Autogestão brutalizada da sobrevivência de entregadores de apps fica ocultada em um pseudo empreendedorismo de superação
Das novas palavras da moda, gourmetizar é uma das mais significativas ao mundo contemporâneo. Relaciona-se com a integração de ingredientes pretensamente refinados e apresentações primorosas para alimentos simples. Mas a gourmetização abstraiu a culinária e já se apresenta como a tendência contemporânea de se apropriar de embalagens estéticas para a vender (sempre muito caro) produtos e ideias. E tudo fica mais bonito, desejado e ilusório.
Dez anos após a criação do Programa de Microempreendedor Individual (MEI), a migração para trabalhos precários vem levando milhares de pessoas a serem genericamente chamados de empreendedores. Na narrativa gourmet, são aqueles que atenderam o chamado da realização, libertaram-se da CLT e gozam o glamour de escolher trabalhos, horários e preços. Será?
Nos últimos anos, o Brasil vem experimentando o fenômeno da substituição de postos de serviço de empregados formais por formas precarizadas de trabalho. A fórmula de escape do desemprego vem sendo o aceite de trabalhos informais, mal pagos e inseguros.
A publicidade é essencial na tarefa de gourmetizar, mas no despir da estética sobra uma realidade quase sempre decepcionante. Levantamento do Sebrae mostra que entre 2011 e 2019, parte considerável dessa força de trabalho migrou para o MEI, alterando o perfil humano da classificação. Aqueles que se declaravam terem sido antes empregados formais passou de 21% para 51%. Já a proporção de trabalhadores MEI sem formação superior passou de 17% para 31%.
Sem efetivas vantagens, o produto gourmetizado costuma sair bem mais caro que o original. Hoje, dos 6 milhões de MEIs em atividade, 4,6 milhões têm no programa sua única fonte de sobrevivência. Segundo estudos promovidos pela iDados, 41,7% dos trabalhadores por conta própria recebem menos de um salário mínimo mensal. Desses, 3,6 milhões (15%) vivem com até R$ 300 por mês.
Mas também se surfa na hipster pegada descontraída, glamourizando a simplicidade e fazendo do despojamento um modo de vida. Esse novo mundo da aparência tem na bicicleta seu veículo simbólico. Mas não as dobráveis, hiperleves e com calculado visual retrô. A hipsterização do mundo do trabalho está na extrema precarização dos novos trabalhadores de aplicativos do pedal.
A autogestão brutalizada da sobrevivência dos entregadores de apps fica ocultada em um pseudo empreendedorismo de superação. Usam bicicletas que nem sempre são suas, para um restaurante que certamente não é seu, através de um aplicativo milionário que nunca será seu. Sem previdência social, com poucas escolhas e quase nenhum futuro.
No novo mundo uberizado, os entregadores ciclistas por aplicativos ocupam um dos espaços mais significativos daqueles que se veem comandados por algorítimos. Apenas São Paulo conta com 30 mil, a maioria entre 18 e 27 anos. A faixa que mais sofre com o desemprego também passa ao espaço da micro renda, macro jornada e exponenciais chances de acidentes e adoecimentos.
Não, nada disso é empreendedorismo.
RODRIGO TRINDADE – Professor Universitário. Ex-Presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região – AMATRA IV. Juiz do Trabalho na 4ª Região.