A banalização da morte de trabalhadores
Ananda Tostes Isoni
Juíza do Trabalho no TRT da 15ª Região desde 2016 e atuou no Tribunal Superior do Trabalho de 2012 até o ingresso na magistratura.
A cena é aterradora: guarda-sóis, engradados de cerveja e caixas de leite em pó escondem do público o corpo de um trabalhador morto. Manoel Moisés Cavalcante atuava como promotor de vendas em um supermercado, quando sofreu um infarto que o levou a óbito. A loja não interrompeu as atividades. Consumidores continuaram a comprar, trabalhadores continuaram a cumprir ordens. Pouco depois, aqueles produtos que esconderam o corpo de Manoel estariam nas estantes.
A banalização da morte de trabalhadores não é novidade, mas a crueza de histórias como a de Manoel escancara fatos que preferimos não ver. Tornou-se lugar-comum dizer que algum grau de miopia social é necessário para seguirmos vivendo. A realidade, afinal, pode ser insuportável.
Pouco a pouco nos dessensibilizamos ao sofrimento do outro e, de súbito, acordamos desse estado letárgico com um retrato que diz: o respeito pelo falecimento de um trabalhador vale menos do que o lucro com as vendas do dia. Desse duro despertar advêm indignação e notas de retratação, seguidas de esquecimento.
Foi a reação apática à morte de Manoel que fez lembrar o falecimento do modelo Tales Cotta Soares, horas depois de haver desmaiado na passarela da São Paulo Fashion Week, em 2019. Nenhum desfile foi cancelado. Em ato de protesto, o rapper Rico Dalasam subiu então ao palco para criticar a indiferença à morte de Tales “como se a vida não valesse nada”. Os espectadores reagiram com aplausos, mas permaneceram no evento.
A incoerência da reação da plateia na ocasião reflete uma sociedade que se inflama diante do desprezo à vida, mas não promove mudança. Ovacionado, Dalasam protestava: enquanto os ricos não lamentarem a morte das pessoas “a agonia vai estar no travesseiro de todo mundo”.
O desrespeito à vida da pessoa que trabalha, empregado ou não, assume contornos ainda mais graves quando a ação ou omissão do tomador de serviços concorre para seu adoecimento. Também nesse caso o valor da vida do trabalhador é relativizado em prol do “bom” funcionamento de empresas que o substituem tal qual uma peça de engrenagem. Não há tempo para o cuidado – não há tempo sequer para o luto – quando o mercado dita as regras.
Embora o direito a um ambiente de trabalho seguro tenha amparo na Convenção nº 155 da Organização Internacional do Trabalho, aprovada por meio do Decreto Legislativo nº 2/92, e nos artigos 7º, XXII, 200, VIII, e 225 da Constituição, não é incomum a inversão da lógica de que a prevenção de riscos deva se sobrepor à reparação de danos. Em uma economia orientada à maximização do lucro, as balizas são traçadas de forma a priorizar a redução de custos: vale o que pesar menos no bolso do patrão.
Nesse contexto, há que se preservar o direito de recusa ao trabalho presencial a pessoas pertencentes a grupos de risco, extensível a todos trabalhadores e trabalhadoras a quem se imponha o retorno a um ambiente de trabalho desprotegido. No ponto, preocupa o argumento de que, em tais situações, ao empregado caberia apenas requerer a rescisão do contrato de trabalho, por “correr perigo manifesto de mal considerável” (art. 483, “c”, da CLT). Resumir a complexidade da questão nesses termos significaria impor à pessoa trabalhadora a escolha atroz entre trabalho inseguro e desemprego.
Iniciativas pautadas na monetização do risco devem ser olhadas com cautela. Normas que obrigam o pagamento de adicional de insalubridade durante a pandemia, como a Lei Distrital nº 6.589/2020, não resolvem quando se trata de preservar o direito à vida. Ao revés. Em muitos casos, desestimulam o investimento em medidas protetivas, como o fornecimento e a reposição de equipamentos de proteção, cujo uso adequado demanda treinamento e fiscalização. É preciso ir além e priorizar uma política preventiva, que coíba a exposição de trabalhadoras e trabalhadores a riscos que possam ser evitados ou reduzidos.
Na defesa do direito à vida de quem trabalha, a tutela jurisdicional específica de que trata o artigo 497 do CPC assume papel central. Para não se reduzir a relevância da prestação jurisdicional à da tutela ressarcitória, em que o prejuízo à saúde já se concretizou, há que se ter clareza quanto à autonomia dos conceitos de ato ilícito e dano. Embora existam danos que resultem de atos ilícitos, pode haver ato ilícito sem dano e dano sem ato ilícito.
A ilicitude do ato advém de sua desconformidade com o direito. Se causar prejuízo, esse ato, além de ilícito, pode gerar o dever de reparação. Por outro lado, ainda quando não exista dano ou culpa, subsiste o direito de se inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito. Essa compreensão é fundamental a uma atuação orientada à prevenção, que privilegie a incolumidade física e mental de trabalhadores e trabalhadoras, e não a reparação de danos.
Enquanto especialistas ainda discutem se chegamos ao platô nas curvas que retratam a evolução da pandemia, torna-se evidente que o ponto de inflexão só virá quando medidas preventivas forem adotadas com seriedade. Sem o compromisso de cumprir e fazer cumprir medidas de saúde e segurança do trabalho, qualquer tentativa de retorno às atividades presenciais sempre será marcada por adoecimento e mortes. E não haverá guarda-sóis capazes de esconder essa dura realidade.