Ultimamente, estamos todos à volta com uma situação no mínimo curiosa (para não dizer trágica): a indignidade da remuneração sem trabalho. E - o que é pior - com dinheiro público. Dinheiro esse arrecadado de todo cidadão contribuinte, inclusive daqueles desempregados que, mesmo sem remuneração, auferem outras rendas, compram produtos industrializados, movimentam contas correntes, etc.
Falamos, é claro, dos subsídios dos treze suplentes de deputado federal que, a partir do dia 03 de janeiro, tomaram posse de cargos eletivos para receber, durante um mês, cerca de R$ 46.000,00 cada um, sem poder prestar um único serviço à nação. Não discursarão na Câmara, não comporão comissões e nem apresentarão projetos, simplesmente porque o Congresso Nacional está em recesso.
O mais comezinho bom senso manda perguntar: afinal de contas, remunerar o quê? A palavra "remuneração" vem do latim (remuneratìo, ónis) e significa, etimologicamente, recompensa. Mas recompensar o quê? O bom-mocismo de quem afirma ter as melhores intenções, projetos de lei revolucionários e a infelicidade de não poder apresentá-los? Certamente, os subsídios previstos no artigo 39, `PAR`4º, da Constituição não se prestam a isso. Do contrário, qualquer outro cidadão - igualmente bem intencionado - poderia reivindicá-los, escudando-se na infelicidade de não ter composto uma chapa vencedora...
Ouve-se de parlamentares que há de ser assim, porque é o que dita a Constituição. Os jornais comungam desse mesmo fatalismo, já com alguma indignação. Essas impressões, porém, não correspondem à lógica do sistema jurídico brasileiro. Diziam os romanos que nem tudo o que é lícito, é honesto ("non omne quod licet honestum est"); e no Brasil, felizmente, há mecanismos jurídicos para debelar a aplicação iníqua da lei, sem desautorizá-la enquanto lei. A lei - ou, mais amplamente, a regra jurídica - deve ser interpretada e aplicada conforme os princípios constitucionais; e, entre os princípios que regem a administração pública de qualquer dos Poderes da República, está o da moralidade administrativa (artigos 5º, LXXIII, e 37, caput, da Constituição). Noutras palavras, às administrações públicas não basta o comportamento lícito; ele tem de ser, ainda, conforme a justiça, a eqüidade e o sentido comum de honestidade.
É certo que a Constituição, em seu artigo 56, `PAR`1º, prevê a convocação do suplente quando o deputado é investido em cargo de secretário de Estado. Também o diz o artigo 241, II, do Regimento da Câmara. Mas essas regras não podem ser aplicadas, sem mais, quando significarem desperdício do dinheiro público. Não têm o condão de justificar pagamentos graciosos a treze felizardos que, por mais bem-intencionados que estejam, nada farão que mereça ser remunerado. Do contrário, revestem-se - na aplicação - de imoralidade administrativa, ferindo de morte o princípio constitucional.
Cabe aqui percutir, d?além-mar, a lição memorável de CANOTILHO, conhecido jurista português, segundo a qual as administrações, ao praticarem atos de execução de regras constitucionais, devem executá-las constitucionalmente, interpretando-as e aplicando-as de conformidade com os direitos, liberdades e garantias. Ora, a moralidade administrativa é, no Brasil, uma garantia da sociedade e de todo cidadão. Ao cidadão - ou ao seu guardião maior, o Ministério Público - incumbe, agora, reclamá-la. E ao Judiciário, se provocado, fazê-la valer.
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(*) Guilherme Guimarães Feliciano, juiz do trabalho da 15ª região e diretor cultural da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da Décima Quinta Região (AMATRA XV)
(*) Renato Henry Sant`Anna, juiz do trabalho da 15ª região e secretário-geral da Associação Nacional do Magistrados da Justiça do Trabalho - Anamatra