Nos últimos dez anos, um movimento de mulheres vilaboenses revolucionou as ações sociais no município-berço de Cora Coralina, a mais reverenciada poetisa goiana. A doceira e escritora, mulher ousada e destemida do seu tempo, foi a inspiração para a criação da Associação Mulheres Coralinas (AsCoralinas) que acaba de ganhar o prêmio Direitos Humanos no Mundo do Trabalho, na categoria Gênero, Raça e Diversidade da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) com o projeto Cozinhando com as Coralinas, que forma mulheres na área da gastronomia tradicional da antiga capital, atividade permeada pela literatura feminina goiana.
O curso de gastronomia e letramento literário integra o projeto Mais Um Sem Dor, idealizado em 2018 pelo Ministério Público do Trabalho de Goiás (MPT-GO) e pelo Tribunal Regional do Trabalho da 18ª Região (TRT 18). A iniciativa promove formação humana, qualificação técnica e encaminhamento de pessoas em vulnerabilidade socioeconômica ao mercado formal de trabalho. O projeto ganhou apoio da Federação das Indústrias do Estado de Goiás (Fieg) e do Sistema Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai), que passou a ministrar os cursos ofertados. Na proposta feminina desenvolvida na cidade de Goiás o Mais Um Sem Dor possui um viés literário.
Nenhuma oficina é aberta sem leitura. E, mesmo que para a maioria a criação literária não seja objeto de afinidade, as participantes mergulham na trajetória e registros de quem fez história nas letras e nos saberes tradicionais. Aprendem que Cora Coralina, antes de se enveredar na escrita e ser apresentada ao Brasil por Carlos Drummond de Andrade, fez dos doces o ganha pão familiar e imprimiu em sua obra a simplicidade do cotidiano vilaboense. Ela abre caminho para a exposição sobre outras escritoras, como Leodegária de Jesus, e de mulheres peculiares de Vila Boa, como Nádia Köller, culinarista exponencial que, mesmo se sentindo feminina, se viu obrigada a se esconder num corpo masculino na tradicional Vila Boa.
Desde que o projeto Cozinhando com as Carolinas nasceu, há dois anos, já atendeu grupos de 22 municípios goianos, totalizando cerca de 2,7 mil pessoas qualificadas. Mais de 70 empresas parceiras contrataram e continuam contratando pessoas beneficiadas pelo projeto. Durante quatro dias, na sede da associação na cidade de Goiás, elas trocam experiências, sentimentos e aprendem a misturar sabores, com ênfase na culinária local. Descobrem que são infinitas as possibilidades de pavimentar um novo destino. Duas turmas de mulheres trans de Brasília, Valparaíso e Anápolis já passaram pela Casa das Coralinas buscando formação para enfrentar os desafios de empregabilidade.
No domingo (13) mais uma turma iniciou o processo de imersão do Cozinhando com as Coralinas. Foram dez mulheres, de Goiânia e da antiga capital, com algum tipo de deficiência - auditiva, visual e física - coordenadas pela assistente social e ativista Patrícia Ramos. Presidente da Associação de Mulheres Surdas de Goiás, Patrícia Meiriellem Silva Souza atendeu o chamado. \"Enfrentamos muitas dificuldades no mercado de trabalho em razão da comunicação. As empresas não possuem intérpretes de Libras. Este é o nosso maior desafio\", contou, com a ajuda de uma intérprete, enquanto participava da aula prática na cozinha da Casa das Coralinas.
A vilaboense Ivonete Gonzaga de Brito, 55, não escondia a felicidade, apesar dos obstáculos impostos por sua condição física. Com sorriso aberto, ela narrou que sofreu poliomielite na infância, deixando os membros atrofiados que avançaram para uma perda neurológica. Ivonete desenvolveu habilidade com os pés para executar tarefas básicas no cotidiano. \"Sinto muita câimbra quando fico sentada, por isso preciso me deitar com frequência.\" Uma cama foi providenciada para que ela não perdesse nenhum detalhe da exposição inicial, que teve Cora Coralina como tema. \"Estou achando tudo maravilhoso. Fui bem acolhida aqui.\" Deficiente visual, Jane Vieira, moradora de Goiânia, se descobriu tão hábil na feitura de doces que planeja se mudar para Vila Boa.
Também no domingo (13), teve início a segunda turma do projeto É de Menina que se Torna Coralina, com oficinas de saberes tradicionais vilaboenses para 20 adolescentes, entre 14 e 18 anos, em vulnerabilidade socioeconômica, residentes na cidade. Durante seis meses serão realizadas oficinas de gastronomia, bordado, encadernação e cerâmica, ministradas pela associação. Durante o período, ainda haverá rodas de conversa e leitura de obras literárias. A primeira turma formou-se em junho deste ano. Durante a cerimônia, a desembargadora do trabalho Wanda Lúcia Ramos da Silva e a procuradora do Trabalho, Janilda Lima receberam o selo Agentes Políticas Amigas da Diversidade pelo apoio ao trabalho desenvolvido pela AsCoralinas.
**Coletivo feminino revolucionário**
Desde 2018 o Ministério Público do Trabalho e o Judiciário Trabalhista em Goiás abraçam a causa do coletivo de mulheres vilaboenses. \"Quando instituições fortes do sistema de Justiça dão as mãos para potencializar projetos do mundo do trabalho, a repercussão, a efetividade e a concretude se tornam mais fortes\", diz o procurador do Trabalho, Tiago Ranieri, um grande entusiasta da iniciativa. Recursos, fruto de multas aplicadas pelo MPT e pela Justiça Trabalhista contra empresas que não cumpriram a legislação, têm sido direcionados para os projetos desenvolvidos pela AsCoralinas, e em especial para a construção da sede do coletivo, em funcionamento desde 2021. \"A ideia é reparar o dano social que essas empresas causaram à sociedade\", explica o procurador.
Tiago Ranieri ressalta que, para além da profissionalização e da transmissão de saberes, o objetivo principal é que as mulheres que frequentam o projeto tenham o movimento Mulheres Coralinas como referência e consciência de que ele pode transformar não apenas uma vida singular, mas também o espaço-território onde existe. \"Queremos, com o Mais Um Sem Dor, fazer uma movimentação nômade nos diversos municípios goianos para que mais mulheres recebam capacitação e repliquem esses saberes no intuito de se fortalecerem e cobrarem políticas públicas dos gestores locais com ênfase no combate à pobreza, a desigualdade de gênero, o machismo e o sexismo. Que sobretudo consigam a emancipação humana.\"
O procurador do trabalho considera revolucionária a atuação do coletivo. \"São pequenas ações que, concentradas em muitas mãos, conseguem resultados. É uma ciranda que gira em torno da transformação social. Nesse mundo capitalista, neoliberal que a gente vive, as ferramentas de trabalho e saber se tornam ferramentas humanas. O que a gente quer é que a casa seja esse espaço, que emancipe humanamente essas mulheres.\" A Organização Internacional do Trabalho (OIT) é apoiadora da instituição e de seus projetos.
Para Tiago Ranieri, o prêmio da Anamatra conquistado pela AsCoralinas é um reconhecimento de todos os produtos de transformação social que foram criados pelo grupo feminino vilaboense. \"Concorreram mais de 180 projetos do País inteiro. Foram vários critérios e etapas. Mesmo sendo uma ação desenvolvida numa cidade do interior de Goiás, conseguiu impactar a comissão de juristas do trabalho. Temos que provar que o coletivo de mulheres é capaz de fazer uma transformação social.\" Em 2024, o prêmio da Anamatra teve como tema Direitos Humanos no Mundo do Trabalho. A entrega da premiação será no dia 4 de dezembro, em Brasília (DF).
**Cora Coralina é inspiração por ter escolhido o próprio destino**
O embrião da AsCoralinas surgiu em 2013 com recursos provenientes de uma emenda parlamentar da então deputada federal Marina Santana. A verba era parte do programa Políticas para as Mulheres: Promoção da Autonomia e Enfrentamento à Violência, da Presidência da República. A ideia nasceu dentro da prefeitura da cidade de Goiás como um projeto. A atenção inicial foi para mulheres em situação de violência doméstica. De imediato, 150 delas receberam capacitação em artesanato - cerâmica, palha, bordado manual, confecção de bonecas - gastronomia e compartilharam leituras da poesia de Cora Coralina. O legado da escritora referenciou e estruturou o sentimento de identidade e de pertencimento dos valores vilaboenses.
\"Cora Coralina é a nossa inspiração porque foge do modelo da feminilidade que a sociedade queria impor a ela. E construiu o destino que quis. Seu sonho de ser escritora foi realizado após os 70 anos. Ela escolheu para ser o objeto de sua poesia os párias da cidade, pessoas e lugares simples. Ou seja, fez da poesia um lugar de denúncia social\", disse Ebe Maria de Lima Siqueira na abertura do 18º curso de gastronomia e letramento literário. Doutora em Estudos Literários e docente da Universidade Estadual de Goiás (UEG), ela é o candeeiro da AsCoralinas. Participou da estruturação do então projeto ao lado de outras mulheres atuantes da cidade de Goiás, presidiu a associação por dois mandatos e agora é a secretária executiva.
\"Percebo que estamos num movimento transformador para todas as pessoas participantes. Um movimento sem volta.\" Para Ebe, a experiência do letramento literário, tendo como referencial a literatura feita por mulheres, é uma poderosa ferramenta de reflexão. \"Elas se percebem como sujeito de sua própria história e de direitos, como o direito ao trabalho, do respeito do outro, à arte, à literatura e a viver com dignidade.\"
Passando um ano sabático no Brasil, a francesa Jeanne Faure, mestranda em Direitos Humanos numa universidade parisiense, encontrou na AsCoralinas um campo fértil. Até março de 2025 ela fará todas as vivências da casa. \"O trabalho é maravilhoso. Em Paris é muito difícil encontrar comunidades em que mulheres podem ser elas mesmas, compartilhar muitas coisas e sem necessidade de políticas públicas.\"
**Uma rede de solidariedade sobre pedras**
Em 2021 a AsCoralinas ganhou uma ampla sede própria. Até então as oficinas eram realizadas no pátio do Mercado Municipal onde fica a sala de venda da produção da associação ou em algum espaço da UEG. A conquista contou com a generosidade da jornalista e escritora Arcelina Helena Públio Dias que escolheu a cidade de Goiás para viver. Um terreno repleto de pedras e árvores nativas no bairro Rio Vermelho foi doado à AsCoralinas sob a condição de que o mínimo de verde fosse retirado. Parte das pedras invadiu a construção quase numa metáfora da vida da grande maioria das ocupantes do lugar. O resultado absoluto, entretanto, é enternecedor. A mansidão, a esperança e a reverência reinam.
Dos cem caminhões de terra retirados do terreno, 20 foram utilizados para fazer o muro frontal batizado de Muro da Amizade, uma homenagem ao procurador da República, Jorge de Medeiros, que morreu em 2021, vitimado por um câncer. Ebe conta que os R$ 400 mil necessários para a construção da sede vieram das multas trabalhistas direcionadas pelo MPT e 18º TRT, mas coube à viúva do procurador, Adriana, um gesto altruísta. \"Ela transformou o luto numa rede de solidariedade\", explicou, sobre os R$ 11,4 mil que Adriana arrecadou junto aos amigos do marido para a construção do muro que ganhou canteiro com plantas fitoterápicas. A ação da AsCoralinas é o tema do doutorado de Adriana junto à Universidade de Brasília (UnB).
Em cada espaço da Casa das Coralinas uma mulher que contribuiu para a construção dos saberes de Vila Boa é homenageada. São as \"mestras\", que lá atrás, na labuta diária da sobrevivência, conceberam anonimamente um patrimônio imensurável. Muitas delas continuam ministrando as oficinas de gastronomia, artesanato ou cerâmica, transmitindo um conhecimento ancestral. Muito desse legado está reunido no livro *Saberes das mãos e narrativas do afeto,* organizado por Ebe Maria de Lima com o apoio de Goiandira Ortiz, atual secretária de Cultura na antiga capital e uma das idealizadoras do projeto das Mulheres Coralinas. Ebe mostra uma das paredes do salão de oficinas feita com tijolos de adobe produzidos por participantes na época da pandemia. Em cada um foi escrito o nome das avós ou bisavós. \"A nossa ancestralidade está presente.\"
**Futuro ponto de cultura**
Muita coisa mudou nos arredores da sede da AsCoralinas. Até então um dos bairros com maior índice de violência doméstica na cidade de Goiás, as cercanias sentiram o reflexo do movimento vigoroso e humanitário da casa de tijolos à vista. Nada passa despercebido e qualquer indício de possibilidade de transformação pode virar oficina. Foi o que aconteceu há pouco quando o muralista Wes Gama coloriu uma das paredes da sede com a imagem de Maria Sebastiana, a homenageada da cozinha. \"Ela colhia os cajuzinhos no Cerrado e fazia as passas. Morreu no ano passado, de infarto\", conta Ebe. \"As pessoas paravam para observar e pediam para pintar suas casas, por isso estou em busca de recursos para fazer uma oficina de grafite com meninas e meninos. Minha ideia é fazer uma galeria aberta aqui no bairro.\"
Se depender da associação, ainda há muito para acontecer. \"A casa está prestes a se tornar também um ponto de cultura e caminha na direção de se firmar como um centro de educação estética, mas uma estética comprometida com a arte do bem viver. E todo esse movimento só está sendo possível porque todas nós estamos imbuídas da necessidade de estarmos em rede. Isoladamente não chegaremos aos dias melhores que tanto sonhamos. É preciso quebrar a lógica do capital, que nos incentiva a sermos apenas consumidoras. Nesse território vamos sempre defender uma economia solidária e um desenvolvimento coletivo e responsável com o planeta\", salienta a secretária executiva da AsCoralinas.
Entre os projetos à vista está a construção de chalés no terreno da sede para abrigar as participantes dos cursos que chegam de fora. Hoje elas ficam hospedadas em hotéis da cidade. A construção de um café aberto ao público no ponto mais alto, o Monte da Transfiguração, como foi batizado por Arcelina Helena, é outro desejo das dirigentes. \"A vista do pôr do sol daqui é linda\", aponta Ebe. O espaço levará o nome da jornalista que mora nas proximidades e hoje convive com a doença de Alzheimer.