas Gounet , o toyotismo pode ser resumido em seis pontos: a) produção puxada pelo fluxo da demanda; b) combate ao desperdício; c) flexibilização da organização do trabalho; d) instalação do kanban (sistema que indica a utilização de peça do estoque); e) produção de vários modelos, sendo cada um em série reduzida; f) desenvolvimento de relações de subcontratação com fornecedores de autopeças.
Para Ricardo Antunes o toyotismo se diferencia do
fordismo pelos seguintes traços: a) produção vinculada
à demanda; b) fundamenta-se no trabalho operário em
equipe, com multivariedade e funções; c) estruturação
de um processo produtivo flexível; d) tem como
princípio o "just in time", o melhor aproveitamento
possível do tempo; e) funciona em conformidade com o
sistema kanban, para que os estoques sejam mínimos; f)
transferência de grande parte da produção, cerca de
75%, para empresas terceirizadas, de forma horizontal,
com expansão dos modos de produção e procedimentos
para toda a rede de forncedores (CCQ, controle de
qualidade total, kanban, just in time, Kaizen, team
work, eliminação do desperdício, "gerência
participativa", sindicalismo de empresa etc.,
g)organização de Círculos de Controle de Qualidade
(CCQ), "grupos de trabalhadores que são instigados
pelo capital a discutir seu trabalho e desempenho, com
vistas a melhorar a produtividade das empresas,
convertendo-se num importante instrumento para o
capital apropriar-se do savoir faire intelectual e
cognitivo do trabalho, que o fordismo desprezava" , h)
emprego vitalício para uma parcela dos trabalhadores
das grandes empresas e ganhos salariais vinculados ao
aumento da produção.
Já para Jeffrey k. Liker, professor de engenharia
industrial da Universidade de Michigan, que ficou
durante 20 anos estudando a produção da Toyota , o
modelo Toyota, na verdade, encerra um estilo de
administração, baseado em 14 princípios, advindo desse
modelo o Sistema Toyota de Produção.
Estes 14 princípios são direcionados para 4 aspectos fundamentais, organizados nos moldes de uma pirâmide, apresentados a seguir, da base ao ápice: filosofia; processo de produção; empregados e parceiros; solução de problemas.
Explica este autor, no que tange ao processo de produção, que:
a) embora a Toyota se baseie na idéia de empresa enxuta, isto é, produzir em conformidade com a demanda, diminuindo o estoque, isto não significa que a produção seja desnivelada. Na verdade, há um nivelamento da produção, pois "é melhor formar um estoque de produtos acabados a fim de nivelar o programa de produção, em vez de produzir de acordo com a verdadeira demanda flutuante dos pedidos dos clientes" ;
b) embora o modelo exija flexibilidade e isto implique a utilização de subcontratação, "muitas vezes, é melhor acrescentar seletivamente e substituir despesas gerais por mão-de-obra direta", até porque "quando a perda é descontada dos funcionários que agregam valor é preciso oferecer-lhes apoio de alta qualidade, como alguém que auxilia um cirurgião durante uma operação delicada.
c) embora a produção tenha atender à demanda, "pode não ser uma prioridade manter os funcionários ocupados produzindo peças o mais rápido possível. (....) Trabalhar mais rápido só para obter o máximo de seus funcionários é um outra forma de superprodução e, na verdade, leva ao emprego de maior mão-de-obra em geral" ;
d) embora a automação faça parte do modelo toyota,
deve-se "usar seletivamente a tecnologia de
informação, e muitas vezes, fazer uso de processos
manuais, mesmo quando a automação estiver disponível e
parecer justificar seus custo com a redução de
funcionários" .
Como explica Jeffrey k. Liker, "as soluções da
Toyota para problemas específicos frenqüentemente
parecem aumentar as perdas em vez de eliminá-las" .
Para Ohno, técnico que desenvolveu o modelo, as perdas
tinham pouca relação com o máximo aproveitamento da
mão-de-obra e dos equipamentos, estando muito mais
relacionadas "com a maneira como a matéria-prima era
transformada em mercadoria vendável" .
Em suma, o que este autor procura demonstrar é que o modelo Toyota vai muito além do que adoção de uma técnica enxuta de produção, como o "just in time". Uma passagem de sua obra é extremamente esclarecedora neste sentido: "Visitei centenas de organizações que afirma ser praticantes avançadas dos métodos enxutos. Orgulhosamente exibem seus estimado projeto enxuto. E fizeram um bom trabalho, sem dúvida. Mas, estudando a Toyota por 20 anos, fica claro que, em comparação, essas empresas são amadoras. A toyota precisou de décadas para criar uma cultura enxuta e chegar onde está e ainda acredita que está recém começando a entender o Modelo Toyota. Qual a percentagem de empresas, fora a toyota e seus grupo direto de fornecedores, que obtêm um A ou um B+ no sistema enxuto? Não sei dizer com exatidão, mas é bem menos de 1%."
Cita este autor o fato ocorrido nos EUA, em 1996, de uma empresa X que havia ganho o prêmio Shingo de Produção, que é um prêmio americano em honra de Shiego Shingo, que contribuiu para a criação do modelo toyota, e que foi visitada por um organismo de difusão do modelo toyota e que, por experiência, assumiu uma linha de produção da referida empresa durante 09 meses. Após o período o que se verificou foi:
"93% de redução no lead time para produção do produto (de 12 dias para 6,5 horas);
83% de redução no estoque em processo (de 9 para 1,5 horas);
91% de redução no estoque de produtos acabados (de 30.500 para 2.890 unidades);
50% de redução nas horas extras de trabalho (de 10 para 5 horas/pessoa/semana);
83% de melhoria na produtividade (de 2,4 para 4,5 peças/hora de trabalho)."
Relata, ainda, o mencionado autor, ter visitado centenas empresas americanas e conversado com milhares funcionários, ensinando-lhes como funciona o modelo toyota, mas constatou ao longo dos anos que a linha de produção degrada-se em vez de melhorar.
Eis suas palavras: "Os Estados Unidos têm sido exposto ao STP (Sistema Toyota de Produção) por pelo menos duas décadas. Os conceitos e ferramentas básicos não são novidade (O STP opera de alguma forma na Toyota por mais de 40 anos). O problema, acredito, é que as empresas americanas aproveitaram as ferramentas enxutas, mas não compreendem o que as faz funcionar juntas em um sistema. Tradicionalmente, a administração adota algumas dessas ferramentas técnicas e até luta para ir além de sua aplicação amadora para criar um sistema técnico. Mas não entende o poder que há por trás do verdadeiro STP: a cultura da melhoria contínua necessária para sustentar os princípios do Modelo Toyota. Dentro do modelo 4Ps que mencionei anteriormente, a maioria das empresas está patinando em um nível - o de `processo`. Sem adotar os outros 3Ps, elas farão pouco mais do que patinar, pois as melhorias que conseguem não serão respaldadas pelo sentimento e pelo inteligência para torná-las sustentáveis em toda a organização. O desempenho continuará defasado em relação ao das empresas que adotam uma verdadeira cultura de melhoria contínua."
No fordismo, que implementou a produção em massa com fluxo contínuo, a lógica do lucro era baseada na redução do custo e, de forma pendular, o custo se reduzia pela produção em escala. Dentro do pensamento fordista, igualmente, a automatização que substituía pessoas estava justificada se representasse redução do custo da produção.
Muito desse ideal incorporou-se às empresas pelo mundo afora, mas apenas utilizam-se da lógica de empresa enxuta do modelo Toyota como forma de potencializar o espírito fordista. A empresa é toyotista, em termos de estruturação, pretensamente enxuta, mas, fordista por essência. A subcontratação e a terceirização são utilizadas apenas na perspectiva da redução do custo imediato, pouco importando qual o efeito em termos do custo final da produção.
Jeffrey k. Liker constatou um exemplo disto quando visitou um fábrica de porcas de aço. Os engenheiros e administradores da fábrica disseram-lhe que a fábrica não tinha como ser mais enxuta. Mas, não fora essa a opinião de Liker: "Quando acompanhamos o fluxo de valor (e de não-valor), suas afirmações tornaram-se cômicas. Iniciamos no local de recebimento, e toda vez que eu pensava que o processo deveria terminar, caminhávamos mais uma vez pela fábrica até o próximo passo. As porcas, em um determinado ponto do processo, deixavam a fábrica por algumas semanas para serem submetidas ao tratamento térmico, pois a administração havia calculado que a contratação desse serviço era mais econômica. Depois de tudo esclarecido, o processo de fabricação de porcas que levava segundos para a maior parte das operações, com exceção do tratamento térmico, que levava algumas horas, geralmente levava semanas e, às vezes, meses. Calculamos a porcentagem de valor agregado para diferentes linhas de produtos e obtivemos números variando de 0,008% a 2 ou 3%. Um espanto! Para piorar, a paralisação de equipamento era um problema comum, deixando máquinas ociosas e permitindo grandes acúmulos de material em volta delas. Algum administrador havia concluído que os serviços externos de manutenção custavam menos do que a contratação de funcionários em tempo integral. Assim, freqüentemente não havia ninguém por perto para consertar uma máquina quando ela estragava, sem falar em um bom serviço de manutenção preventiva. A eficiência local era enfatizada às custas da desaceleração do fluxo de valor, criando grandes quantidades de estoque de produtos acabados e em processo e levando muito tempo para que se identificassem problemas (defeitos) que reduziam a qualidade. Como resultado, a planta não era flexível às mudanças na demanda dos clientes."
Pois bem, o que toda esta narração quer dizer? Quer dizer que o modelo toyota altera a forma de produção advinda do fordismo, mas a partir da alteração do modelo de produção, na verdade não se tem um modelo padrão, único, que se possa ser tomado como paradigma para fins de regulação ou mesmo para identificação de um fenômeno social ou industrial.
Há, aliás, um extremo paradoxo entre aquilo que se considera toyotismo a partir da verificação do modo de utilização da idéia em diversas empresas pelo mundo afora, em Estados e regiões diferentes, e o que se considera o espírito toyota, segundo relata Jeffrey k. Liker. Conforme destaca este autor, o modelo é apresentado, graficamente, como sendo uma casa, tendo como alicerce o "respeito pela humanidade". Afirma este autor: "A toyota nunca sacrificará a segurança de seus trabalhadores em nome da produção. E ela não precisa disso, já que a eliminação das perdas não implica a criação de procedimentos de trabalho estressantes e inseguros" .
Conseqüentemente, o processo de automação, igualmente, é feito com um toque de humanidade, como revela, aliás, reportagem publicada no Jornal, O Estado de São Paulo, em 12/01/97, p. B-14: "Toyota reiventa trabalho em linha de montagem". Diz a reportagem: "em vez de substituir operários, a Toyota projetou máquinas para torná-los mais produtivos. Destaca, ainda, a mesma reportagem, o rodízio entre os empregos na realização de suas tarefas; o sistema de emprego à vida e baixíssima rotatividade da mão-de-obra.
O quadro que se apresenta, neste aspecto, é, extremamente, favorável ao modelo Toyota, no qual as pessoas são postas no centro do sistema.
O que Jeffrey k. Liker e a reportagem em questão não
revelam, no entanto, é o combate ao sindicalismo feito
pela Toyota a partir desde a década de 50. Como relata
Ricardo Antunes , "Após a repressão que se abateu
sobre os principais líderes sindicais, as empresas
aproveitaram a desestruturação do sindicalismo
combativo e criaram o que se constituiu no traço
distintivo do sindicalismo japonês da era toyotista: o
sindicalismo de empresa, o sindicato-casa, atado ao
ideário e ao universo patronal. No ano seguinte, 1954,
esse mesmo sindicato foi considerado ainda pouco
cooperativo, sendo por isso dissolvido e substituído
por um novo sindicato inserido no `espírito Toyota`,
na `Família Toyota`. A campanha reivindicatória
tornou-se, então, nesse ano, movida pelo lema:
`Proteger nossa empresa para defender a vida!`"
Segundo Ricardo Antunes, "essa foi a condição
essencial para o sucesso capitalista da empresa
japonesa e, em particular, da Toyota. Combinando
repressão com cooptação, o sindicalismo de empresa
teve, como contrapartida à sua subordinação patronal,
a obtenção do emprego vitalício para uma parcela dos
trabalhadores das grandes empresas (cerca de 30% das
população trabalhadora) e também ganhos decorrentes da
produtividade" .
Outra forma de demonstrar a vinculação do sindicato à empresa revela-se na possibilidade dos sindicatos opinarem sobre a ascensão pessoal de trabalhadores (como na empresa Nissam) e sobretudo nas situações em que, como explica Ricardo Antunes, "a passagem pelo sindicato é uma condição para ascender a funções de responsabilidade, sobretudo em matéria de administração de pessoal" .
O quadro desfavorável do toyotismo é descrito por Ricardo Antunes, ao destacar que esse modelo de produção produziu como efeito a "intensificação da exploração do trabalho", sobretudo, por dois aspectos: realização de trabalho por um operário, simultaneamente, em várias máquinas; aumento do ritmo de trabalho, decorrente da velocidade imposta à cadeia produtiva pelo sistema de luzes (luzes verdes, amarelas e vermelhas apresentando como está o ritmo da produção, respectivamente: normal; intensidade máxima; diminuição do ritmo em virtude de problema) .
Destaca, ainda, que a automatização e a informática contribuem sobremaneira para acelerar o ritmo de trabalho .
Na sua visão, "a expansão do trabalho part time, assim como as formas pelas quais o capital se utiliza da divisão sexual do trabalho e do crescimento dos trabalhadores imigrantes, cuja expressão são os dekasseguis executando trabalhos desqualificados e freqüentemente ilegais, constituem claros exemplos da enorme tendência à intensificação e exploração da força de trabalho no universo do toyotismo. Este se estrutura preservando dentro das empresas matrizes um número reduzido de trabalhadores mais qualificados, multifuncionais e envolvidos com seu ideáriom bem como ampliando o conjunto flutuante e flexível de trabalhadores como o aumento das horas-extras, da terceirização no interior e fora das empresas, da contratação de trabalhadores temporários etc, opções estas que são diferenciadas em função das condições do mercado que se inserem" .
A respeito da subcontratação, ou utilização de empresas fornecedoras de peças Thomas Gounet esclarece que no modelo toyotismo há um acréscimo muito grande da subcontratação. Enquanto no fordismo 70% da produção era feita na fábrica montadora, no toyotismo há um inversão, passando-se a produzir no interior da fábrica apenas 60% (conforme exemplo extraído da GM).
Segundo Ricardo Antunes esta situação permite uma maior exploração do trabalho pois "quanto mais o trabalho se distancia das empresas principais, maior tende a ser a sua precarização. Por isso os trabalhadores da Toyota trabalham cerca `de 2.300 horas por ano enquanto os trabalhadores das empresas subcontratadas chegam a trabalhar 2.800 horas`."
Gounet, na mesma linha, acrescenta, como efeito da subcontratação: nível salarial 30 a 50% mais baixo; horas extras mais freqüentes; piora nas condições de trabalho e diminuição da humanização das relações sociais .
Interessante, no entanto, frisar a participação da empresa principal nesta precarização. Não se trata, simplesmente, de uma circunstância ditada pela empresa subcontratada, com relação à qual, portanto, a empresa principal não tenha nenhuma responsabilidade. Como observa Gounet, "é cada vez mais forte a pressão das montadoras sobre seus fornecedores para que rebaixem os preços de venda das autopeças, reduzindo os custos, acelerando os prazos de fornecimento, elevando a qualidade dos produtos. Um fornecedor da Ford explica que a montadora `impõe a cada ano objetivos de redução dos custos dos equipamentos, que podem chegar a 15 ou 20%`".
Quando às vantagens conferidas pelas empresas principais, para desenvolvimento do espírito toyotista, Gounet também é pessimista, afirmando que "depois que o peixe mordeu o anzol, a isca é desnecessária". Sua visão é justificada com o relato de as vantagens dadas diminuem com o decorrer dos anos, sobretudo quando, na concorrência, outras empresas conferem as mesmas vantagens e chega-se ao limite. A partir daí há um retorno aos meios clássicos de obter acumulação: "incrementar a obtenção de mais-valia, aumentar diretamente a exploração, intensificar a automação." Assim, "quem conquista fatias do mercado é a empresa que impõe aos operários o mínimo de salário pelo máximo de produtividada" - grifou-se.
Para Gounet, a globalização, que possibilita a generalização desse modelo em escala mundial, de maneira muito rápida; a concorrência, também em escala mundial, que impede a política de vantagens; e a crise econômica e saturação do mercado, que impõem a rapidez na adoção desse modelo às empresas, farão com que o quadro seja bastante negro para os trabalhadores nos próximos anos e que por isto mesmo o reinado do toyotismo "será mais breve que o do fordismo" .
"Estes três elementos - internacionalização, concorrência e crise - explicam por que o just in time é uma necessidade para as empresas que queiram desempenhar um papel significativo no mercado; e por que assistiremos brevemente à impiedosa exploração de classe operária e à robotização extremada na indústria automobilística."
Mas isto, segundo Gounet, como dito, representará o fim do modelo: "A generalização e necessária degeneração do modelo levam-nos de volta à tendência à queda das taxas de lucro. Quando se introduz uma nova organização da produção, o aceleramento da rotação do capital permite que as empresas líderes contornem essa lei. Elas elevam suas taxas de lucro e tomam fatias do mercado. As empresas que não podem acompanhá-las são eliminadas. As outras, copiam. De maneira que, ao fim de certo tempo, todo mundo está de volta ao mesmo ponto, com um bolo para repartir. O bolo talvez seja maior, graças à redução do preço alcançada pelos novos métodos. Talvez haja menos fabricantes para reivindicar sua fatia. Mas o bolo é aquele mesmo e a luta por ele nada tem de original: as empresas investem em novas tecnologias para se desenvolver. Ao fazê-lo, o sistema cai outra vez na lei da tendência à queda da taxa de lucro. A crise do fordismo é fruto dessa degeneração, dessa crise de acumulação, dessa contradição entre as acumulações individuais e a acumulação da sociedade em seu conjunto. Pode-se dizer que o toyotismo será destronado por essa mesma lógica."
O que se apresentava, portanto, de maneira confusa, na diversidade das manifestações de Liker, Anutes e Gounet, acerca do que seja, efetivamente, o toyotismo, acaba sendo facilmente explicado pela dinâmica que as formas de produção adquirem no capitalismo, sobretudo em uma economia globalizada. A idéia, por melhor que seja, diante da concorrência, que muitas vezes impõe a busca do lucro imediato, como fator até de sobrevivência, acaba sendo desvirtuada e a pressão de umas sobre as outras fazem com que, no fundo, haja uma natural corrida em direção da precarização das relações de trabalho, onde o lucro é vislumbrado de forma mais imediata. Para se chegar a isto, as maneiras são diversas, dependendo, inclusive, das circunstâncias culturais e jurídicas de cada país, conforme destacado por Ricardo Antunes (referência supra). Como resultado, pode-se dizer, não há um único modelo toyotista, mas vários, na verdade, um número ilimitado de modelos, cujo efeito, no entanto, no decorrer dos anos, representa, sem dúvida, o aumento da exploração do trabalho, ainda que, em termos teóricos, a idéia pudesse ter a sua beleza, conforme vislumbra Liker.
O toyotismo, portanto, extraindo o sumo daquilo que pode ser apontado como seu elemento identificador, abstraindo, portanto, todas as suas nuanças, em termos de técnica produtiva, pode ser entendido como um modo de organizar a produção de maneira a extrair da força de trabalho o maior proveito possível com o menor dispêndio econômico possível, o que, na verdade, acaba não representando nenhuma novidade com relação ao fordismo. O que muda, como visto, é a forma de se chegar a isto, mas o efeito, acaba sendo o mesmo, com um agravante: neste aspecto o toyotismo é muito mais eficiente, principalmente o toyotismo que se difundiu no mundo, influenciado pela globalização, pela crise econômica e pela concorrência internacional.
3. A terceirização na Administração Pública.
Pois bem, diante dessa longa explicação, que por si
só, já é bastante complexa no contexto do capitalismo
de produção, surge a inexorável pergunta: o que a
terceirização de serviços no âmbito da administração,
cuja função é, unicamente, exercer as tarefas de
facilitação do cumprimento dos deveres do Estado
perante a sociedade, tem a ver com a terceirização no
contexto do modelo capitalista de produção? Em que
medida uma coisa se justifica pela outra?
Os autores que cuidam do assunto, defendendo a
terceirização no setor público, falam de modernização
do ente público, mas ou não têm a mínima idéia do que
representa a terceirização no contexto da produção
capitalista ou, tendo, assumem o risco de que trazer
tal perversidade para o âmbito público, só não se sabe
para atender a qual finalidade. A do lucro?
É evidente que a lógica da terceirização nada tem
nada a ver com as exigências do serviço público, a não
ser que se queira ver no Estado um produtor de
riquezas a partir da exploração do trabalho alheio,
sendo estes, os "alheios", exatamente os membros da
sociedade a que ele se destina a organizar e
proteger.
Vale reparar, ademais, que a subcontratação, no sistema toyotista, é feita com base na busca de melhoria da produção, o que se dá, portanto, em nível de reforço do modelo produtivo. Assim, a mera execução de uma tarefa, alheia à produção, se por contratação direta ou por empresa interposta, que serve somente para o fim de redução do custo daquela mão-de-obra, sem implicação alguma na capacidade produtiva, sequer tem a ver com o modelo toyota de produção ou qualquer outro. Trata-se, unicamente, de técnica que potencializa a exploração da mão-de-obra.
O que se desenvolveu no Brasil, portanto, em termos de "terceirização" foi apenas uma "intermediação de mão-de-obra", que não está ligada a técnica alguma de produção. Não é "fordismo", "taylorismo", ou "toyotismo", é "sem-vergonhismo" mesmo, o que se explica, aliás, historicamente, pois, no nosso aspecto cultural, infelizmente, ainda causa mais espanto à sociedade um empregado cobrar seus direitos que um empregador, "que fez um favor ao oferecer trabalho", não respeitar os direitos de seus empregados.
Qual a razão de se trazer tal prática para o setor público?
Incrementar a produção? Reduzir custo?
Nada disso tem sentido. A redução de custo é imoral, pois o custo é reduzido a partir da perspectiva do direito daquele que presta serviço. Ora, o direito da sociedade de se fazer valer dos serviços do Estado não pode ser concretizado por meio da diminuição dos direitos do trabalhador, pois isto seria o mesmo que excluí-lo da condição de membro dessa mesma sociedade, ou colocá-lo em uma situação de subcidadania.
A eficiência administrativa, portanto, não pode ser realizada com a precarização dos direitos dos que prestam serviços ao ente público.
Mas, vai se dizer, de forma insossa e irresponsável, pois que não lhe afeta diretamente, ou de forma comprometida, quando ligado ao interesse dominante, que pela terceirização pura e simples não se eliminam direitos, apenas se possibilita a formação da relação jurídica por uma interposta pessoa, a qual, esta sim, fica responsável pelo cumprimento dos direitos do trabalhador.
Ora, se tomada por base a realidade e não apenas o formalismo dos textos escritos, é fácil verificar (só não vê quem não quer) que a precarização é da própria lógica da terceirização, pois, como explica Márcio Túlio Viana, as empresas prestadoras de serviço, para garantirem sua condição, porque não têm condições de automatizar sua produção, acabam sendo forçadas a precarizar as relações de trabalho, para que, com a diminuição do custo-da-obra, ofereçam seus serviços a um preço mais accessível, ganhando, assim, a concorrência perante outras empresas prestadoras de serviço .
Com relação ao setor público, então, esta lógica é ainda mais nítida, pois a contratação da empresa de terceirização é precedida de procedimento licitatório do qual sai vencedor, em geral, a empresa que oferece o serviço pelo menor preço.
Importante constatar, ademais, que a terceirização é examinada, unicamente, sob os ângulos de visão do empresário ou, no caso da nossa investigação, do ente público, no que, aliás, não se tem nenhuma novidade, já que a história sempre é retrata com a perspectiva do vencedor. Mas, deixando de lado o aspecto econômico que o tema envolve, relevante parar pensar o que a tercerização representa na vida dos empregados terceirizados.
Em concreto, nesta "técnica moderna de produção", há o impedimento de uma vinculação social do trabalhador com o meio-ambiente de trabalho, onde passa a maior parte de seu dia. Esta desvinculação inclui pessoas e coisas.
Os "terceirizados" são deslocados do convívio dos demais empregados, chamados, "efetivos"; usam elevadores específicos; almoçam em refeitório separado ou em horários diversos; não são alvo de qualquer tipo de subordinação, para, como se diz, "não gerar vínculo"; ou seja, são tratados como coisa ou simplesmente não são vistos. Estão por ali, mas deve ser como se não estivessem. Além disso, muitas vezes prestam serviços em várias tomadoras de serviços ao longo de sua vinculação jurídica com a empresa de prestação de serviços, gerando a plena impossibilidade de sua socialização pelo trabalho e tornando muito mais improvável sua obtenção, pela via judicial, dos direitos que lhe venham a ser suprimidos.
A situação é ainda pior quando o feixe de fornecimento de mão-de-obra se amplia e o fenômeno da terceirização se transforma em quarteirização etc. Uma empresa contrata a outra para a execução do serviço e esta, por sua vez, contrata outra, acentuando, por óbvio, a lógica perversa da precarização.
Sob o prisma da realidade judiciária, percebe-se, facilmente, o quanto a terceirização tem contribuído para dificultar, na prática, a identificação do real empregador daquele que procura a Justiça para resgatar um pouco da dignidade perdida ao perceber que prestou serviços e não sabe sequer de quem cobrar seus direitos. A Justiça do Trabalho que tradicionalmente já se podia identificar como a Justiça do ex-empregado, dada a razoável incidência desta situação, passou a ser a Justiça do "ex-empregado de alguém, só não se sabe quem".
Aliás, este alguém, em geral, depois de algum tempo de atuação na realidade social, e quando seus contratos de prestação de serviços não mais se renovam, desaparece.
Há, ainda, outro efeito pouco avaliado, mas intensamente perverso que é o da irresponsabilidade concreta quanto à proteção do meio-ambiente de trabalho. Os trabalhadores terceirizados, não se integrando a CIPAs e não tendo representação sindical no ambiente de trabalho, subordinam-se a trabalhar nas condições que lhe são apresentadas, sem qualquer possibilidade de rejeição institucional. O meio-ambiente do trabalho, desse modo, é relegado a um segundo plano, gerando aumento sensível de doenças profissionais.
Por fim, mas não menos importante, vale notar a postura do tomador de serviço perante o trabalhador quando se constata que a empresa prestadora dos serviços não está respeitando os direitos trabalhistas. Age como se nada tivesse com a história. Os terceirizados são, assim, alvo de uma atitude indiferente do tomador dos serviços, "não temos nada com isto", ou quando muito de uma certa compaixão, "vamos ver o que podemos fazer..." Uma compaixão, às vezes, que se institucionaliza por iniciativa dos próprios empregados efetivos da empresa tomadora, na qual o terceirizado presta serviço, com a realização de uma espécie de coleta de dinheiro para "ajudar" o terceirizado.
O que não se percebe, é que esta ajuda obscurece uma extrema perversidade que se forma na relação entre efetivos e terceirizados. A reação dos efetivos quando chega à compaixão, o que é raro, vale lembrar, já é muito. Não passa daí. Ou seja, admite-se a idéia de que os terceirizados não compõem a classe dos trabalhadores. A antiga idéia da luta de classes, entre patrões e empregados, que impulsionou os movimentos revolucionários de caráter marxista, é completamente destruída. Os efetivos não se identificam como membros da mesma classe que os terceirizados e estes, aliás, assumem essa condição de sub-trabalhadores. Ademais, a partir de uma lógica estritamente matemática, na qual se baseia o capitalismo imediatista neoliberal, é exatamente a precarização dos direitos dos terceirizados que, de certo modo, garante o emprego dos efetivos, que, assim, quando não reagem, por meio de uma ação sindical, contra a situação que é imposta aos terceirizados, assumem a postura do próprio explorador.
No setor público, então, isto é ainda mais nítido, pois como o orçamento é limitado, muitas vezes só se conseguem verbas para aumentar os ganhos do administrador, dos seus apaniguados (os altos salários dos cargos em comissão) e dos considerados servidores de carreira com a redução do custo de parcela da mão-de-obra, que é remetida para a esfera da terceirização. O problema é que como isto se faz sem qualquer limite e sem qualquer repressão dos poderes constituídos, pois são eles próprios os executores da prática, uma parcela cada vez mais.