A retomada das atividades presenciais gerou um dilema no Judiciário sobre a manutenção do trabalho remoto de magistrados. De um lado, associações da categoria elencam os benefícios das teleaudiências. Do outro, entidades do sistema de Justiça afirmam que há prejuízo para a população.
O tema foi debatido pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) em audiências públicas, em outubro. Na ocasião, o presidente do órgão e do STF (Supremo Tribunal Federal), ministro Luiz Fux, disse que fará a regulamentação após debate participativo. Não há, porém, prazo de término para a discussão.
Enquanto isso, a Justiça brasileira está dividida. Um levantamento feito pelo CNJ com 47 tribunais do país identificou que 13 deles retomaram as audiências presenciais e outros 19 mantêm o formato híbrido - com audiências online e presenciais- que é defendido pelas associações.
Entre os argumentos a favor estão o aumento da produtividade e a economia. Segundo o relatório Justiça em Números, em 2020 havia 75,4 milhões de processos em tramitação no país, uma redução de 2% em relação a 2019, o pico da série histórica. No orçamento, a economia foi de R$ 4,6 bilhões, descontada a inflação.
"A gente quer trabalhar com uma perspectiva de percentual, de funcionamento presencial e a distância, levando em consideração os dados muito positivos que a gente obteve durante a pandemia e que demonstraram que a Justiça brasileira é uma das mais produtivas do mundo", diz a presidente da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), a juíza Renata Gil.
A comunicação com operadores do direito e o ganho na qualidade de vida, especialmente para alguns grupos, como as juízas, também são destacados pelos magistrados.
"Numa perspectiva de gênero, se é fato que o teletrabalho confundiu o que já era confuso, que são esses planos do público e privado, flexibilizou e facilitou tarefas que as mulheres já exerciam", afirma a juíza Clara Mota, secretária-geral da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil), e diretora da comissão Ajufe mulheres. Ela diz que a maioria das magistradas defende a regulamentação.
Há ainda relatos sobre elogios recebidos pela população, que não precisa se deslocar até os fóruns ou se ausentar no trabalho para comparecer em juízo.
"A dificuldade de chegar sempre existiu, seja chegar fisicamente ou virtualmente. Temos dificuldades econômicas gigantescas, em que a pessoa não tem o passe para ir até o fórum presencialmente ou ela tem uma dificuldade maior de deslocamento ou do trabalho", diz a assessora da Corregedoria Geral da Justiça do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), a juíza Jovanessa Ribeiro Silva Azevedo Pinto.
Diante da impossibilidade de participar de forma online, ela afirma que o atendimento presencial tem sido realizado nos fóruns.
Já no campo das críticas, defensores, desembargadores e a advocacia destacam prejuízo à defesa nos julgamentos e na identificação de eventuais violações.
Como mostrou a Folha, houve uma queda de 70% nas audiências de custódia desde o início da pandemia, passando de 222 mil em 2019 para 66 mil em 2020.
Nessas audiências, realizadas em até 24 horas após a prisão por flagrante ou mandado, o magistrado decide sobre a manutenção da prisão e também pode identificar sinais ou relatos de tortura e maus-tratos.
A defensora pública do Acre Rivana Ricarte, presidente da Anadep (Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos), diz que a instituição reconhece avanços da tecnologia, mas está preocupada com a perspectiva dos direitos humanos.
"Na digitalização é preciso olhar para quem está do outro lado. O público que a gente atende é majoritariamente muito pobre", diz, acrescentando que a qualidade da internet no país não é boa o suficiente para assegurar que não haverá injustiças nos processos.
Pesquisa sobre hábitos de uso e navegação na rede realizada pelo Instituto Locomotiva e pelo Idec (Instituto de Defesa do Consumidor) mostrou que cerca de 55 milhões de brasileiros ficam pelo menos uma semana sem internet todo mês.
"O Brasil não é só Rio, São Paulo e Minas. Há lugares em que falta luz todo dia, das 16h às 18h", diz o presidente da Andes (Associação Nacional de Desembargadores), Marcelo Buhatem.
Ele defende que em comarcas pequenas e em casos sensíveis, como nas audiências de custódia e processos da Lei Maria da Penha e varas de família, seja adotado o sistema presencial.
Renata Gil diz que a AMB foi a primeira a pedir inclusão digital nos tribunais e que o atendimento presencial tem sido realizado quando o problema não é superável. Ela afirma ainda que não há registro de casos de prejuízo junto ao CNJ.
"O avanço não pode ser impedido por alguma situação que seja excepcional. As nossas forças têm que estar canalizadas para a inclusão digital e não para o impedimento da utilização do teletrabalho e do processo digital", diz.
Clara Mota, da Ajufe Mulheres, acrescenta: "ninguém está dizendo que a Justiça vai passar a operar somente em nuvem, que não vai ter juiz nas localidades. O que a gente está querendo é uma tradução do que já está acontecendo".
Para a ministra Maria Cristina Peduzzi, presidente do TST (Tribunal Superior do Trabalho), o teletrabalho foi uma necessidade imposta pela pandemia que não pode, entretanto, ser transformado em algo ordinário para atender interesses corporativos, pois a presença do juiz é uma determinação da Constituição Federal.
"Só por meio de uma emenda constitucional poderia alterar essa condição do juiz residir na comarca. Se o juiz é a presença do Estado na área onde exerce a jurisdição, é porque para julgar ele precisa conhecer como vive aquela comunidade e qual é a realidade ali existente."
"Não identifico qualquer interesse para o jurisdicionado em que o magistrado se ausente da jurisdição e despache por meio de videoconferência. Não é a mesma coisa. Não é o adequado. O interesse institucional está ausente", conclui Peduzzi.
O juiz Luiz Antonio Colussi, presidente da Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho), que defende a regulamentação do teletrabalho com autonomia para os tribunais, diz que a percepção no meio é que houve um ganho qualitativo nas decisões, apesar de haver obstáculos na produção de provas.
"A avaliação feita pelos colegas é que conseguem realizar um trabalho adequado e alguns afirmam que a qualidade da decisão melhora, porque tem mais tempo para elaborar. A grande dificuldade está ainda na colheita das provas, isso sim é o que exige mais, porque às vezes a internet não funciona".
Já o Conselho Nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) defende o modelo presencial para as audiências, com os juízes nas comarcas, e o uso do plenário virtual nas sustentações orais.
"Ainda não se inventou um modelo que se possa fazer uma audiência trabalhista ou de custódia com o nível de confiança, de contato, de controle que uma testemunha, por exemplo, tem que ter", afirma o presidente nacional da OAB, Felipe Santa Cruz.
As sessões do plenário do CNJ devem ser retomadas em fevereiro, dando continuidade ao debate.