Na mitologia grega, as sereias eram seres demoníacos, capazes de atrair qualquer um que ouvisse o seu canto. Os marinheiros, seduzidos por seu belíssimo som, descuidavam da embarcação e naufragavam. Por isso, o ardiloso Ulisses, ao regressar de Tróia, pediu para ser amarrado ao mastro de sua embarcação. Queria ouvir o canto, mas sem correr o risco de se ver atraído por seu encanto.
O atual canto da sereia, na versão brasileira, é representado pelo movimento em curso para realização da “reforma trabalhista”. Com o pretexto de “modernizar” as relações do trabalho, retomar o crescimento econômico e gerar novos empregos, o governo patrocina a destruição de conquistas sociais dos trabalhadores. Apoiado por sua base parlamentar, faz o jogo sujo do grande capital.
Por meio do PLC nº 38/2017, aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, busca modificar mais de duzentas normas contidas na boa CLT (Consolidação das Leis do Trabalho). A iniciativa é vendida como moderna, pois atenderia aos interesses das partes, refletiria as necessidades da sociedade, ampliaria a força do sindicato, aumentaria o número de postos de trabalho e seria boa para a classe empresarial.
Um olhar atento sobre o texto até aqui aprovado, porém, deixa claro que o discurso não corresponde à realidade. A retórica da “modernização” oculta os reais objetivos da “reforma”, que almeja na prática tornar precários os vínculos, ampliar as jornadas de trabalho, reduzir os salários e até eliminar direitos históricos dos trabalhadores.
Há na “reforma” ampliação da terceirização, criação do trabalho intermitente, banalização do trabalho autônomo, premiação como indenização, jornada de trabalho de 12 horas e supressão do intervalo para descanso e alimentação. E mais: trabalho de gestante em condições insalubres, eliminação de direitos previstos em lei por meio da negociação coletiva e limitação de acesso à Justiça do Trabalho.
Com trabalho mais precário, jornadas maiores, menos direitos e menores salários, isso tende a produzir queda da renda dos trabalhadores, gerar retração econômica e provocar drástica redução do consumo. Ao invés de “modernizar” as relações de trabalho e criar mais empregos, a “reforma” na prática provoca precarização do trabalho, empobrecimento dos trabalhadores, desigualdade social e reduz os empregos já existentes.
Necessário, pois, desmistificar a falácia do discurso da “modernização”, que nada mais é do que o novo canto da sereia. Para resistir a esse canto, é necessário ter a consciência de que a “reforma” em curso corresponde a um projeto de país que está andando para trás, retrocedendo-o à brutal exploração do trabalho humano praticada no século XIX. É fundamental, então, esclarecer, acompanhar, mobilizar e reagir, somando forças para impedir o retrocesso das conquistas sociais.
Como a lei não contém todo o Direito, a aprovação de ontem da "reforma trabalhista" pelo Congresso Nacional não significa que tudo estará perdido. Sempre haverá espaço para dar sentido às palavras desconexas, ambíguas e contraditórias usadas pela lei. Por meio do amplo diálogo social, será possível reconstruir os seus sentidos, adequando seu texto ao seu contexto.
Convém aqui lembrar a lição de Ruy Barbosa, para quem a "esperança nos juízes é a última esperança", na medida em que, nas mãos de bons juízes, até as leis ruins se tornam boas. Como há no Brasil bons juízes do trabalho, fica a esperança de que, por meio da interpretação, serão corrigidos os desacertos da lei, ajustando-a ao valor social do trabalho e ao princípio da dignidade do trabalhador.
* Desembargador do TRT/PI, mestre e doutor em Direito