Uma verdadeira tragédia do serviço público, em geral, e da segurança pública em particular, corresponde ao que se poderia nomear "ditadura da lealdade auto-definida". Essa "construção" corresponde a uma alegada "imposição ética", definida a partir do interesse particular, em detrimento dos próprios elementos lógicos da definição do conceito, sempre voltado para o que é geral e verdadeiramente ético.
Nessa "prestidigitação conceitual", são a ideologia e a crença pessoal (muitas vezes equivocadas...) que se pretende afirmar e impor através da evocação de conceito nobre como certamente o é o da lealdade.
Na Alemanha nazista, por exemplo, a "lealdade alemã" implicava que a cidadania tivesse de validar e conviver com uma ideologia de eliminação deliberada e sistemática de judeus inocentes, ou pelo menos, omitir-se em relação a tal prática hedionda. Ser leal, na Alemanha nazista, portanto, correspondia em apreciação ética lógica e perene a praticar ou pelo menos consentir o genocídio...
As autoridades do regime nazista certamente buscaram mistificar a "lógica" de um regime genocida, tentando faze-lo parecer diferente do que certamente foi, é e sempre será: imoral. Mas, por razões conhecidas historicamente, não estavam postas as melhores condições para o exercício da "autonomia moral" pelo povo alemão, do que a cidadania daquela grande nação européia se ressente e deplora até hoje.
Indivíduos socializados em organizações ou épocas de ausência de valores, os democráticos inclusive, costumam desfraldar a "bandeira da lealdade" no sentido de justificar a imposição de objetivos que não seriam tão facilmente aceitos em outras circunstancias.
Sincero, franco e honesto. Fiel a seus compromissos. Estas são duas das definições primeiras de lealdade, de acordo com o tratadista Aurélio Buarque de Holanda Ferreira.
Remontando a uma situação especifica, os compromissos do servidor público obviamente serão com o PÚBLICO e com o BEM COMUM. Não existe, dentro de um clima de legalidade e legitimidade, compromissos particulares aos quais o servidor público deva aderir pela simples evocação da possibilidade de "ser desleal..."
É o mesmo Aurélio que define competência como a faculdade concedida por lei a um funcionário para apreciar e julgar certos pleitos ou questões. Outro significado, igualmente apontado por Ferreira, estabelece que a competência é a qualidade de quem é capaz de apreciar e resolver certo assunto ou fazer determinada coisa (capacidade, habilidade, aptidão e idoneidade).
Com exceção da idoneidade, atributo geral e necessário, ainda quenão suficiente, o servidor público deverá possuir capacidades, habilidades e aptidões específicas para o desempenho de funções e cargos específicos do trato da COISA PÚBLICA.
Na vida social, no trabalho
inclusive, circunstâncias anômalas induzem a
existência de situações em que o significado e
expressão atitudinal da lealdade podem ser corrompidos
em função do próprio conceito de competência. No
ambiente técnico-profissional onde todos, inclusive os
chefes, possuírem as necessárias faculdades,
capacidades, habilidades e aptidões, sem esquecer o
atributo de personalidade
idônea, segura e ajustada, a corrupção do
significado e da expressão da lealdade terá pouca ou
nenhuma probabilidade de ocorrência.
Entretanto, ausentes as pré-condições necessárias apontadas, poderá estabelecer-se um clima de "falsa lealdade" no trabalho, situação tão mais prevalente quanto mais as condições ambientais favoreçam a potencialização de indivíduos desprovidos de competência (e também de liderança...), o que terminará por produzir chefes inseguros e desajustados por conta de suas próprias deficiências. A dinâmica da tentativa de ajuste desses indivíduos de capacidade técnico-profissional duvidosa, eventualmente ocupando posições de mando, pode implicar na expressão de atitudes anti-sociais, sendo comum que, inseguros acerca da sua própria aptidão, surjam neles manifestações paranoides, geralmente materializadas em queixas contra a "deslealdade" de seus subordinados.
Na verdade, a lealdade aludida seria a proteção e o resguardo da ineficiência no trato da coisa pública, protegendo-se um indivíduo em lugar do interesse coletivo.
Os "traídos", em sua ideologia de "lealdade auto-definida", geralmente são incapazes de conviver com o conflito natural de opiniões profissionais que caracteriza a convivência civilizada e democrática nas instituições públicas. Passam, via de regra, a praticar o chamado "jogo de soma zero", tentando eliminar todo aquele que "não reze pela mesma cartilha". O risco da instalação desse tipo de prática fica ainda mais potencializado pela presença de acólitos poderosos, pré-postados na organização, verdadeiras eminências pardas menos informadas pelo conhecimento e pela técnica do que pela capacidade patológica de articular "campanhas difamatórias" e os chamados "assassinatos de personalidade". Em tal situação, a conhecida "intriga" passa a ser o instrumento através do qual tais "operadores do poder" atuam no "patrulhamento" do restante da comunidade.
Se a intriga, por um lado, imobiliza o difamado, já por outro libera e incensa aquele que é vão, validando também seu acólito articulador. A verdade, ao contrário, é a luz que denuncia o vício expressamente (sem escândalo...), expondo o que está mistificado e oculto a juízo lógico e público...
"Dirigentes ineptos" poderão sentir-se traídos a cada vez que forem confrontados com opiniões sinceras, francas e honestas, de natureza essencialmente técnico-profissional, advindas de seus subordinados. São muitos os servidores públicos obrigados a conviver com tal situação, muitas vezes optando, em prol da própria sobrevivência, por serem "leais a homens" em detrimento da causa pública.
A sinceridade e a franqueza, assim, podem passar a ser atributos antitéticos em relação ao que se chamaria de "lealdade auto-definida", sempre que "concordar com o chefe em qualquer circunstância" passe a ser uma "necessidade de sobrevivência". A corrupção do conceito da lealdade pode ir mais longe ainda, quando a "fidelidade a compromissos" (novamente da definição do "Aurélio"...) passe a ser identificada com "os compromissos do próprio chefe..."
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(*) Prof. Dr. George Felipe de Lima Dantas
(pós-graduado com especialização em Análise e
Resolução de Conflitos pela "The George Mason
University", Fairfax, Virginia, EUA). Atuou na ilha
Hispaniola como membro de missão internacional da OEA
na República Dominicana e no México e Nigéria em
missões com a ONU. Atualmente é Coordenador do
Componente de Segurança Pública do Núcleo de Estudo em
Defesa, Segurança Pública e Ordem Pública (NEDOP) do
Centro Universitário do Distrito Federal
(UniDF).