Noemia Porto - Presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, doutora em Direito Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB); juíza Titular da 3ª Vara do Trabalho de Taguatinga/DF.
A importância social dedicada ao calendário tem relação com o enigma do tempo, que traduz uma experiência simultaneamente coletiva e particular. No limite, ele (o tempo) é um bem precioso, diante das incontáveis demandas da vida privada, da vida em sociedade e da vida no trabalho. Refletindo sobre o tempo da Justiça e o tempo do trabalho, duas concepções de senso comum merecem ser tensionadas, quais sejam, a de que a Justiça se interrompe com a mudança do calendário, de um ano para outro, e a de que os trabalhadores brasileiros realizam menos horas de labor do que outros em diversos países. E, entre uma e outra, há alguma relação?
Os serviços judiciários no Brasil, por força da Constituição, e por serem essenciais, não podem ser interrompidos (artigo 93, XII). E, de fato, não o são, nem mesmo no chamado recesso forense, de 20 de dezembro a 6 de janeiro, ou no período de janeiro de cada ano.
A Justiça do Trabalho de primeiro grau, em um dos 24 Tribunais Regionais do Trabalho, qual seja, o da 10ª Região, que contempla a capital da República (DF), julgou 3.088 processos na fase de conhecimento em janeiro de 2019 (disponível em: https://www.trt10.jus.br/institucional/corregedoria/produtividade1grau/produtividade/produtividade1_2019_01_jc.pdf). Esse total não considera despachos e outros tipos de decisões que os magistrados proferiram naquele mês ou, ainda, as atividades administrativas internas, como inspeções nas unidades judiciárias. Tais processos também não dizem respeito ao que foi produzido durante o serviço dos plantões judiciários, que servem justamente para que possam ser atendidos os casos que, legalmente, sejam considerados urgentes e que tenham ocorrência em dias sem expediente forense.
Estamos em janeiro de 2020. Observando a previsão no Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal (artigo 78), ocorrerá, no início de fevereiro próximo, a sessão formal de abertura do ano judiciário, ocasião em que serão noticiados e destacados os discursos proferidos durante a solenidade. Embora rituais sejam próprios a esse Poder da República, o fato é que a impressão que por vezes se estabelece é a de que a atividade da Justiça tirou férias e, portanto, foi interrompida e está sendo retomada naquele momento, apenas em fevereiro. Isso acontece porque boa parte da população desconhece tanto o fato de que os magistrados permanecem trabalhando, notadamente no primeiro e segundo graus, quanto a existência do serviço público do plantão judiciário.
No caso da Justiça do Trabalho, as decisões que são construídas e proferidas em todos os meses do ano não podem tardar. Isso porque os assuntos mais recorrentes são aqueles considerados básicos em qualquer relação contratual, sendo eles, aviso-prévio, multas por atraso no acerto da rescisão e a indenização de 40% sobre o FGTS, seguidos de férias, 13ºs salários e horas extras (disponível em: http://www.tst.jus.br/web/estatistica/jt/assuntos-mais-recorrentes), ou seja, parcelas que para o trabalhador representam fonte de sustento próprio e de sua família.
Sobre as horas extras, se forem consideradas as demandas que envolvem o respectivo adicional, os intervalos para descanso e os reflexos dessas verbas em outras parcelas, em todo o Poder Judiciário trabalhista, são mais de um milhão de processos.
Os trabalhadores brasileiros, segundo estimativas de maio de 2018, se ativam por volta de 1.737 horas por ano, isso sem contar o tempo gasto no deslocamento casa/trabalho e vice-versa que, considerando os graves problemas de mobilidade urbana que muitas cidades enfrentam, é fator de desgaste adicional para quem precisa do trabalho para sobreviver (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/brasileiro-trabalha-190-horas-para-comprar-um-smartphone.shtml).
Essa estimativa revela que se trabalha muito no Brasil, em número superior, inclusive, àqueles países conhecidos pela alta dedicação ao trabalho, como é o caso do Japão. A mencionada quantidade média de horas trabalhadas por ano (1.737), sem contar o deslocamento, não difere muito da avaliação feita pelo IBGE em 2015 (https://brasilemsintese.ibge.gov.br/trabalho/horas-trabalhadas-e-atividade.html). Portanto, a dedicação temporal ao trabalho pelo brasileiro em quantidade elevada de horas não é uma constatação peculiar, ao contrário, tem feito parte da realidade do mercado de trabalho do Brasil ao longo dos anos e se reflete nas ações judiciais.
O ano 2020 carregará a extravagância (ou nem tanto) de algumas tantas continuidades. Decisões judiciárias continuarão sendo construídas, desde o primeiro dia do ano, independente do calendário dos rituais, para dar respostas a demandas que retratam um mercado de trabalho com algumas repetições: rescisões sem acerto, excesso de horas sem pagamentos, desrespeito a intervalos de descanso, entre outros diversos descumprimentos de direitos fundamentais trabalhistas.