(*) Juiz do Trabalho no Rio Grande do Norte (21 Região)
Resumo: O presente artigo consiste em identificar em que medida o processo de formação do atleta profissional de futebol, envolvendo crianças e adolescentes, afeta negativamente o pleno desenvolvimento destes e se constitui numa das piores formas de trabalho infantil. O texto debate os reflexos, pressões e riscos que o trabalho infantil esportivo traz para as crianças e adolescentes.
Palavras-chave: Trabalho infantil esportivo. Formação do atleta de futebol. Proteção à criança e ao adolescente.
Abstract: The present article consists of identifying how the process of formation of professional soccer athlete, involving children and adolescents, negatively affects the full development of these and constitutes one the forms of child labor. The text discusses the reflexes, pressures and risks that children's sports work brings to children and adolescents.
Keywords: sportive Child labor. Soccer player training. protection of children and adolescents.
- INTRODUÇÃO
O ano de 2018 é tempo de realização de mais uma Copa do Mundo e é ainda o momento em que o planeta se volta para indagar sobre quem, dentre os atuais grandes astros do futebol mundial, serão os maiores protagonistas e destaques a desfilar nos gramados russos. O que há de comum entre os jogadores participantes do certame russo que se aproxima e os demais jogadores do mundo é a história de lutas e sacrifícios, antes dos momentos de glorias e conquistas.
Precedentes à fama, relativamente a cada renomado atleta, existem histórias penosas e trajetórias de vidas marcadas pela dor e o sofrimento de garotos e de seus familiares. O percurso formativo de um atleta não tem nada lúdico, por mais épico ou lírico que se tente ornamentar as histórias de vida de cada um. Por mais apaixonante que seja um jogador que faz um gol e leva a sua torcida ao êxtase, nada pode apagar as sequelas de um processo de profissionalização marcado pela carência e pelos abusos.
Ao se debruçar sobre o iter de formação profissional de qualquer atleta, e mais especificamente do jogador de futebol, é oportuno retomar o debate sobre as condições em que crianças e adolescentes são submetidos. Estes tendem a vivenciar uma rotina de treinos, jogos, exercícios físicos, enfim ao cumprimento de uma disciplina que os transformam em verdadeiros trabalhadores mirins. Assim, com base em tal preocupação, a pergunta de partida que inspira o presente artigo consiste em identificar em que medida o processo de formação do atleta profissional de futebol, envolvendo crianças e adolescentes, afeta negativamente o pleno desenvolvimento destes e se constitui numa das piores formas de trabalho infantil?
Ressalte-se antecipadamente e com escopo conceitual que, numa visão negativa, o trabalho infantil consiste na atividade, onerosa ou não, que é considerada inadequada à criança e ao adolescente por comprometer o pleno desenvolvimento destes.
Por outro lado existe uma concepção positiva no tocante às atividades desempenhadas por crianças ou adolescente, a qual é aqui denominada de AVE – Atividade Voluntária Educativa. A AVE consiste no trabalho que, pelo seu escopo educativo, cooperativo e socializador, ao invés de prejudicar, serve como meio para se promover o bem-estar e o desenvolvimento pleno da criança e do adolescente que o realiza.
Este autor escreveu alhures que a linha demarcatória a separar a AVE do trabalho infantil precisa ser claramente evidenciada segundo critérios pragmáticos (PALMEIRA SOBRINHO, 2015). Dentre esses critérios destacam-se os fatores recorrência, tempo dos serviços prestados, natureza das atividades desenvolvidas e potencial de dano, em sentido amplo, envolvido na atividade. A propósito, em postura muito similar, o UNICEF vem há muito tempo identificando alguns fatores que contribuem para caracterizar o trabalho infantil, tais como dedicação exclusiva, idade demasiada baixa, estresse físico, psíquico e social, comprometimento do acesso à escola, violação da dignidade etc
Antes de se responder à pergunta de partida, urge debruçar-se sobre a carreira futebolística não apenas como um sonho de crianças e adolescentes, mas também como um fenômeno social a promover uma inversão de valores. A prática adultocêntrica está a prejudicar o interesse que deveria ser protegido acima de todos os outros, ou seja, está a inverter para negar aquilo que o constituinte atribuiu o patamar de superioridade. Com efeito, o art. 267, da Constituição Federal, diz que as crianças e adolescentes tem interesse superior.
A dimensão de tal superioridade de interesses está clarificada de forma induvidosa na Carta Magna porque o constituinte de 1988 disse expressamente que crianças e adolescentes têm prioridade absoluta no acesso saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.
É no contexto dessa visão de superioridade dos interesses da criança e do adolescente que a presente leitura introdutória coloca como premissa a tese de que há em curso uma perversão da formação do atleta mirim na atualidade. Esse desvio vem sendo reproduzido em larga medida, porque em muitos casos a família do menino ou menina, de modo “egoístico” ou premida pelas precárias condições econômicas, acaba privilegiando os interesses econômicos de parentes do atleta ou mesmo de um terceiro, tais como olheiros, treinadores, empresários, etc.
Ressalte-se, antes de qualquer conclusão precipitada dos leitores, que o presente artigo não tem por objetivo disseminar nem o medo e nem o trucidamento moral em relação aqueles que se ocupam do processo formativo das categorias de base. Do mesmo modo, é preciso destacar que nem todos os empresários e pais que se interessam em estimular a criança ou o adolescente para a carreira esportiva devem ser vistos como aproveitadores ou irresponsáveis. Por precaução também é honesto dizer que, apesar dos casos de abusos sexuais recorrentes nas escolinhas de futebol, envolvendo principalmente meninos, comportamentos abusivos podem existir em vários setores da sociedade, razão pela qual nem todos os treinadores e clubes de futebol envolvidos na formação do atleta devem ser vistos como perigosos ou suspeitos.
- OS SONHOS DE UM MENINO
Em qualquer campo de várzea do país há garotos e garotas que sofrem, jogam futebol e sonham não apenas em fugir das privações e das carências. Sonham em não terem a sua trajetória de vida interrompida pela violência, pela guerra do tráfico e pela drogadição. Sonham em se tornarem craques de futebol e tirarem os seus pais e familiares da miséria. Certa vez, em 1992, um jovem atleta baiano de 17 anos, chamado Alex Alves, impactou um repórter em sua primeira entrevista como profissional. Qual o seu sonho? Perguntou o jornalista. O garoto estreante no time do Vitória, da Bahia, respondeu sem pestanejar: “De imediato é receber meu primeiro salário como profissional e comprar uma geladeira para a minha mãe.”
A resposta de Alex refletiu e ainda hoje reflete o conteúdo de um sonho permeado de desejos de consumo. Mas há também outro objetivo, o desejo de se tornar famoso envergando a camisa de um grande clube, quem sabe o PSG, o Chelsea, o Barcelona, o Real Madrid, etc. Embalado por tais sonhos, meninos e meninas almejam um grande contrato, uma rotina de treinos e jogos, a atenção dos holofotes e câmeras, as entrevistas, as manchetes dos noticiários, os gols, as viagens de avião, o frisson dos fãs a pedirem autógrafos, o deleite em hotéis e arenas famosas, etc.
A relação entre os empresários, os clubes de futebol e os meninos nem sempre é transparente ou ética. Por vezes, tal relação tende a ser traumática, recheada de desilusões, estresse, depressão, intimidação, chantagem ou abandono. Além de toda essa teia de problemas, urge considerar-se que o ciclo de projeção do atleta é curto e fugidio, de modo que a perspectiva de fracasso é uma constante concreta. Isso explica porque há certa irracionalidade nas peneiras dos clubes. Nem sempre estes selecionam um garoto com base nas suas habilidades ou dons, mas em fatores não vinculados à técnica, tais como a empatia ou o prestígio do empresário ou olheiro com a agremiação esportiva.
É em busca desse destino imaginariamente alvissareiro que há garotos e garotas que não fazem outra coisa na vida que não seja jogar, jogar e jogar. Como se diz entre os boleiros: acorda-se para jogar e joga-se para dormir e sonhar. Não raro abandonam a escola, as brincadeiras de criança ou adolescente, afastam-se da sua comunidade, separam-se da família e amigos e até mudam de endereço. Tudo parece valer a pena na sofrida busca de uma experiência épica de construção e realização de um sonho. É nesse contexto que meninos e meninas são “transformados” em “produtos de exportação” e “animais” em processo de adestramento. Tornam-se os “garotos maquinais” cujo tempo cotidiano é totalmente preenchido com o mundo do futebol. Mesmo nos momentos de lazer vão assistir vídeos ou filmes de esportes ou dar um trato no visual para se parecerem com seus ídolos. Assim, no visual são evidentes os adereços: a tatuagem, o brinco, as roupas, o corte de cabelo, as bijuterias imitando joias caras, etc.
- AS PRESSOES E OS RISCOS
Sacrifício é uma palavra tão vivenciada e presente no cotidiano dos meninos e meninas quanto a busca pela ascensão na carreira. Não por acaso, vários deles ou delas deixam as suas comunidades, famílias e cidades e são colocados, não raras vezes, sob os “cuidados” de desconhecidos, para experimentarem a disciplina rígida e as condições de vida deploráveis. Muitos são os relatos de garotos que são ludibriados com promessas, moram em ambientes inóspitos, têm alimentação precária, apresentam sérias carências materiais e são submetidos a assédio moral e a abusos sexuais.
Falar de tais sequelas é abrir-se para uma realidade invisível aos olhos da mídia esportiva. Gilberto Nascimento (2016), em reportagem publicada na Revista Carta Capital, em 2008, colheu relatos sobre o cotidiano dos atletas mirins. São depoimentos de meninos que são violentamente retirados de suas residências mediante fraude, alguns sem ter sequer a autorização dos pais. O tráfico de jogadores mirins é por vezes disfarçado sob a forma de convites para peneiras, realização de intercâmbios, estágios, etc. Nascimento (2016) narra, ainda, a situação dos alojamentos onde ficam os meninos, sem a menor estrutura de higiene. O citado autor discorre também sobre os casos de abuso sexual, pedofilia, cobrança de valores e extorsão à família dos garotos, sob a promessa destes serem aprovados numa peneira. Outros relatos são de maus tratos, prostituição, assédio e toda sorte de chantagem a que estão submetidos o adolescente e a sua família. A reportagem relata, por último, os casos de garotos que são submetidos a orientação de pessoas não qualificadas que lhes impõem uma rotina de treinamentos físicos extenuantes e incompatíveis para a sua idade óssea e para a sua estrutura muscular em formação.
Geralmente as cobranças das pessoas que cercam o garoto e a carga que este atrai para si tendem a desencadear um processo de somatização, a ponto de possibilitar um comprometimento do seu sistema imunológico e proporcionar o surgimento de doenças ou lesões.
Segundo o Manual do CEDECA - Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (2013), os riscos mais recorrentes dos jovens atletas são:
- a evasão escolar, a despeito de algumas escolas serem mais flexíveis e tolerantes em relação aos atletas mirins;
- a profissionalização precoce;
- a exploração e o abuso sexual;
- os danos à integridade física advindos do alto impacto da atividade;
- e o distanciamento da convivência familiar como fonte de oportunismo de aliciadores.
Pode-se ainda acrescentar outros riscos, tais como: os danos psicológicos decorrentes da pressão da família, com violação à liberdade de escolha do menino ou menina; as discriminações em razão de cor, etnia, orientação religiosa, orientação sexual, deficiência; e a pressão de torcedores sobre os garotos durante as competições, etc (PEREIRA, 2014). Acrescente-se, ainda, que os abusos tendem a produzir reflexos na vida de uma pessoa podendo levá-las a sentimentos suicidas, traumas sexuais, uso de drogas, síndrome do alcoolismo e isolamento social.
Consigne-se que todas as formas de discriminação tendem a afetar com maior repercussão a vida das crianças e adolescentes, em razão da instabilidade própria de quem está em processo de formação. No tocante aos danos à integridade física, urge acentuar que para os guris ou gurias, como são chamados os meninos e meninas que comparecem às peneiras realizadas por clubes ou empresários, o futebol não é passatempo. O compromisso de apresentar um ótimo nível de rendimento tende a provocar uma verdadeira canibalização da liberdade dos atletas mirins. Isso representa dizer que seguir a carreira de jogador é um negócio sério que implica dedicação, rotina exaustiva de treinos e jogos, disciplina rígida e relações pessoais marcadas por forte pressão dos familiares, dos treinadores, dos olheiros, etc. Afinal, o garoto passa a ser considerado uma “mercadoria”, não raro concebida como a galinha de ouro de uma estratégia de marketing, ou seja, um projeto de investimento para gerar resultado e quem sabe milhões.
Os treinos são disputadíssimos e a peneira é uma chance ímpar para o garoto(a) demonstrar a sua gana, a garra e a força para seguir em frente. Sobram choques, cotoveladas, empurrões, faltas viris e as jogadas mais ríspidas que fazem parte do cotidiano das peneiras envolvendo as crianças e adolescentes. Nas arquibancadas ou na parte externa das quatro linhas não faltam os gritos e os assovios a pressionarem os atletas. É nessa perspectiva que cada “seletiva” torna-se algo tão sério quanto uma partida de final de campeonato.
Os relatos de abusos sexuais são recorrentes na história da infância de vários ex-atletas. Ilustre-se com a denúncia de ex-jogadores de futebol à imprensa inglesa, em 2016. Os denunciantes relatam que sofreram violência sexual de ex-treinadores ou de pessoas que estavam no controle da atividade esportiva de crianças e adolescentes etc. Dos onze atletas que denunciaram alguns de seus ex-treinadores, estão Paul Stewart, David White, Andy Woodward e Steve Walters. Estes três últimos afirmaram que na infância, quando tinham entre 11 ou 12 anos de idade, foram molestados sexualmente pelo treinador Barry Brennel, no Crewe Alexandra, clube da terceira divisão do futebol inglês. Chris Unsworth, ex-jogador do Manchester City, denunciou que durante a sua infância foi estuprado por mais de cem vezes, a partir dos 9 anos de idade (THE GUARDIAN, 2016). Os relatos mencionados revelam a importância de se romper com a cultura do silêncio. Em artigo publicado na Revista norte-americana “The Conversation”, Helen Othon afirma que tal ruptura com a cultura do silêncio sobre o abuso sexual de crianças e adolescentes no futebol é, grande parte, explicada nos Estados Unidos pelo peso que adquire entre os atletas masculinos a chamada “cultura Jock”,[1] estilo que marca a conduta de resignação, resiliência, virilidade e ethos de “sofrer em silêncio”, não dissipando energias para tratar de questões que não sejam mais especificamente aquelas relacionadas aos treinos e a preparação.[2]
O trabalho infantil esportivo, em larga medida, tende a ser não apenas uma busca da criança e do adolescente, mas sim um projeto ou investimento da família do garoto ou garota. A expectativa de fama, bons salários e elevação do consumo enchem os olhos de todos os que rodeiam o menino ou menina. A família tende a abusar da criança ou ao adolescente na medida em que ela atribui a este a responsabilidade de ser o provedor do núcleo familiar. Constitui abuso familiar também as situações de violência financeira, em que familiares, empresários ou “responsáveis” se apoderam e dilapidam o patrimônio do garoto ou da garota. Para evitar a perpetração de tais abusos, torna-se importante que o valor arrecadado pela Justiça, para fins de reparação a que tenham direito as crianças e adolescentes, seja depositado numa poupança em favor da vítima, de modo que esta somente fique autorizada a sacar quando atingir a maioridade.
Os garotos e garotas brasileiros são vistos com muita expectativa no mercado internacional da bola e não raro descritos, como detentores de um talento peculiar que é simplesmente explicado como dádiva ou dom.[3] Em parte, setores da mídia internacional (MENESES, 2007), interpretam equivocadamente que o Brasil somente revela bons jogadores porque aqui haveria uma cultura de obstinação dos meninos boleiros que largam tudo, inclusive a educação escolar, para vivenciarem a experiência “mágica” de se tornarem jogadores. Nessa percepção está subjacente a ideia de que os garotos desde tenra idade seriam estimulados a uma rotina de resiliência, ou seja, são acostumados a enfrentar uma série de obstáculos e sacrifícios para abraçarem uma carreira em formação. Essa visão épica da formação de garotos no Brasil é comprovadamente falsa, pois a evasão escolar, os maus tratos e as carências, a que são submetidos crianças e adolescentes, apenas contribuem para:
- impedir o desenvolvimento dos horizontes cognitivos e emocionais dos meninos e meninas em formação, impedindo um nível de qualificação que lhes permita autonomia para tomar decisões sobre a gestão da sua carreira, da sua vida pessoal e do seu futuro profissional;
- entorpecer a consciência crítica dos garotos e garotas no tocante ao exercício da cidadania e dos seus direitos;
- facilitar a manipulação por parte dos exploradores;
- gerar no futuro adultos desqualificados, sem possibilidades de busca de alternativas fora do futebol.
Não é de estranhar relatos de preconceitos no tocante aos garotos pobres que procuram um clube para tentar a vida como atleta. O fato muitas vezes de um menino vir de um bairro ou zona violenta, onde há gangues, tráfico de drogas, prostituição, etc é interpretado sob dois enfoques: primeiro, que ele é potencialmente violento e traz em si uma carga de agressividade que deve ser canalizada para o futebol; e segundo, que ele é propenso à desordem, razão pela qual não raro os meninos são submetidos a uma disciplina espartana.
A pressão dos familiares é tamanha que não raro os garotos deixam de ver o futebol como uma diversão ou lazer. A tensão de ter que encarar algo como uma obrigação de resultado tende a provocar no menino ou menina desde irritação e estresse a problemas psíquicos mais sérios como a ansiedade, a insônia, o pânico e até a depressão. [4]
A pressão sobre os garotos e garotas pode ser qualificada como ferrenha. Há pais que não admitem que os seus filhos falhem nas peneiras. Isso ocorre porque nem sempre os garotos lutam somente pelo seu sonho, mas sim para compensar o sonho frustrado dos pais. Meneses (2014) cita o caso do pai do garoto Kevin Mendez que deixou de falar por vários dias com o filho por este ter perdido um pênalti durante uma peneira. O citado garoto disse ao jornalista que as melhores partidas que havia jogado coincidiu com aquelas em que seu pai deixou de ir a campo.
Há também a pressão dos treinadores, olheiros e dos “investidores”. O mercado de negociação dos garotos envolve um enorme contingente de intermediários. É prática usual a competição empresarial nesse campo, de modo que é comum um empresário “roubar” o garoto de um outro empresário. Para isso estratégias são utilizadas, tais como matérias jornalísticas pagas para enaltecer ou criticar um garoto, a concessão de mimos para o menino e de presentes para os familiares, sem falar na possibilidade de existir uma campanha suja na qual um negociante faz em relação à reputação do outro. Meneses (2014) relata que não é incomum crianças e adolescentes que são explorados tanto pelos empresários quanto pelos pais. O mencionado autor relata que entre considerável parcela dos empresários há a percepção de que a “venda de meninos” tem que ser um jogo rápido e sem apegos ou relações afetivas, posto que há uma forte probabilidade de que o garoto envolvido seja num futuro próximo mais um “menino sonhador e fracassado”. E, na lógica de tal percepção, manter vínculo afetivo com um “provável fracassado” poderá sair mais caro para o agente, pois este “terá que mantê-lo” por razões afetivas ou emocionais.”
Outra modalidade de fraude na contratação de crianças e adolescentes ocorre por meio da celebração de contratos com os pais destes, os quais são fichados como empregados de empresas de empresários ou de clubes de futebol. Há relatos de casos em que os pais foram contratados como roupeiros, jardineiros, cozinheiros ou funcionários da secretaria do clube. Um caso que veio à tona em Portugal ocorreu com o brasileiro Anderson que, aos 17 anos, foi jogar no Porto, mas a transação envolveu a formulação de um contrato de trabalho fictício com a mãe do garoto (SAPO, 2015). É notória a informação de que para o menino Leo Messi ser levado à Europa pelo Barcelona, este clube teria precedentemente contratado o pai do atleta, Jorge Messi, na qualidade de informante.
O sonho de ser um jogador famoso e rico remexe o imaginário das famílias e dos garotos. Meneses (2014) relata que em 2002, o canal 13 da TV argentina resolveu realizar um reality show , denominado “caminho para a glória, no qual os garotos inscritos deveriam demonstrar em 15 minutos as suas habilidades futebolísticas. Foram mais de 12 mil inscritos, sendo que muitos dos quais sequer conseguiam terminar suas apresentações em face da ansiedade e do medo de errar. Ao vencedor era dado um prêmio em dinheiro, um carro e uma viagem para a Espanha, onde faria um teste no Real Madrid. Aimar Centeno foi o vencedor, garoto que aos 15 anos se mudou da cidade onde residia com os pais para ir morar em Rosário, sede do seu novo clube. Longe de sua terra natal, Aimar disse ter vivido a angústia de ficar distante dos pais e dos seus quatro irmãos. Aimar foi ao teste no Real Madrid e, no primeiro treino, contundiu-se e meteoricamente deixou de ser a grande promessa. Atualmente, segundo Meneses (2014), Aimar é um vendedor ambulante que anda a contar a sua história de fracasso pelas ruas de Rosário, na Argentina.
Além de toda a pressão dos familiares, os garotos não raro tendem ser uma presa fácil nas mãos de empresários inescrupulosos. Estes saem à caça dos meninos talentosos como quem procura um cão pedigree ou um cavalo puro sangue. Não é incomum histórias de fraudes, p. exemplo, de empréstimos leoninos feito aos familiares do garoto, criando uma espécie de servidão por dívida. Também não são raras histórias de empresários que utilizam o chamado “gato, ou seja, obrigam os garotos a utilizarem documentos ou passaportes falsos ou adulterados, a exemplo do que ocorreu no famoso caso do ex-jogador Sandro Hiroshi, que usou documentação falsa na qual constava 1981 como ano de nascimento, quando de fato ele nascera em 1979, tudo com o fim de participar de competições de juniores e de se tornar “uma mercadoria“ mais atraente e cobiçada no mercado da bola.[5]
A carreira profissional de um atleta de futebol é em sua maioria curta, arriscada, competitiva, precarizada e proletarizada. Segundo dados contidos no site da CBF (2016), no tópico registros e transferências, no ano de 2015 apenas 1,35% dos jogadores de futebol no Brasil ganhavam mais de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). A maioria, ou seja, 23.382 jogadores profissionais, o que corresponde a 84,32% dos atletas, ganhou até o valor mensal de R$ 1.000,00 (um mil reais), em 2015. Se por um lado, a maioria dos atletas ganha salários inferiores ao de um servente de pedreiro, por outro lado, os clubes faturaram, em 2015, aproximadamente 680 milhões de reais com a exportação de atletas para o exterior.
- O “FAIR PLAY FINANCEIRO” E O SISTEMA DE CORRELAÇÃO DE TRANSFERÊNCIAS (TMS - TRANSFER MATCHING SYSTEM”)
Para combater e desestimular as práticas ilegais e antiéticas, a UEFA (Union of European Football Associations) construiu o conceito de fair play financeiro, que está estruturado em três princípios básicos: primeiro, o princípio do cumprimento das obrigações sociais e negociais, não se admitindo nesse particular qualquer hipótese de trapaça, sonegação ou atraso de salários; segundo, o princípio do equilíbrio financeiro, de modo que a despesa no triênio seja compatível com a receita do respectivo período; e por último o princípio da gestão sustentável de investimentos, evitando salários irracionais e gastos suspeitos.
No tocante ao cumprimento de suas obrigações sociais, a exigência de responsabilidade social dos clubes de futebol traduz-se no dever destes adotarem um conjunto de ações e iniciativas que revelem, dentre outros aspectos, um comportamento organizacional de boa-fé objetiva e de respeito à proteção integral da criança e do adolescente. Tal proteção exige que os clubes não burlem a legislação referente à contratação, registro e transferência de jogadores. Sob esse aspecto, em 2014 tornou-se pública a notícia de que a FIFA, além de aplicar uma multa de pouco mais de um milhão de reais ao Barcelona, proibiu este clube, pelo prazo de um ano, de contratar atletas. A punição foi aplicada porque foi constatado que a equipe catalã teria feito mau uso do seu potencial financeiro na medida em que havia contratado dez atletas, entre crianças e adolescentes, no período compreendido entre 2009 e 2013, violando a regra da FIFA que veda a transferência internacional de atletas com menos de 18 anos de idade.
Em 11 de novembro de 1999, o jornal espanhol El País publicou uma reportagem denunciando o tráfico de jogadores crianças e adolescentes, que eram levados de países periféricos para países europeus. Nesse mesmo ano, segundo Meneses (2014), em levantamento da imprensa italiana, constatou-se que 57% dos meninos que chegavam à Itália tinham menos de 12 anos e eram oriundos da África ou do leste europeu. Acrescente-se, ainda, que “1360 eram crianças que não tinham nem dez anos e 146 tinham entre seis e oito anos” (MENESES, 2014, p. 88).
Para combater o tráfico humano, pela mediação do futebol, a União Europeia criou em 2001 o Regulamento Internacional de Transferências, proibindo a circulação de crianças e adolescentes para a Europa. Muitas crianças e adolescentes continuaram a ser abandonados pelos seus supostos empresários, conforme denunciou a ONG francesa Culture Foot Solidaire, que realizava o acolhimento assistencial de meninos jogadores de futebol. Consoante a citada ONG, supostos agentes de futebol continuam a burlar a legislação e a adulterar a idade dos meninos.
Em 2009, o presidente Lula solicitou ao Joseph Blater, então dirigente da FIFA, que criasse um mecanismo para conter a transferência de crianças e adolescentes para a Europa. A intervenção do ministro Aldo Rebelo também engrossou o coro daqueles que estavam convencidos de que algo deveria ser feito para coibir as transferências abusivas de jogadores mirins. Como resposta, Blater convocou uma reunião extraordinária nas Bahamas, em que os presidentes das confederações discutiram um “Sistema de Correlação de Transferências”, também conhecido como TMS (Transfer Matching System”), aprovado em 2010, para evitar negociações ilícitas e prejuízo dos meninos e meninas jogadores de futebol.
O TMS é uma plataforma alimentada pelas confederações e pelos clubes profissionais de futebol estabelecida como condição para a ultimação das transações envolvendo os atletas de clubes de futebol. Os gestores do programa são formados para estabelecer a confidencialidade das informações e zelar pela transparência das transações envolvendo atletas. A FIFA atualmente proíbe as transferências de jogadores menores de 18 anos, salvo se os pais do garoto migraram para o país, no qual está a sede do clube contratante, por motivos que não têm ligação com o futebol.
Um dos aspectos centrais do fair play financeiro consiste na proibição de exploração do trabalho infantil esportivo. Em 2014, a CBF comprometeu-se, perante a CPI da Exploração sexual de Crianças e Adolescentes, a adotar 10 (dez) medidas para coibir desde o abuso sexual até o tráfico de crianças e adolescentes. A notícia ruim é que a citada entidade futebolística não cumpriu o que prometera. Na esfera estatal ainda não existe um órgão voltado especificamente para monitorar ou promover uma política de prevenção aos abusos sexuais e ao tráfico no meio esportivo.
Se, apesar das regras do fair play financeiro, o aumento do tráfico persiste é porque em larga medida ele é uma decorrência de um processo de precarização das relações de trabalho do atleta profissional que se traduz em insegurança para os atletas. Prova de tal insegurança é retratado com o drama dos jovens atletas que são levados para Europa e lá são abandonados pelos empresários. Dados da FIFPRO (Federação Internacional dos Jogadores Profissionais de Futebol), divulgados pelo site esportivo português SAPO, confirmam que a metade dos atletas profissionais de futebol com atuação na Europa não têm contrato com o clube em que prestam serviços. Levantamento do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras de Portugal investigou, em 2015, 104 equipes de futebol, as quais constataram que, num contingente de 503 atletas estrangeiros, existiam 203 em situação ilegal. O aludido site cita ainda o caso do brasileiro Caio Silva, de 22 anos, que entrou em contato com um conhecido jornalista lusitano para afirmar que estava desesperado, pois o agente o tinha abandonado e o clube para o qual ele veio fazer o teste exigia a sua imediata retirada dos alojamentos da aludida entidade esportiva. O site citado não identifica o nome do jornalista que pagou a passagem de regresso de Caio, mas afirmou que esses casos são recorrentes e cada vez mais envolvem adolescentes oriundos da África e do Brasil (SAPO, 2015).
- O QUADRO NORMATIVO DE PROTEÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE E O CONTRATO DE TRABALHO DESPORTIVO: A CLÁUSULA DE FORMAÇÃO E A IDADE MÍNIMA DO ATLETA
A capacidade laborativa no Brasil somente é chancelada pelo direito se o sujeito trabalhador contar com, no mínimo 16 anos, ou a partir dos 14 anos na condição de aprendiz. Isso significa que viola a Constituição Federal o vínculo com atletas com idade inferior a 14 anos.
Nos últimos anos clubes de futebol como o Atlético-MG, Cruzeiro, Grêmio, Internacional, Santos e Vasco chegaram a assinar um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), comprometendo-se a não conceder alojamento a atletas com menos de 14 anos. Todavia, a fiscalização trabalhista não vem conseguindo monitorar todos os clubes de futebol, de modo que as pequenas equipes não são sequer visitadas pelos auditores.
O Regulamento da Fifa autoriza aos clubes a contratação de atletas com idade inferior a 18 anos, mas somente pelo período máximo de três anos. A Lei Pelé autoriza a contratação de adolescentes com no mínimo 16 anos, pelo período de até cinco anos.
Um projeto apresentado pelo deputado Rogério Marinho, e apoiado pela chamada “bancada da bola”, propôs um projeto de lei para permitir que os clubes de futebol possam contratar os adolescentes a partir dos 12 anos como forma mais eficaz para blindar os clubes contra o assédio dos empresários e clubes estrangeiros. A proposta do deputado Rogério Marinho atende a pressão de clubes, de cartolas, de empresários e da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Em torno de tal projeto há todo uma visão de que para o resgate do prestígio do futebol brasileiro seria necessário um rompimento com uma política excessivamente protecionista, em relação às crianças e aos adolescentes, para permitir que estes tenham um envolvimento cada vez mais cedo com o processo de formação profissional.
- O quadro normativo de proteção à criança e ao adolescente
O maior avanço em termos legislativos, no tocante à criança e ao adolescente, foi a ruptura com a doutrina da situação irregular e a construção da doutrina inspirada no princípio da proteção integral, a qual toma um impulso inicial, no cenário internacional, a partir da Declaração sobre os Direitos da Criança, de 1989. No plano legislativo interno, o princípio da proteção integral atinge seu auge normativo com o início de vigência do art. 227, da Carta Magna, e com o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente.
Registre-se que no âmbito do direito internacional do trabalho, a proteção à criança e ao adolescente ganharam destaque com duas Convenções da OIT (Organização Internacional do Trabalho): a primeira é a Convenção 138, que trata da idade mínima para admissão no trabalho; e a segunda é a Convenção 182, que trata das piores formas de trabalho infantil.
A EC 20/1998 elevou a idade mínima para o trabalho, de modo que a capacidade laborativa do adolescente somente é admitida se este tiver no mínimo 16 anos, exceto em relação ao aprendiz a partir dos 14 anos.
A proteção integral consiste no direito constitucional que toda criança, adolescente e jovem tem de acesso, com prioridade absoluta, aos direitos à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Esse direito corresponde ao dever do Estado, da família e da sociedade de colocarem os mencionados destinatários a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Além desses direitos de caráter geral, o constituinte de 1988 determinou que o interesse superior da criança, do adolescente envolve a proteção especial, a qual consiste em: fixação da idade mínima para o trabalho; garantia de direitos previdenciários e trabalhistas; garantia do trabalhador adolescente e jovem à escola; obediência aos princípios de brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
Seguindo o mesmo direcionamento da legislação trabalhista (ex: art. 404, da CLT), o ECA proíbe ao adolescente, empregado ou aprendiz, o trabalho: noturno, perigoso, insalubre, ou penoso; em locais prejudiciais à formação e ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola.
As divisões de base nas entidades formadoras de atletas de futebol, no Brasil, geralmente compreendem as seguintes categorias: fraldinha (7 a 9 anos), dente de leite (10 a 11 anos), pré-mirim (11 a 12 anos), mirim (12 a 13 anos), infantil (14 a 15 anos), infanto-juvenil (15 a 16 anos), juvenil (17 a 18 anos) e júnior (17 a 20 anos).
A Lei Pelé, que trata do atleta em formação, diz em seu art. 3º que o desporto pode ser reconhecido em qualquer das seguintes espécies:
- Desporto educacional, praticado nos sistemas de ensino e em formas assistemáticas de educação, evitando-se a seletividade, a hipercompetitividade de seus praticantes, com a finalidade de alcançar o desenvolvimento integral do indivíduo e a sua formação para o exercício da cidadania e a prática do lazer;
- Desporto de participação, de modo voluntário, compreendendo as modalidades desportivas praticadas com a finalidade de contribuir para a integração dos praticantes na plenitude da vida social, na promoção da saúde e educação e na preservação do meio ambiente;
- Desporto de rendimento, praticado segundo normas gerais desta Lei e regras de prática desportiva, nacionais e internacionais, com a finalidade de obter resultados e integrar pessoas e comunidades do País e estas com as de outras nações.
- Desporto de formação, caracterizado pelo fomento e aquisição inicial dos conhecimentos desportivos que garantam competência técnica na intervenção desportiva, com o objetivo de promover o aperfeiçoamento qualitativo e quantitativo da prática desportiva em termos recreativos, competitivos ou de alta competição.
Observe que a lei considera em formação o jovem dos 14 aos 20 anos, sendo que o jogador somente pode ser contratado como profissional, a partir dos 16 anos. O modo planejado e rígido da disciplina aplicada à criança e ao adolescente não é suficiente para evitar que os atletas mirins estejam a praticar o desporto de rendimento. Urge uma conscientização e uma fiscalização pedagógica entre aqueles que estão envolvidos no processo de formação do atleta profissional, com a finalidade precípua de fazer valer o respeito aos direitos da criança e do adolescente.
Nas modalidades anteriormente apresentadas, vale destacar que a Lei nº 13.155/2015 trouxe como inovação o conceito de desporto de formação (art. 38), além de estabelecer que o atleta de modalidade olímpica ou paraolímpica, com idade igual ou superior a 16 anos, beneficiário de Bolsa-Atleta de valor igual ou superior a um salário mínimo, é filiado ao RGPS - Regime Geral de Previdência Social como contribuinte individual, incumbindo ao Ministério do Esporte efetuar o recolhimento da contribuição previdenciária, descontando-a do valor pago aos atletas.
Segundo a Lei Pelé, o desporto de rendimento pode ser praticado de modo profissional, quando o atleta tiver precedentemente pactuado com a entidade de prática desportiva uma remuneração em contrato formal de trabalho, ou ser praticado de modo não-profissional, hipótese esta caracterizada pela liberdade de prática e pela inexistência de contrato de trabalho, sendo permitido somente o recebimento de incentivos materiais e de patrocínio.
Na prática, há entidades que invocam promover o desporto de formação, mas em realidade exploram o desporto de rendimento. Sob esse aspecto, as escolinhas que alegam promoverem o desporto de formação devem ser registrados junto ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e Adolescente - CMDCA, consoante a exigência do art. 90 do ECA.
5.2. O contrato especial de trabalho esportivo
A exploração e a gestão do desporto de forma profissional, segundo a Lei Pelé, constituem exercício de atividade econômica sujeitando-se, especificamente, à observância dos princípios: I - da transparência financeira e administrativa; II - da moralidade na gestão desportiva; III - da responsabilidade social de seus dirigentes; IV - do tratamento diferenciado em relação ao desporto não profissional; e V - da participação na organização desportiva do País.
São requisitos para a validade do contrato especial de trabalho esportivo: o agente capaz; o objeto lícito; e a forma prescrita em lei. Estes são condições de validade do pacto laboral do atleta profissional.
Na modalidade contratual em apreço, o requisito do agente capaz deve respeitar a disciplina geral do Código Civil e do art. 7º, XXXIII, da Carta Magna.
No tocante à idade, observa-se que para o direito do trabalho a capacidade laborativa somente surge a partir dos 14 anos, ao passo que para o direito civil, a capacidade para a prática dos atos da vida civil somente surge a partir dos 16 anos.
O art. 42, da Lei Pelé, veda a participação em competições desportivas profissionais de atletas não-profissionais com idade superior a vinte anos. Conforme determina o legislador pátrio (art. 43, Lei 9.615/98), é vedada a prática do profissionalismo, em qualquer modalidade, quando se tratar de:
- Desporto educacional, seja nos estabelecimentos escolares de 1º e 2º graus ou superiores;
- Desporto militar;
- pessoas até a idade de dezesseis anos completos.
Quanto à forma o contrato especial de trabalho esportivo é sempre escrito. O objeto de tal pacto é a atividade esportiva lícita, isto é, desde que em consonância com os preceitos constitucionais e, mais especificamente, de acordo com os dispositivos da Lei Pelé.
A entidade de administração do desporto será obrigada a exigir da entidade de prática desportiva o comprovante do visto de trabalho do atleta de nacionalidade estrangeira, fornecido pelo Ministério do Trabalho e Emprego, sob pena de cancelamento da inscrição desportiva (art. 46, § 2º, Lei Pelé).
No tocante à disciplina do contrato de trabalho esportivo, é importante acentuar que a Lei nº 12.395, de 16.03.2011, além de ter revogado a Lei nº 6.354, alterou dois diplomas legais: primeiro, a Lei nº 9.615/1998 (Lei Pelé), que institui normas gerais sobre desporto; e, por último, a Lei 10.891/2004, que institui a Bolsa-Atleta e criou os Programas Atleta Pódio e Cidade Esportiva.
- O contrato especial de trabalho desportivo e a cláusula de formação
- Introdução
A cláusula de formação, nos termos da Lei de Desportos, consiste no direito de a entidade de prática desportiva formadora do atleta assinar com este, a partir de 16 (dezesseis) anos de idade, o primeiro contrato especial de trabalho desportivo, cujo prazo não poderá ser superior a 5 (cinco) anos (art. 29, Lei 9.615).
Em tal hipótese a contratação do atleta em formação será feita diretamente pela entidade de prática desportiva formadora, sendo vedada a sua realização por meio de terceiros (art. 29, § 12, Lei 9.615).
O contrato de formação do atleta deverá ser registrado pela entidade de prática desportiva formadora perante a entidade de administração da respectiva modalidade desportiva (art. 29, § 13, Lei 9.615).
- Quem pode ser entidade formadora de atleta?
A entidade de prática desportiva formadora é aquela que comprovadamente preenche os requisitos legais e, em consequência, é reconhecida como tal, conforme certificado emitido pela entidade nacional de administração do desporto. Em consulta ao site da CBF, no início de 2018, observa-se que pouco menos de 50 (cinquenta) entidades tem o certificado de formador.[6]
O legislador disciplina que somente será reputada formadora a entidade de prática desportiva que, além de fornecer aos atletas programas de treinamento nas categorias de base e complementação educacional, cumprir cumulativamente os seguintes requisitos:
- Estar o atleta em formação inscrito por ela na respectiva entidade regional de administração do desporto há, pelo menos, 1 (um) ano;
- Comprovar que, efetivamente, o atleta em formação está inscrito em competições oficiais;
- Garantir assistência educacional, psicológica, médica e odontológica, assim como alimentação, transporte e convivência familiar;
- Manter alojamento e instalações desportivas adequados, sobretudo em matéria de alimentação, higiene, segurança e salubridade;
- Manter corpo de profissionais especializados em formação tecnicodesportiva;
- Ajustar o tempo destinado à efetiva atividade de formação do atleta, não superior a 4 (quatro) horas por dia, aos horários do currículo escolar ou de curso profissionalizante, além de propiciar-lhe a matrícula escolar, com exigência de frequência e satisfatório aproveitamento;
- Ser a formação do atleta gratuita e a expensas da entidade de prática desportiva;
- Comprovar que participa anualmente de competições organizadas por entidade de administração do desporto em, pelo menos, 2 (duas) categorias da respectiva modalidade desportiva; e
- Garantir que o período de seleção não coincida com os horários escolares.
A legislação nacional exige que a entidade formadora, além de ser formalizada e de apresentar uma conduta eticamente responsável, esteja efetivamente envolvida na participação de competição oficial e com uma estrutura de funcionamento mínima capaz de assegurar dignidade aos atletas em formação.
- A bolsa aprendizagem e o atleta maior de 14 e menor de 20 anos
O legislador prevê a possibilidade de o atleta maior de 14 e menor de 20 anos receber uma bolsa de aprendizagem, sem que tal fato venha a se configurar em vínculo empregatício.
Para que tal pacto tenha validade há a necessidade de o jovem atleta, ou o seu responsável legal, firmar – por escrito – um contrato de bolsa aprendizagem.
Houve uma pressa do legislador da Lei Pelé em dizer que não há vínculo de emprego, mas faltou uma regulamentação sobre a aprendizagem na seara do desporto. Há, por exemplo, uma ausência de definição quanto ao prazo máximo de aprendizagem, o que diante de tal lacuna parece ser razoável concluir-se que deve ser aplicado o prazo de 02 anos, previsto na CLT.
- Qual é o conteúdo do contrato de formação?
Conforme a Lei 9.615, o conteúdo obrigatório do contato de formação desportiva inclui os seguintes itens:
* Identificação das partes e dos seus representantes legais;
* Duração do contrato;
* Direitos e deveres das partes contratantes, inclusive garantia de seguro de vida e de acidentes pessoais para cobrir as atividades do atleta contratado; e
* Especificação dos itens de gasto para fins de cálculo da indenização com a formação desportiva.
Além dos dados objetivos do contrato de formação, torna-se imprescindível o seguro de vida e de acidentes, mormente levando-se em consideração que a prática desportiva, mesmo na modalidade de formação não se diferencia quanto aos riscos da modalidade de rendimento, visto que tanto em um quanto em outro o atleta fica exposto a lesões, enfermidades e até risco de vida. O seguro é uma forma responsável de as entidades formadoras protegerem o atleta em formação, sem prejuízo do compromisso destas com a redução dos riscos à saúde e à integridade física dos formandos.
- O que acontecerá se a entidade formadora do atleta não puder assinar o primeiro contrato com o atleta?
A entidade de prática desportiva formadora terá o direito de ser devidamente indenizada se ficar impossibilitada de assinar o primeiro contrato especial de trabalho desportivo por oposição do atleta, ou quando ele se vincular, sob qualquer forma, a outra entidade de prática desportiva, sem autorização expressa da entidade de prática desportiva formadora (art. 29, § 5º, Lei 9.615).
No tocante ao pagamento do valor da indenização, para que se possibilite o desligamento válido do atleta, há que ser observado o seguinte:
- O valor da reparação será limitado ao montante correspondente a 200 (duzentas) vezes os gastos comprovadamente efetuados com a formação do atleta, referentes ao período em que este recebeu a bolsa de aprendizagem;
- O pagamento do valor indenizatório somente poderá ser efetuado por outra entidade de prática desportiva e deverá ser efetivado diretamente à entidade de prática desportiva formadora no prazo máximo de 15 (quinze) dias, contados da data da vinculação do atleta à nova entidade de prática desportiva, para efeito de permitir novo registro em entidade de administração do desporto.
Registre-se, todavia, que a entidade de prática desportiva formadora somente fará jus à reparação se, ao tempo da iminente assinatura de seu primeiro contrato de trabalho com um terceiro, o atleta estiver regularmente registrado e não tiver sido desligado da entidade de prática desportiva formadora.
- A renovação do primeiro contrato especial de trabalho desportivo e o direito de preferência da entidade formadora
A entidade formadora responsável pela formação e profissionalização do atleta tem o direito de preferência no tocante à renovação do primeiro contrato especial de trabalho desportivo este. Em tal hipótese a prorrogação contratual não poderá ser superior a 3 (três) anos, salvo se para equiparação de proposta de terceiro (art. 29, § 7º, Lei 9.615).
Em tal hipótese, para que a entidade empregadora venha a usufruir do seu direito de preferência se faz necessário que a mesma apresente, em até 45 (quarenta e cinco) dias antes do término do contrato em curso, proposta ao atleta, de cujo teor deverá ser cientificada a correspondente entidade regional de administração do desporto, indicando as novas condições contratuais e os salários ofertados, devendo o atleta apresentar resposta à entidade de prática desportiva formadora, de cujo teor deverá ser notificada a referida entidade de administração, no prazo de 15 (quinze) dias contados da data do recebimento da proposta, sob pena de aceitação tácita (art. 29, § 8º, Lei 9.615).
E qual a solução proposta pelo legislador se outra entidade de prática desportiva vier a oferecer proposta mais vantajosa do que aquela ofertada pela entidade que formou o atleta? Em tal situação deverá ser observado o seguinte:
- A entidade proponente deverá apresentar à entidade de prática desportiva formadora proposta, fazendo dela constar todas as condições remuneratórias;
- A entidade proponente deverá dar conhecimento da proposta à correspondente entidade regional de administração; e
- A entidade de prática desportiva formadora poderá, no prazo máximo de 15 (quinze) dias, a contar do recebimento da proposta, comunicar se exercerá o direito de preferência nas mesmas condições oferecidas.
Para maior transparência do procedimento de renovação contratual, o legislador determinou (art. 29, § 8º, Lei 9.615) que a entidade de administração do desporto deverá publicar o recebimento das propostas de que tratam, nos seus meios oficiais de divulgação, no prazo de 5 (cinco) dias contados da data do recebimento.
Caso a entidade de prática desportiva formadora oferte as mesmas condições, e, ainda assim, o atleta se oponha à renovação do primeiro contrato especial de trabalho desportivo, ela poderá exigir da nova entidade de prática desportiva contratante o valor indenizatório correspondente a, no máximo, 200 (duzentas) vezes o valor do salário mensal constante da proposta (art. 29, § 11, Lei 9.615).
CONCLUSÃO
Em sede conclusiva é possível afirmar-se que a formação do atleta de futebol, no Brasil de hoje, tem sido - em larga medida - marcada pela exigência precoce de um desporto de rendimento, o que tende a afetar negativamente o pleno desenvolvimento de crianças e adolescentes. Ademais, a precocidade da exploração de crianças e adolescentes, tem se constituído como trabalho infantil, haja vista o histórico de garotos que assumem compromissos contratuais, mesmo sem ser detentores da capacidade jurídica para figurarem como sujeitos de um contrato de trabalho.
Dentre as demandas de humanização do desporto de formação, este deve ser na prática um esporte ético, solidário, não competitivo, estimulador de um ambiente de inclusão social e de respeito à diversidade, capaz de valorizar a convivência familiar e comunitária, de fazer valer a liberdade de escolha, a participação política, o interesse superior e o pleno desenvolvimento da criança e do adolescente
Para uma política de promoção da proteção integral da criança e do adolescente torna-se urgente uma mudança de comportamento da sociedade e do Estado de modo a:
- Estimular a realização de estudos e pesquisas sobre as relações de trabalho no âmbito do desporto brasileiro, de modo a se possibilitar conhecer, analisar e promover as mudanças que humanizem as diferentes modalidades esportivas previstas na Lei Pelé;
- Permitir que, no âmbito das escolinhas e entidades de formação de atletas, haja o mais amplo conhecimento sobre as formas positivas de promoção do processo formativo no Brasil; sobre o cumprimento dos direitos da criança e do adolescente e sobre o engajamento escolar dos educandos;
Dialogar com os clubes formadores, com técnicos, treinadores, dirigentes e familiares dos atletas em formação, de sorte a se valorizar a convivência comunitária e familiar da criança e do adolescente e a dignidade destes;
Estruturar o sistema de monitoramento e fiscalização, capacitando-se todos os agentes públicos para o estabelecimento de rotinas que observerm o interesse superior da criança e do adolescente e a prioridade absoluta destes;
Conscientizar a sociedade e todas as pessoas envolvidas no desporto de formação sobre riscos que o esporte de alto impacto traz ao pleno desenvolvimento das crianças e adolescentes;
Sensibilizar a mídia, a família, as escolinhas de futebol e as entidades de formação sobre a importância de se difundir os direitos de crianças e adolescentes como condição para a elevação dos patamares civilizatórios;
Incentivar a sociedade a romper com a cultura do silêncio em relação a qualquer tipo de conduta abusiva contra a criança e adolescente;
Estimular a utilização do disque 100 e a denúncia em relação aos casos de clubes de treinamento, escolinhas de futebol e entidades de formação que exploram o desporto de criança e adolescentes com risco à integridade física deste;
Aperfeiçoar o fair play financeiro das empresas, possibilitando atrelar-se a responsabilidade social dos clubes e das entidades formadoras como meio para se extirpar o calote, as fraudes, a precarização e a exploração do trabalho infantil esportivo;
Empoderar e estimular a participação política das crianças e adolescentes, dando-lhes voz e vez de se manifestar no planejamento e execução do processo de sua formação e de se afirmar enquanto cidadãos;
Incentivar o debate e o combate a toda forma de discriminação, de modo a se promover uma relação humana ética e de respeito à diversidade;
Por fim, é preciso que o desporto de formação tenha um fortíssimo conteúdo de promoção da proteção integral da criança e de adolescente, de modo a servir de mediação contra qualquer forma de crueldade, opressão, negligência, discriminação e exploração dos meninos e meninas que abraçam a prática de futebol como ato de liberdade e lazer.
REFERÊNCIAS
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THE GUARDIAN. Paedophile football coach Barry Bennell in hospital after being found unconscious, 28 nov 2016, frontpage.
[1] “Cultura Jock” é um termo utilizado nos EUA, na década de 1960, num contexto de envolvimento de vários jovens com a preparação para a guerra do Vietnã. Cuida-se de um estigma para se reportar a um tipo ideal de “atleta guerreiro”, um “valente” cuja marca singular é a força do corpo e não a força do intelecto. O termo jock designa, na linguagem debochada do esporte, o atleta que ao invés de neurônios teria cérebro repleto de músculos, e que estaria autocentrado em sua carreira, não lhe “sobrando tempo” e nem sendo “compatível com a sua virilidade” abordar assuntos da sua intimidade, chorar, ter medo ou sentir remorsos. Fica implícito na cultura jock o estigma do “homem maquinal”, ou seja, de que o atleta para obter sucesso nos esportes, além de secundarizar os seus sentimentos e traumas, deve atribuir – diferentemente do nerd – uma atenção menor as atividades intelectuais. Essa visão de que a cultura jock leva a uma identidade orientada exageradamente para o risco também é compartilhada pelo escritor Bernard Lefkowitz (1997), em sua obra “Our guys”, que narra a história dos atletas de New Jersey que cometeram estupro coletivo contra uma adolescente com deficiência intelectual.
[2] “Jock culture hides abuse. While sexual abuse exists in many different sports, football embraces masculine characteristics which act like a cult – a subculture adhering to its own list of commandments situated in a type of “jock culture”. In the past, the commonly accepted ethos of “suffer in silence” and the traditional belief that children’s voices should not be heard, could too easily be used to disguise sexually abusive behaviours.” (OTHON, 2017).
[3] Giglio (2008, p. 78) cita uma frase do ex-jogador francês Henry que retrata essa obsessão do menino brasileiro pelo futebol. A declaração dada pelo atacante francês Thierry Henry, antes do jogo Brasil e França, pelas quartas de final da Copa de 2006, ilustra esse processo de mediação cultural para a prática do futebol em nosso país: “Quando eu era criança, ia à escola das 7 horas da manhã às 5 da tarde e, quando queria jogar bola, minha mãe não deixava. Dizia que estudar era mais importante. No Brasil, as crianças jogam das 8 às 18 horas. Em algum momento a técnica aparece. [...] [no Brasil as crianças] nascem com a bola nos pés. Na praia, na rua, na escola. Onde quer que você olhe, eles estão jogando.”.
[4] Em 2017, foi publicado uma pesquisa na Noruega revelando que 43,8% dos futebolistas sondados admitem sofrer de ansiedade e depressão, que perto de 25% têm problemas de sono e que cerca de 7% têm uma relação problemática com o álcool. Parte expressiva de tais problemas tem uma relação com a trajetória de formação do atleta ainda na adolescência (PÙBLICO, 2018).
[5] Além de Hiroshi, outros casos de “gato” se tornaram famosos no Brasil envolvendo os seguintes atletas: Vanderlei Luxemburgo (ex-Seleção Brasileira de juniores), Sheik (Corinthians), Leandro Lima (ex-Porto), Maxwell (ex-Flamengo), Oliveira (ex-Seleção da Bélgica), Carlos Alberto (ex-Corinthians), Heltton (ex-Paulista de Jundiaí), Henrique (ex-São Paulo), Anailson (ex-São Caetano), Rodrigo Gral (ex-Grêmio), Elkenson (ex-Vitória da Bahia) e Clayton (ex-Seleção da Tunísia).
[6] No Nordeste somente existem cinco entidades formadoras detentoras de certificado da CBF, a saber: Clube Atlético do Porto (PE), Sport Club de Recife (PE), Esporte Clube Bahia (BA); Esporte Clube Vitoria (BA); e Ceará Sporting Club (CE).