Brasil não tem jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará
a última sexta-feira do mês passado, dia 31/3, o Presidente da República sancionou parcialmente ─ com três vetos (relativos ao trabalho temporário) ─ a chamada “Lei da Terceirização”, que recebeu o número 13.429. Preferiu-se aprovar o PL n. 4.302/1998, que tramitava no Parlamento desde o governo Fernando Henrique Cardoso, ao PLC n. 30/2015, que ainda tramita no Senado da República; e a opção decerto se deu pela enorme resistência construída ao redor do Projeto de Lei n. 4.330-C/2004, da relatoria do Deputado Arthur Oliveira Maia, que originou o PLC n. 30/2015. Era realmente mais fácil aprovar o primeiro, que já havia passado pelo Senado e aguardava apenas a aprovação do texto, sem alterações, na Câmara dos Deputados.
A Lei n. 13.429, de 31 de março de 2017, “[a]ltera dispositivos da Lei no 6.019, de 3 de janeiro de 1974, que dispõe sobre o trabalho temporário nas empresas urbanas e dá outras providências; e dispõe sobre as relações de trabalho na empresa de prestação de serviços a terceiros”. Interessa-nos, no particular, a última parte dessa ementa: a regulamentação das relações de trabalho nas empresas de prestação de serviços a terceiros (i.e., nas empresas de terceirização de serviços, ou de “colocação de mão-de-obra”).
Para parte da doutrina, e bem assim para os seus entusiastas, os arts. 4º-A, 4º-B, 5º-A e 5º-B, introduzidos pela Lei n. 13.429/2017 na Lei n. 6.019/1974 (a Lei do Trabalho Temporário), bastaram para autorizar, no Brasil, a terceirização, no âmbito de quaisquer empresas, de quaisquer de suas atividades econômicas, o que inclui as chamadas “atividades-fim” (i.e., as que perfazem a sua atividade econômica principal e as situam no mercado). Rigorosamente, porém, não é o que diz a nova lei. O art. 4º-A, caput, apenas registra o conceito de empresa prestadora de serviços a terceiros; e, ao defini-la, refere a prestação, à contratante, de “serviços determinados e específicos”; nada diz, porém, quanto às atividades-fim da empresa contratante.
Alguém poderia redarguir com o fato de a terminologia em questão ─ atividade-fim vs. atividade-meio ─ não ser bem conhecida da legislação nacional (nada há na CLT, p. ex., a esse respeito); antes, foi um produto da construção jurisprudencial brasileira. Ocorre, porém, que a Lei n. 13.429/2017 indubitavelmente conhece tal dicotomia; tanto que, no artigo 9º, par. 3º, como agora introduzido na Lei n. 6.019/1974, está textualmente dito que “[o] contrato de trabalho temporário pode versar sobre o desenvolvimento de atividades-meio e atividades-fim a serem executadas na empresa tomadora de serviços” (g.n.). Essa distinção, porém, não aparece na regulação dos contratos celebrados com empresas de prestação de serviços a terceiros!
Seria diferente se o Parlamento houvesse aprovado, p. ex., o texto constante do PL n. 4.330-C/2004 (que agora tramita como PLC n. 30/2015, como já disse). Em seu artigo 3º, ele claramente substituía o critério atualmente em vigor, baseado na distinção entre atividades-fim e atividades-meio, por outro, importado da Europa, que se baseia na ideia de “especialização” da atividade. Noutras palavras, o empresário poderia terceirizar qualquer atividade, inclusive aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o fizesse por intermédio de uma “empresa especializada, que presta serviços determinados e específicos, relacionados a parcela de qualquer atividade da contratante” (g.n.). E é justamente essa parte final ─ a autorizar a terceirização de “parcela de qualquer atividade da contratante” ─ que está ausente no texto do novel art. 4º-A da Lei n. 6.019/1974.
Logo, se o legislador conhecia a distinção entre atividades-fim e atividades-meio, como deriva da nova redação do art. 9º, par. 3º, da Lei n. 6.019/1973, e se, apesar disso, não autorizou expressamente a terceirização de atividades-fim, ao contrário do que fazia, p. ex., o PL n. 4.330-C/2004, está claro que, em relação à terceirização de atividades-fim, remanesce a condição jurídica anterior: a lei não proíbe textualmente, mas tampouco autoriza textualmente. E, sob tais circunstâncias, como ainda sob o pálio das mesmas normas constitucionais e legais que avivaram o entendimento hoje plasmado na Súmula n. 331 do C.TST, a conclusão só poderá ser a de que a inteligência vazada na Súmula n. 331 do TST ─ inclusive quanto às possibilidades de terceirização lícita (itens I e II da Súmula ) ─ segue razoável; e, na perspectiva dos precedentes (ut art. 15, II, da Instrução Normativa n. 39/2016, aprovada pela Resolução n. 203/2016), segue válida e eficaz. Não houve, noutras palavras, “overruling” apreciável a partir da nova legislação, seja ele prospectivo (= com eficácia “ex nunc”) ou retrospectivo (= com eficácia “ex tunc”).
É claro que, se adiante for aprovado e sancionado o texto vazado no Substitutivo do relator Rogério Marinho para o PL n. 6.787/2016 (Reforma Trabalhista), as coisas serão diversas. Ali, no artigo 2º, propõe-se agora a alteração do art. 4º-A da Lei n. 6.019/1974 ─ esse mesmo introduzido há pouco mais de um mês! ─ para constar que “[c]onsidera-se prestação de serviços a terceiros a transferência feita pela contratante da execução de quaisquer de suas atividades, inclusive sua atividade principal, à empresa prestadora de serviços que possua capacidade econômica compatível com a sua execução” (g.n.). Vigorando tal texto, realmente já não haverá dúvidas quanto ao esforço de superação, pela lei, do paradigma hermenêutico da Súmula n. 331 do TST; e, aí, restará ao Supremo Tribunal Federal apreciar a constitucionalidade material dessa alteração. Sobre a insuficiência da Lei n. 13.429/2017, porém, o próprio relator admitiu que, “após a sanção da Lei nº 13.429, de 2017, verificamos que determinadas matérias que dela deveriam constar não ficaram bem definidas” (80ª lauda do Relatório – g.n.); e, já por isso, propôs as tais novas alterações.
Entendemos, portanto, que segue tudo como dantes no quartel de Abrantes. A terceirização de atividades-fim segue sendo ilícita, ao menos à luz da Lei n. 13.429/2017. E não estamos sós[1].
No entanto, vale também a pena examinar quais são as consequências de uma e outra interpretação. Afinal, como ponderou MENEZES CORDEIRO[2], o processo de realização do Direito alarga-se em dois sentidos: a montante, com o pré-entendimento (i.e., as pré-compreensões acerca do fato ou da fonte a interpretar); e, a jusante, com a sinépica (i.e., as pós-prospecções, o “ponderar de consequências” de cada ato hermenêutico). É preciso, se não as ter em conta (como acreditamos), ao menos conhecê-las.
Pois bem. Os entusiastas da novidade asseveram que a universalização dos vínculos terceirizados ─ o que se dará, na prática, com a livre terceirização de atividades-fim ─ só trará benefícios à população brasileira, garantindo mais empregos, afastando a instabilidade decorrente das imprevisíveis decisões judiciais e assegurando, nas palavras do relator, “avanços importantes para a proteção dos milhões de trabalhadores terceirizados do Brasil, que hoje não dispõem de nenhuma legislação protetora dos seus direitos” (texto constante do relatório do Deputado Maia ao PL n. 4.330-C/2004).
Será?
Não cremos.
Saiba o leitor que os trabalhadores terceirizados têm, sim, hodiernamente, uma estrutura de proteção dos seus direitos sociais mínimos, não por lei, mas pela jurisprudência consolidada no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, que a quase unanimidade dos juízes aplica ao caso. Essa jurisprudência está sintetizada na Súmula n. 331 do TST, pela qual a terceirização é lícita em apenas quatro hipóteses: (a) na contratação de trabalhadores por empresa de trabalho temporário (Lei nº 6.019/74), mesmo em atividades-fim da empresa; (b) na contratação de serviços de vigilância (Lei n. 7.102, de 20.06.1983); (c) na contratação de serviços de conservação e limpeza; e (d) na contratação de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador. Se o Parlamento pretendia consagrar legalmente essa proteção, bastaria editar lei que reproduzisse e especificasse esses critérios. Em todo caso, ao fazê-lo, estaria fazendo o óbvio: desde Adam Smith, sabe-se que a riqueza se produz com força de trabalho, capital e “natureza” (i.e., matéria-prima); logo, é salutar que a empresa, nas ditas atividades-fim, mantenha força de trabalho própria, sob sua subordinação e responsabilidade. Para as atividades-fim, deveria ter empregados próprios. Do contrário, consagraríamos a mercancia de mão-de-obra (o marchandage criminalizado pelos franceses): para produzir bens ou serviços, bastará “comprar” força de trabalho oferecida por interpostas empresas, sob estrito regime de comércio. Abre-se um abjeto mercado para empresas que, ao cabo e ao fim, lucrarão “emprestando” pessoas (ou sua força de trabalho).
Pois é exatamente o que se dará, a se entender que a Lei n. 13.429/2017 realmente “liberou” a terceirização para toda e qualquer atividade econômica. Se assim for, o empresário poderá terceirizar qualquer atividade, inclusive aquelas essenciais ao seu objeto social, desde que o faça por intermédio de uma “pessoa jurídica de direito privado destinada a prestar à contratante serviços determinados e específicos” (art. 4º-A da Lei n. 6.019/1974).
Os defensores da ideia, ao extraírem-na da Lei n. 13.529/2017, sustentam que a novidade eliminará toda margem de insegurança jurídica ditada pela dicotomia entre atividade-fim e atividade-meio (que, de fato, exige uma interpretação mais cuidadosa do juiz, nos casos em que a distinção não é óbvia), originada pela precitada Súmula n. 331 do TST. Falso. O litígio apenas migrará. As cortes trabalhistas não discutirão mais se a atividade terceirizada é, para a empresa tomadora de serviços, finalística ou acessória. Discutirão se de fato ela é fornecida por uma empresa “especializada”, que detenha know-how diferenciado para aquela atividade (i.e., se oferece mesmo “serviços determinados e específicos”, ou, na dicção do PLC n. 30/2015, “serviços técnicos especializados”); ou, ao revés, se é apenas um simulacro da empresa cogitada no art. 4º-A da Lei n. 6.019/1974, sem qualquer especialização técnica, que existe basicamente para fornecer mão-de-obra comum às suas tomadoras (o que nos devolve, uma vez mais, à mera “marchandage” da força de trabalho). Assim, p.ex., a varrição de dependências configura um “serviço técnico especializado”? E o atendimento de balcão? Se uma empresa de prestação de serviços tiver por objeto social o fornecimento de mão-de-obra para limpeza, controle de portaria e vigilância patrimonial (três objetos distintos), poderá ser entendida como empresa prestadora de “serviços determinados e específicos”? O passado recente nos legou hipóteses de cooperativas de mão-de-obra ditas “multiprofissionais”, que ofereciam às contratantes tomadoras praticamente todo tipo de mão-de-obra, desde as que exigiam pouca ou nenhuma qualificação (limpeza, balcão) até aquelas que demandavam específica formação técnica ou mesmo superior (administração, contabilidade etc.). Terão a “determinância” e a “especificidade” exigidos pelo art. 4º-A da Lei n. 6.019/1974? Acreditamos que não.
Tudo isto, ademais, vem com um aspecto agravante: sobre esse novo paradigma (o dos “serviços determinados e específicos”), o Brasil não tem qualquer jurisprudência acumulada. Tudo poderá vir. A insegurança jurídica triplicará. Será provavelmente necessária mais uma dezena de anos para que o Tribunal Superior do Trabalho consolide alguma orientação a respeito, a se considerar o tempo consumido para que aquela corte evoluísse da Súmula n. 256, com a Resolução n. 4/1986, para o teor da Súmula n. 331, com a Resolução n. 23/1993.
Dizem também, os entusiastas da livre terceirização de atividades-fim, que haverá avanços na proteção dos trabalhadores. Ledo engano. Esse modelo de terceirização ampla e irrestrita, em qualquer modalidade de atividade, fere de morte garantias constitucionais como a isonomia (art. 5º, caput, CF), porque admite que, em uma mesma linha de produção, haja trabalhadores desempenhando idênticas funções, mas percebendo diferentes salários (afinal, poderão ter diferentes empregadores). Aliás, em uma mesma linha de produção poderemos encontrar três, quatro ou mais empregadores, já que, pelo artigo 4º-A, par. 1º, da Lei n. 6.029/1974, a própria empresa contratada para prestar serviços naquela linha poderá subcontratar o objeto do seu contrato, e assim sucessivamente, sem qualquer limite aparente. Noutras palavras, a Lei n. 13.429/2017 passou a autorizar explicitamente a chamada “quarteirização” de serviços…
Este modelo permite, por outro lado, a burla da garantia constitucional da irredutibilidade de salários (art. 7º, VI, CF), na medida em que um trabalhador possa ser demitido da empresa tomadora e recontratado, para as mesmas funções, por intermédio da prestadora, mas com salário menor. A garantia de dezoito meses de vedação à recontratação, como inserida pelo Deputado Rogério Marinho no PL n. 6.787/2016, é um infeliz lenitivo, que não mudará esse estado de coisas, nem objetará a relativização da norma constitucional.
Para mais, o novo modelo ainda representa violação direta ou oblíqua a diversas convenções internacionais das quais o Brasil é parte, como, p.ex., a Convenção 111, que trata da “discriminação em matéria de emprego e profissão” — com a terceirização de atividades-fim, trabalhadores ativados nas mesmas funções receberão, de regra, salários significativamente discrepantes — e as Convenções 98 e 151 da OIT, que tratam da proteção contra atos antissindicais e da sindicalização no serviço público. Isso porque a contratação de empregados e funcionários terceirizados enfraquece os sindicatos, ao retirar dos trabalhadores a sua unidade, a sua capacidade de mobilização e a sua própria consciência de classe. A valer a interpretação que libera a terceirização em atividades-fim, logo teremos, nas metalúrgicas, massas de trabalhadores que, exclusiva ou predominantemente, já não serão metalúrgicos, assim como teremos, nos bancos, massas de trabalhadores que, exclusiva ou predominantemente, já não serão bancários; tornar-se-ão todos, paulatinamente, trabalhadores em empresas de locação de mão-de-obra…
Por fim, se você, caro leitor, não se sente pessoalmente atingido por nada do que foi dito até aqui, também a você devo dizer: ledo engano. Engana-se, se acredita que serão afetados apenas os direitos alheios.
Com efeito, a vingar a ideia da irrestrita liberdade para se terceirizar atividade-fim, quando você necessitar, num futuro próximo, dos serviços de um hospital, já não saberá se o médico a atendê-lo ou operá-lo foi selecionado e contratado pela instituição nosocomial da sua escolha, ou se é um terceirizado, admitido porque, na terceirização, o “preço” dos serviços cai surpreendentemente (e o leitor mais perspicaz imaginará o porquê…). Ao adentrar em um avião, já não terá qualquer garantia de que o piloto ou copiloto foi selecionado, contratado e treinado pela companhia aérea da sua preferência, ou se é alguém fornecido, a baixo custo, por uma empresa prestadora de “serviços técnicos especializados” de pilotagem de aeronaves. Que tal?
Como dissemos em outra ocasião: pense-se com a boa técnica jurídica, ou com um genuíno espírito de solidariedade, ou ainda com o próprio umbigo, o modelo da ampla e irrestrita terceirização de quaisquer atividades econômicas é desastroso. Se foi este o modelo consagrado pela Lei n. 13.429/2017 ─ e, adiante, se é este um modelo aceitável do ponto de vista da convencionalidade e da constitucionalidade ─, serão as cortes judiciais a dizer. Mas os seus frutos para as futuras gerações não serão julgados pelo Judiciário. Serão julgados pela História.
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…Sigo indagando: que tal a coluna? Há algum tema do Direito, da Política ou da Economia que pareça merecer um olhar “diferente”? Sugira-nos. O e-mail está abaixo. Na quinzena que vem (porque a prudência nos levou a não publicar nesta quinzena): abuso de autoridade. Que tal está o PLS n. 280/2016? Vamos analisar.
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[1] V. p. ex., bem recentemente, GARCIA, Gustavo Filipe Barbosa. “Lei da terceirização não é clara quanto à permissão para atividade-fim”. In: Consultor Jurídico, 2.4.2017. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2017-abr-02/gustavo-garcia-lei-nao-clara-quanto-permissao-atividade-fim . Acesso em: 23.4.2017.
[2] CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. “Introdução à edição portuguesa”. In: CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na Ciência do Direito. Trad. António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. 3ª ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002. pp.CIX e CXI-CXII.
*Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP. E-mail: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.