Estamos todos à volta com a Proposta de Emenda Constitucional n. 287/2016, que pretende “reformar” – pela terceira vez em pouco menos de vinte anos – a Previdência Social no Brasil, tanto para o setor público como para o setor privado. O Governo Federal e a Confederação Nacional da Indústria inundam todas as mídias – desde as paredes dos grandes aeroportos até o horário nobre das principais redes de televisão do país – com a cantilena das necessidades e das bondades da Reforma.
Quando o brilho de uma estrela é tão intenso, vale conferir se não se trata de um reles satélite a circundar a nossa órbita. Nesse caso, um grande e pesado satélite, prestes a se precipitar sobre as nossas cabeças. Vejamos.
A PEC n. 287/2016 consubstancia, repito, a terceira grande reforma previdenciária encaminhada pelo Governo Federal, sob os mais diversos matizes partidários, desde 1998. Sob Fernando Henrique Cardoso (PSDB), tivemos a EC n. 20/1998. Sob Luís Inácio Lula da Silva (PT), tivemos a EC n. 41/2013 (e também a EC n. 43/2015, oriunda da chamada “PEC paralela”, que melhorou razoavelmente a condição dos servidores públicos atingidos pela EC n. 41).
Por fim, sob Michel Temer (PMDB), poderemos ter, dentre todas, a mais radical das reformas previdenciárias pós-redemocratização, sob o manto da PEC n. 287. Outra vez, propõe-se restringir a proteção previdenciária e assistencial que socorre a sociedade civil – agora, porém, mais agressivamente −, aumentar a arrecadação correspondente – nisto, porém, com medidas pífias − e culpabilizar o Estado social pelo quadro de deterioração econômico-financeira que acomete o país, muito menos por conta dos benefícios e serviços prestados pela Previdência Social e muito mais em função de fatores convenientemente esquecidos, como:
(a) as incontáveis isenções, renúncias,desvinculações e remissões fiscais em matéria de custeio previdenciário, como outrora se deu, e.g., com a MP n. 651/2014, depois Lei n. 13.043/2014, ainda sob Dilma Roussef; ou há alguns poucos meses, com a EC n. 93/2016, já sob Temer, aumentando para 30% a margem da DRU (Desvinculação das Receitas da União), o que significa liberar, para outros usos, praticamente um terço de toda a “arrecadação da União relativa às contribuições sociais” (art. 76 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias) – e “sem prejuízo do pagamento das depesesas do Regime Geral da Previdência Social” (?), o que seria um milagre. Ora, como pode o Governo Federal exigir da população que aperte tão severamente os cintos, alegando a insuficiência de recursos para o orçamento da Previdência Social, se ele próprio, Governo Federal, patrocina um aumento da sua margem de manobra para aplicar em fins diversos as receitas da Seguridade Social?
(b) os nossos monstruosos índices de sonegação fiscal-previdenciária (calculam-se cerca de 900 bilhões de reais acumulados de perdas nesse quesito, devidos por menos de 13 mil pessoas físicas e jurídicas), valendo lembrar que a famigerada EC n. 95/2016 – a do “teto dos gastos públicos” −, que praticamente engessou quaisquer investimentos adicionais em saúde, educação ou segurança pública nos próximos vinte nos (e acerca da qual já pende ação dreta de inconstitucionalidade, a saber, a ADI n. 5633/DF, ajuizada pela ANAMATRA, pela AJUFE e pela AMB, e distribuída à Min.ª Rosa Weber), baseou-se na constatação de que, para este ano de 2017, haveria um déficit de “apenas” 140 bilhões de reais;
(c) o sempre providencial oblívio das fontes extras de receitas para a Seguridade Social que a própria Constituição anteviu ou ensejou (por exemplo, no art. 7º, XXVII, da CF, ao dispor sobre a proteção social dos trabalhadores urbanos e rurais em face da automação, na forma da lei − que nunca veio −, ou no art. 239, §4º, da CF, ao dispor sobre a “contribuição adicional da empresa cujo índice de rotatividade da força de trabalho superar o índice médio da rotatividade do setor, na forma estabelecida em lei” – que tampouco veio −; ou ainda, para sair do campo previdenciário, a injustificável isenção dos dividendos que se distribuem a sócios e acionistas no Brasil, independentemente do montante, enquanto qualquer cidadão cujo salário supere a R$ 1.903,98 terá de recolher IRPF.
É, ademais, curiosa – para não dizer cruel − a insistência do establishment em reformas desta natureza. Esse mesmo receituário já foi aplicado, sem sucesso, nas reformas anteriores. Mais uma vez, fará pouco mais que incrementar as taxas nacionais de empobrecimento populacional e precarizar carreiras públicas e de Estado. E o suposto déficit da Previdência Social seguirá se agravando.
Suposto?
Essa é uma longa discussão. O fato é que não há unanimidade quanto à tese de que o nosso atual modelo previdenciário seja irremediavelmente deficitário. Ao revés, há estudos importantes revelando que, no ano de 2015, o somatório das renúncias fiscais, desonerações e desvinculações de receitas patrocinadas pelos próprios poderes constituídos correspondeu a aproximadamente 50% do alegado déficit, sendo certo que, nos últimos anos, o total de renúncias previdenciárias chegou ao impressionante valor de R$ 145,1 bilhões. Não bastasse, esse quadro é agravado, como visto acima, pela ineficiência na realização da dívida ativa previdenciária; essa realização representou, em 2015, não mais que 0,32% da dívida executável (R$ 1,1 bilhão arrecadado, contra um estoque de R$ 350 bilhões). Ademais, e mais importante, a própria conta que o governo federal realiza seria historicamente equivocada. É que, pelo modelo constitucional de Seguridade Social (art. 203/CF), haveria que se acrescer, nas entradas, os recursos arrecadados com as receitas sobre prognósticos (loterias), a COFINS, a CSLL e o PIS/PASEP. Nesse orçamento único (art. 165, §5º, III, CF), apenas em 2014 o superávit seria de R$ 53 bilhões de reais. O Governo considera, no entanto, apenas as receitas do artigo 195, I, “a” (contribuições do empregador, empresa e entidade equiparada sobre a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, a pessoa física) e do artigo 195, II (contribuições do trabalhador e demais segurados da previdência social), ambos da Constituição. Noutras palavras, para calcular o seu déficit, calcula basicamente o que integra o fundo do art. 205/CF, e não todas as entradas constitucionalmente destinadas à Seguridade Social. E, no Brasil, o sistema é uno, de seguridade social, envolvendo previdência social, assistência social e saúde. E não somente de previdência.
É verdade, e releva dizer, que, mesmo nesse cálculo mais “panorâmico”, a envolver todas as receitas e despesas próprias da Seguridade Social − como quis o constituinte originário −, o superávit vem caindo. Mesmo por essa via, portanto, teremos provavelmente de acusar défices nos próximos anos. Mas, por essa perspectiva, o quadro é bem mais ameno que aquele pintado pela propaganda oficial; hoje, ainda teríamos superávit. E, por consequência, o remédio não precisaria ser tão amargo. Como, de fato, não precisa. Nem de direito.
E o amargor da PEC n. 287/2016 vem forte, à primeira leitura. Vem a cavalo.
Desconhece-se a condição especial da mulher no mercado de trabalho, igualando a idade mínima para aposentadoria em 65 anos, entre homens e mulheres. Ora, os dados do IDG-PNUD (Índice de Desiguladade de Gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) ainda demonstravam, para o Brasil dos últimos anos, haver ainda uma profunda desigualdade de gênero no Brasil, com reflexos inegáveis sobre o mercado de trabalho; e, a par disso, é ainda da “cultura” machista brasileira a ideia da “mulher-mantenedora” (e do “homem-provedor”), restando-lhe amiúde os serviços domésticos e uma recorrente dupla – ou tripla – jornada. Reduzir drasticamente o valor das pensões, já restringidas por ocasião da EC n. 41/2003, inadmitindo a acumulação com aposentadorias.
Criam-se condições draconianas para que o cidadão possa obter a melhor condição previdenciária. Assim, por exemplo, exige-se que, para receber proventos de aposentadoria no valor máximo (“teto”) aos 65 anos, os segurados comecem a trabalhar aos 16 anos (para contribuir por 49 anos). Essa medida é uma flagrante política de despriorização da educação e de desmobilização de jovens e adolescentes regularmente matriculados nas escolas, especialmente no campo. E, não por outra razão, já há quem apelide essa PEC n. 287/2016 de “PEC do caixão”.
Altera-se a base de cálculo dos benefícios para considerar toda a vida contributiva do segurado (inclusive a porção equivalente a 20% das menores contribuições, que hoje são descartadas no cálculo). Com isso, reduz-se o valor médio dos benefícios, até mesmo para quem já está integrado ao Regime Geral de Previdência Social e aos vários Regimes Próprios de Previdência Social (serviço público), com impactos econômicos relevantes para o país, especialmente nos municípios de pequeno porte, cuja economia não raro se alimenta com a demanda gerada por tais benefícios. O mesmo se diga das reduções que a PEC n. 287/2016 imporá às pensões por morte, como à própria proibição de que se acumulem aposentadorias e pensões, conquanto muitos servidores públicos paguem por ambas as coisas (e, então, estaremos falando em genuíno confisco). São, a rigor, medidas recessivas.
Especificamente em relação aos Regimes Próprios de Previdência Social, todos aqueles que até agora anda têm assegurados a paridade e a integralidade dos vencimentos ao tempo da aposentadoria perderão essa garantia, da noite para o dia, desde que não contem, ao tempo da promulgação da PEC n. 287/2016, com 45/50 anos (se mulher/homem) ou mais. E mesmo em relação aos servidores que já não têm tais garantias, integrando-se ao novo regime implementado com a Lei n. 12.618/2012 (das FUNPRESPs), haverá potenciais prejuízos, na medida em que esses fundos perdem o seu caráter público com o texto proposto. Caminhamos para a privatização previdenciária chilena. E se desfere um duríssimo golpe no princípio da confiança, jogando pá-de-cal sobre todos os acordos de transição encetados pelos governos anteriores (ECs ns. 20/1998, 41/2003 e 47/2005). Mais que isso, agride-se a própria isonomia, princípio basilar da Constituição da República (art. 5º, caput, CF), porque indivíduos com o mesmo tempo de contribuição e com o mesmo tempo de exercício efetivo no serviço público, no mesmo cargo e na mesma função, terão tratamentos diversos, apenas porque têm idades diferentes.
São, para mais, inúmeras as evidências de que a PEC n. 287/2016 promoverá patente retrocesso social, sem qualquer contrapartida, a despeito dos compromissos assumidos pelo Brasil perante a comunidade internacional (art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos).
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E a sociedade civil? Reagirá de algum modo? Ou engolirá placidamente o batráquio?
No dia 02/02, de algarismos quase cabalísticos, ouviu-se a primeira grita pública organizada. Uma contundente nota contrária a essa “nova” Reforma da Previdência foi publicada pelas mais destacadas entidades representativas das carreiras públicas do país, como a AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), a ANAMATRA (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), a ANFIP (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Fazenda Nacional), a CONAMP (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público), a ANPR (Associação Nacional dos Procuradores da República), a ANPT (Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho) e a ANMPM (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público Militar), além de importantes organizações da sociedade civil, como a ATUAS (Associação Nacional dos Atuários) e a Auditoria Cidadã da Dívida. Ao mesmo tempo, preparam dia de protesto para o dia 15/2.
Também nesta semana, a Ordem dos Advogados do Brasil, reunida na sede do seu Conselho Federal com diversas entidades da sociedade civil organizada, elaborou uma nota pública a propósito da PEC n. 287/2016, acidamente crítica. Não é preciso lembrar o papel histórico da OAB na defesa das liberdades públicas.
E, no mesmo encalço – para ficarmos por aqui −, as principais centrais sindicais de trabalhadores preparam não apenas a publicação de um manifesto de repúdio à PEC n. 287/2016, mas um dia nacional de paralisação, à maneira das “greves gerais”, para protestar contra a malsinada reforma.
Diante desse quadro de múltiplas insurgências, querido leitor, a pergunta que remanesce é: estamos todos errados?
Se estivermos, a História nos julgará. Ou ao menos nos reservará um “pito”.
Se não estivermos, julgados serão os “heróis” dessa kafkiana reforma que, para − supostamente − preservar uma edificação em vias de ruir ante o peso demasiado do que se construiu, passa a deitar fora o telhado e demolir os muros dos cômodos. Ao final, sim, restará a edificação, ou o seu esqueleto, de pé. Mas o seu interior será praticamente inabitável. E os seus alicerces, no final das contas, continuarão incapazes de suportar maior peso. More-se em outros sítios, ora bolas.
Razoabilidade não é uma virtude desses tempos líquidos (valendo a menção como nossa singela homenagem ao grande Zygmunt Bauman, morto no último dia 09/01). Mas pertinácia talvez seja.
É da mitologia grega, na ordem proposta por Pseudo-Apolodoro (nome hoje dado ao autor da Biblioteca, que no século I ou II d.C. reuniu diversos narrativas mitológicas esparsas), que, no seu terceiro trabalho, Hércules alcançou e dominou a corça de cerínia, animal lendário dotado de chifres de ouro, pés de bronze e capaz de correr em incríveis velocidades, sem jamais se exaurir. Narra a lenda que Hércules a perseguiu por um ano inteiro, até finalmente a fatigar; então, alvejou-a com uma flecha, ferindo-a levamente, pois deveria levá-la viva a Eristeus.
Será assim, caro leitor, com a Reforma da Previdência. A propaganda do Governo apresenta-a reluzente e bela, qual ouro, portadora de todas as esperanças para as futuras gerações. Seus fundamentos e razões, porém, são bem menos valiosos do que se divulga ser. Seria mesmo melhor dizer que seus pés não são de bronze; são, talvez, de barro, qual o gigante sonhado por Nabucodonosor, rei da Babilônia. Por outro lado, a PEC n. 287/2016, em uma Câmara presidida por Rodrigo Maia (DEM-RJ), possivelmente “correrá” com velocidade simbolicamente superior à de qualquer corsa, real ou mítica. Sem maior diálogo ou reflexão, embora ainda penda, no Tribunal de Contas da União, relatório final sobre a real situação das contas da Previdência Social no país (como determinado, em 16/01., pelo Ministro Raimundo Carreiro, atual Presidente do TCU). Não seria, nos lindes do razoável, o caso de aguardar?…
Dirão que não. “O país tem pressa”.
Aos que discordam desse modelo de previdência mínima – quase imprevidente −, restará a tenacidade. Perseverar na difícil tentativa de conter a “corsa” em sua carreira desabalada. À maneira de Hércules… Mas ouvindo, de todos os cantos da rosa-dos-ventos, acusações de obscurantismo.
O que assusta mesmo, amigo leitor − muito mais que a corça de cerínia, o gigante de Nabucodonosor ou o bicho-papão −, é perceber que, nos dias correntes, fala-se muito de “futuro”, mas se olha mesmo é para o retrovisor. Bem, já falamos disto aqui.
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Que tal a coluna? Há algum tema do Direito, da Política ou da Economia que pareça merecer um olhar “diferente”? Sugira-nos. O e-mail está abaixo. Na quinzena que vem: ativismo judicial. Que bicho é este? Domestica-se?
Guilherme Guimarães Feliciano - Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Doutor em Direito Penal pela USP e em Direito Processual Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Livre-docente em Direito do Trabalho pela USP, Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.