Noemia Porto
No marco dos 36 anos da Constituição democrática, o percurso para a construção de garantias aos direitos sociais tem se mostrado mais acidentado e difícil do que se poderia imaginar.
A Constituição de 1988 é a primeira da nossa história que inclui os direitos trabalhistas no rol dos direitos e das garantias fundamentais. Como não há direitos sem garantias, a Justiça do Trabalho se fortaleceu na era democrática, tanto que a reforma do Poder Judiciário, que completa 20 anos, legou a evidente ampliação da sua competência material. Todavia, comparativamente aos demais ramos do Judiciário, a Justiça do Trabalho tem sido alvo de algo que consoa quase como uma acusação: a suposta alta litigiosidade.
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Tendo como pano de fundo a suposta litigiosidade, no último dia 30 de setembro, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) aprovou a Resolução 586/2024 que impede a apresentação de novas reclamações trabalhistas quando o acordo entre empregador e empregado for homologado pela Justiça do Trabalho. Conforme estabelecido na resolução, a quitação será integral no momento da homologação judicial. Essa resolução merece cuidadosa análise.
Para começar com o que a motiva, de acordo com o relatório Justiça em Números 2024, do próprio CNJ, ao final de 2023 havia um total de 83,8 milhões de processos pendentes. Desse montante, apenas 5,4 milhões pertenciam à Justiça do Trabalho, o que representa 6,4% do total geral de processos.[1] De acordo com o relatório produzido pelo Ministério Público do Trabalho: "A título de comparação, em 2023 ingressaram mais de 6 milhões de novas ações nos Juizados Especiais Cíveis, número cerca de 50% superior ao total de novos casos na Justiça do Trabalho, sem que, no entanto, tal número seja tido por excessivo". O relatório Justiça em Números mostra que a litigiosidade trabalhista aumentou 0,1% em comparação com a Justiça Federal, que teve aumento de 5,8%.[2]
Evidente que será bem-vinda toda a iniciativa, em termos de política judiciária, que esteja voltada a tratar da litigiosidade no país com patamares de eficiência e preservação de direitos em relação a todos os ramos do Judiciário. Apontar no sentido do diálogo entre as partes e do fomento da solução rápida de conflitos pela via da conciliação igualmente atua favorecendo a efetividade da duração razoável do processo e do compromisso com uma jurisdição justa.
Todavia, a resolução do CNJ em referência trouxe alguma novidade para o campo laboral? Tem o potencial de apresentar caminhos à suposta alta litigiosidade?
Para tentar lançar alguns pontos para essa reflexão, seria importante identificar do que, na essência, tratam as causas trabalhistas. Para isso, relevante apontar o conteúdo do relatório produzido pela Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), elaborado com base no Parecer Técnico A Justiça do Trabalho e a litigiosidade trabalhista: organograma institucional e efetividade, de autoria das professoras e pesquisadoras Gabriela Neves Delgado (UnB) e Maria Cecília de Almeida Monteiro Lemos (UDF).
O relatório, entregue ao CNJ, aponta que 95% das ações propostas na Justiça do Trabalho tratam sobre rescisões voluntárias que decorrem do descumprimento, pelo empregador, da legislação trabalhista.[3] Essas ações visam exclusivamente ao recebimento das verbas rescisórias devidas, cujo pagamento não foi efetuado dentro do prazo legal. Em que medida a resolução do CNJ (re)orienta ou indica alguma solução diante da constatação de que diversos empregadores brasileiros rompem contratos de trabalho sem pagar direitos trabalhistas básicos?
A resolução do CNJ, como mencionado, merece uma análise crítica sob a perspectiva da hierarquia das normas e do papel da Justiça do Trabalho na tutela dos direitos trabalhistas. Embora seja um ato normativo relevante, é necessário lembrar que uma resolução, enquanto ato administrativo, tem limitações jurídicas inerentes, principalmente no que diz respeito à criação de obrigações e direitos que não estejam previstos em lei. A Constituição de 1988, ao incluir os direitos trabalhistas no rol de direitos e garantias fundamentais, estabeleceu a supremacia dos princípios constitucionais na defesa dos direitos sociais, o que se aplica diretamente a qualquer iniciativa normativa no campo do Direito do Trabalho.
Em suma, a resolução, enquanto ato normativo inferior, não pode inovar no ordenamento jurídico ao ponto de restringir direitos constitucionais dos trabalhadores, como o acesso à Justiça e à ampla defesa. A Justiça do Trabalho tem um papel central na proteção dos direitos fundamentais previstos na Constituição de 1988, e qualquer iniciativa que tente limitar esse papel, sem atacar as causas reais da litigiosidade, corre o risco de fragilizar as garantias constitucionais.
A resolução, ao sugerir a predominância da quitação integral no momento da homologação judicial, ignora a dinâmica das relações de trabalho e a vulnerabilidade dos trabalhadores, sendo insuficiente para resolver os problemas subjacentes que levam à judicialização das relações laborais.
Ao analisar a resolução do CNJ à luz da reserva de jurisdição, é possível identificar um ponto de conflito significativo. A reserva de jurisdição é princípio constitucional que atribui exclusivamente ao Judiciário a competência para decidir sobre certos direitos fundamentais, como a liberdade, a propriedade e, neste caso, o acesso à Justiça (art. 5º, inciso XXXV). Essa disposição constitucional consagra o princípio da inafastabilidade da jurisdição, que está diretamente ligado à reserva de jurisdição.
A resolução em questão, se for interpretada como fator para limitar a possibilidade de novas reclamações trabalhistas após a homologação de um acordo, pode representar violação a esse princípio. Somente o Judiciário, no exercício pleno de suas funções, pode determinar, com base nas leis e na Constituição, o alcance e a extensão dos direitos de cada parte em um conflito.
Resoluções administrativas, mesmo quando emanadas por órgãos de relevância como o CNJ, não podem restringir o exercício da jurisdição em áreas onde a própria Constituição garante o direito de ação. Assim, a tentativa de impor uma quitação integral no momento da homologação, sem margem para posteriores revisões ou novas demandas, colide com o conceito de reserva de jurisdição, pois está suprimindo a possibilidade de o Judiciário reexaminar casos de descumprimento de acordos ou de violação de direitos, algo que só poderia ser efetivamente feito pelo próprio Poder Judiciário.
A aplicação da resolução como estímulo à busca de soluções conciliadas, mas sem renúncia a direitos fundamentais, e com independência judicial para a análise do que se apresenta como condições de negociação, reforçará os instrumentos legais que já estão disponíveis à magistratura trabalhista.
Porém, se for compreendida como impossibilidade de revisão e análise dessas cláusulas, estimulando a renúncia a direitos em troca do pagamento de parcelas de cunho salarial, colocará em xeque a efetividade dos direitos sociais trabalhistas. Quanto à litigiosidade trabalhista, ainda em patamar inferior ao que se verifica em outros ramos do Judiciário, demanda análise mais complexa sobre a sua origem, a começar pelo sistemático descumprimento da legislação laboral.