Há poucos dias a imprensa noticiava que o Presidente da República teria aventado perante alguns juristas e membros do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, a intenção de convocar uma "Constituinte exclusiva" para alterar a Carta de 1988 visando concretizar a chamada "Reforma política" que o processo de emenda não teria o condão de concretizar, idéia de certa forma também defendida por assessores próximos do Presidente, o que provocou sérias críticas no mundo jurídico, inclusive deste articulista que fez publicar artigo em que chamava a atenção para o equívoco da tese.
Agora o tema volta a ser tratado, inclusive aqui no Estado do Mato Grosso do Sul através de artigo de autoria do jurista Tarso Genro, atualmente influente assessor do Presidente da República, publicado pelo Jornal Eletrônico Campo Grande News (coluna Debates).
De outro lado, o Jornal o Progresso de Dourados, que circulou em 25.08.06 noticia que o candidato ao Senado pelo PDT e presidente regional do partido, João Leite Schimidt teria defendido "a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte para elaboração de uma nova Carta Magna para o País" sob o argumento de "a atual Constituição Federal está exaurida".
De acordo com o mencionado periódico o ilustre político teria afirmado que com "uma nova constituinte, o Congresso vai abrir mão de fazer leis e reformas para se proteger. Temos que ter uma constituinte pura e que se dissolva. Quem participou não pode disputar a próxima eleição".
A tese é de manifesto equívoco, em que pese o respeito merecido pelo ilustre político sulmatogrossense.
Como afirmei em artigo anterior e volto a repetir, aqui, o poder constituinte originário corporificado no legislador constituinte de 1988 estabeleceu clara e expressamente os dois mecanismos de reforma da Constituição, de modo a adaptá-la as mudanças sociais, quais sejam, o processo de emendas constitucionais, delineado no art. 60 da própria Carta da República, com seu quorum qualificado e tramitação em dois turnos, e a Revisão Constitucional prevista no art. 3º do ADCT, a ser realizada uma única vez, após cinco anos da promulgação da Constituição Federal pelos membros do Congresso Nacional, o que já aconteceu.
É preciso relembrar que o processo de mudança das constituições objetiva, em última análise, o estabelecimento de um canal permanente entre o ordenamento jurídico maior e a sociedade, de modo que esta possa fazer valer seu interesse legítimo no sentido de que as normas fundamentais de um país estejam em consonância com sua dinâmica própria. Por isso, o constituinte brasileiro manifestou-se, em 1988, de forma cristalina quanto ao processo de reforma da Constituição, optando de forma inequívoca pelo instrumento da emenda constitucional, com o seu procedimento mais rígido e quorum qualificado, consciente da relevância e da necessidade de estabilidade nas relações jurídico-institucionais em um país como o Brasil, de pouco estima pela sua Constituição e acostumado a impor alterações no Texto Maior por razões nem sempre as mais nobres e relevantes.
Assim, impede reiterar que as normas constitucionais não podem se constituir em blocos rígidos imutáveis, num engessamento normativo em que uma geração determina o arcabouço jurídico, político econômico e social das gerações subseqüentes. Todavia, existam determinadas matérias que devem e de fato são protegidas até mesmo contra o querer democrático, como são aquelas previstas no art. 60, `PAR` 4º, do Texto Supremo. Por conseguinte, a origem da mudança, inerente à dinâmica social, deve ser contrabalançada com a estabilidade institucional, especialmente em países como o Brasil, onde as iniciativas oportunistas costumam proliferar e acomodar-se em uma impressionante velocidade, nem sempre atendendo a anseios verdadeiramente nobres, mas imediatistas e conjunturais que reduzem e até mesmo impedem a discussão dos paradigmas constitucionais de uma nação, bastando para se constatar este fato ver a quantidade de Emendas que Constituição já recebeu em menos de vinte anos de existência, algumas alterando ou simplesmente suprimindo preceitos que sequer chegaram a ser regulamentados.
A instituição do poder constituinte originário através da convocação da Assembléia Nacional Constituinte por intermédio da Emenda Constitucional nº 26 de 1985, por mais que se apartasse dos estreitos parâmetros legais e constitucionais, induvidosamente constituiu-se numa clara convergência de percepções a respeito do esgotamento do modelo institucional vigente e da necessidade de se efetivar a transição pacífica para uma nova realidade que se avizinhava com o fim do regime militar e o retorno à normalidade democrática, o que a toda evidência não ocorre na situação ora vivenciada pela nação brasileira, em que pese à gravidade da crise de moralidade que perpassa nas instituições mais relevantes da República, inclusive no Parlamento.
Assim, não se concebe como se poderia justificar a convocação de uma Assembléia Constituinte para escrever uma nova Carta se não ocorreu nenhuma ruptura, quanto mais profunda na ordem política instituída que possa justificar o chamamento do titular do poder constituinte originário para que escolha seus representantes para escrever uma nova Constituição quando a Carta vigente sequer foi totalmente regulamentada quanto mais concretizada.
O poder constituinte originário somente pode ser chamado a se manifestar em momentos de efetiva transição, de ruptura (ainda que violenta) de um ordenamento jurídico-institucional necrosado para um novo que atenda aos clamores de mudança da nação, o que nem de longe ocorre no momento em que vive a nação brasileira, pois mera mudança de regras do jogo político jamais poderá justificar o rompimento da ordem constitucional.
Mera alteração do sistema político ou adequação deste a uma nova realidade pode e deve ser levada a efeito através do mecanismo de emenda, cujo procedimento encontra-se expressamente previsto no próprio Texto Maior.
Parece óbvio afirmar que não se justifica a convocação do titular do poder constituinte originário pelo poder constituinte derivado, em violação ao texto expresso da Carta Republicana para escrever uma nova Constituição, sob o falso argumento de que aquela estaria "exaurida" quando a grande maioria dos seus preceitos sequer foram regulamentados quanto mais concretizados. Por conseguinte, ao invés de destruir aquilo que o constituinte nos legou precisamos concretizar na vida das pessoas as promessas por ele escritas na Carta de 1988.
Nesse contexto, a idéia de romper com a ordem constitucional vigente para atender a interesses menos nobres, a par de extravagante não se mostra justificada representando apenas mais uma das muitas tentativas de golpe que a Carta da República tem sido vítima nesses dezessete anos de vigência. É preciso ficar alerta para esse equivoco não se concretize.
* Juiz Titular da 2ª Vara do Trabalho de Dourados - MS. Professor na INIGRAN. Mestre em Direito pela UNB. Doutorando em Direito Social pela Universidad Castilla-La Mancha (Espanha).