O recente julgamento, pelo STF, do Habeas Corpus do ex Presidente Lula, gerou reações ou comentários das mais diversas índoles e origens. E no centro deles se situou o voto da Ministra Rosa Weber, a quem coube – não propriamente em vista da ordem de votação, mas sim diante das posições já de antemão conhecidas dos demais Ministros – definir o resultado da medida, o qual, como se sabe, foi pela denegação da ordem.
As circunstâncias históricas e o contexto político específico de nosso país talvez permitam traçar um interessante paralelo com outro caso bastante rumoroso, e que hoje consta dos livros de direito constitucional no Brasil e no mundo: MARBURY X MADISON (EUA, 1803).
A razão da notoriedade do caso é consabida: através da decisão ali tomada, estabeleceu-se a doutrina ou o precedente de que a Suprema Corte teria o poder de declarar inaplicável uma lei ordinária, sempre e quando o conteúdo desta estivesse em choque ou contradição com a Constituição, é dizer, aquilo que, hoje, se entende como controle difuso ou incidental da constitucionalidade das leis (judicial review).
Bem menos conhecidos, porém, são os bastidores políticos ou institucionais que deram origem a essa decisão. Que iam seguramente muito além de um singelo “detalhe técnico”, como o seria a contraposição de normas jurídicas de distinta hierarquia.
Naquela época, a República Americana era jovem, estava ainda buscando definir sua identidade, e, para tanto, dois partidos políticos disputavam corações e mentes: os Federalistas (mais centralizadores) e os Democratas-Republicanos (adeptos de maior autonomia para os Estados). Os dois primeiros Presidentes (Washington e Adams) vieram do lado federalista (Washington era simpatizante e Adams formalmente vinculado). Por conta disso, a Suprema Corte Americana estava toda ela integrada por adeptos desta corrente política.
Em 1800, porém, dá-se uma virada: os Republicanos, com Thomas Jefferson à frente, vencem as eleições. Antevendo a saída do poder, o Governo Federalista de Adams busca criar e preencher o máximo de cargos possível, inclusive vários cargos de juiz, para os quais a indicação e aprovação pelo Senado são realizadas a toque de caixa e à última hora (razão porque estes magistrados passaram para a história como juízes da meia-noite - midnight judges).
Mas nem todos conseguiram ocupar os cargos. Um pequeno grupo, entre os quais estava William Marbury, não conseguiu completar o procedimento administrativo a tempo. Faltou-lhes o recebimento do ato de nomeação (algo quiçá equivalente ao nosso termo de posse). O novo Presidente, através de seu Secretário de Estado, James Madison, negou-se a efetuar a entrega do documento. O governo recém-eleito – e, portanto, politicamente “vitaminado” - não se via obrigado a honrar nomeações que, embora fossem formalmente regulares, lhes pareciam manifestamente imorais ou “não republicanas”.
Marbury vai então à Suprema Corte – que, como dito, era um notório reduto federalista – e impetra um writ of mandamus.
E aqui se situava todo o busílis da celeuma. O relator do caso seria o Presidente da Suprema Corte, John Marshall. Ele, antes de ser nomeado para esta posição, tinha sido Secretário de Estado do Governo Federalista de Adams (a mesma função agora ocupada por Madison), de onde saíra igualmente à última hora (ou seja, ele também era considerado um “juiz da meia noite”). Aliás, talvez até o atraso na entrega das nomeações pudesse ser atribuível a ele.
Sendo este o contexto político-institucional da época, Marshall tinha bastante claro que se desse razão a Marbury – como ele entendia que seria o correto – a decisão seria ignorada. Por outro lado, se negasse o pedido, diriam que o Tribunal era fraco, covarde ou inútil. Como se vê, qualquer resultado tinha o potencial de conduzir a uma perigosa desmoralização do sistema de freios e contrapesos da ainda imatura democracia norte-americana.
Marshall, porém, conseguiu encontrar uma inusitada terceira via: percebendo que o pedido de Marbury estava baseado em uma lei ordinária – no que definia a competência funcional originária da Suprema Corte – confrontou-a com o texto da Constituição, que regia a matéria de forma diferente, concluindo pela inaplicabilidade daquela ante a prevalência deste. Em seu voto, dois terços são destinados a dizer que Marbury mereceria sim ter sua pretensão satisfeita; e o último terço para explicar que, apesar disso, a Corte não poderia atender ao seu reclamo, por um aspecto de ordem processual: ausência de atribuição (competência funcional) direta (originária) para o caso em discussão.
Se o resultado, como é óbvio, desagradou aos demandantes, os Republicanos tampouco ficaram satisfeitos. Para eles, a decisão fixava um precedente perigoso e autoritário, já que dava ao Judiciário, cujos integrantes não eram eleitos e nem seriam melhores do que ninguém, o poder de invalidar as leis aprovadas pelo Congresso. Marshall foi duramente criticado.
Porém, fato é que sua estratégia funcionou esplendidamente: a Suprema Corte Americana saiu do imbróglio bem mais forte do que se poderia imaginar, o equilíbrio de poderes restou preservado e, no século seguinte, a decisão por ele elaborada transformou-se em uma referência mundial a ser seguida.
Este caso demonstra que convém ter um certo cuidado com análises precipitadas ou críticas acerbas. Após a decisão do Habeas Corpus perante a nossa Suprema Corte, comentou-se, não sem acridez, que o voto da Ministra Rosa Weber, e ela própria, seriam objeto de oportuno julgamento pela história. De fato. Mas não há como saber, agora, em qual sentido ou direção. E, dependendo disso, quem não gostou do resultado é que poderá ficar mal na enciclopédia.
Referências:
Beltran de Felipe, Miguel; González Garcia, Julio V. Las sentencias básicas del Tribunal Supremo de los Estados Unidos de América. 2a edição. Madrid: Boletín Oficial del Estado - Centro de Estudio Políticos y Constitucionales, 2006, p. 93/121.
https://en.wikipedia.org/wiki/Marbury_v._Madison
:Supreme Court Stories: Marbury v. Madison____________________
(*) Desembargador do Trabalho e Diretor da Escola Judicial do TRT-15. Doutor em Direito pela USP.