Vacinação da covid-19 e as relações trabalhistas. Trabalhador pode ser obrigado a se vacinar? Pode o empregador dispensar justificadamente quem se negar a tomar a vacina contra covid-19?
RESUMO: No atual contexto em que vivemos, a pandemia têm trazido uma matéria inédita e polêmica relacionada à obrigatoriedade da vacina, muitos têm sido os questionamentos sobre a obrigação da imunização na relação de emprego. O presente artigo aborda sobre as questões jurídicas envolvendo a possibilidade de o empregador tornar obrigatória aos empregados a vacinação contra a COVID-19, bem como em caso de negativa por estes, quais as medidas poderão ser implementadas.
Com o avanço da vacinação da população brasileira contra o Covid-19 e a diminuição do número de casos de infecções e de óbitos decorrentes do vírus, muitas empresas têm adotado políticas de retorno ao trabalho presencial, trazendo um amplo debate acerca da obrigatoriedade ou não da vacina, e os desdobramentos legais no caso de recusa.
Esse retorno gradativo ao trabalho presencial implica na adoção de medidas protetivas das empresas para com seus funcionários, como a obrigatoriedade do uso de máscara, distanciamento social, disponibilização de álcool gel, higienização dos ambientes e, atualmente, tem-se discutido a possibilidade dos empregadores exigirem a vacinação contra o Covid-19. Além da obrigatoriedade da vacinação, questionando-se também, quais as condutas que as empresas podem adotar em relação aos funcionários que se recusam a tomar a vacina.
Quando iniciado o processo de vacinação, o Ministério Público do Trabalho emitiu parecer, e se mostrou favorável à aplicação de penalidades severa aos trabalhadores que se recusarem a tomar a vacina, entendendo que a recusa individual de um trabalhador não pode colocar em risco os demais empregados e consequentemente, a sociedade..
A fim de responder com mais propriedade a esses questionamentos, é essencial analisarmos o atual contexto legislativo e jurisprudencial a respeito da responsabilidade do empregador quanto ao meio ambiente de trabalho, da compulsoriedade da vacinação e da possível limitação de direitos em caso de não vacinação.
O QUE DIZ A LEI
Em 6 de fevereiro de 2020, logo no início da pandemia do covid-19 foi publicada a lei 13.979/20, que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da pandemia. Dentre as medidas previstas, a lei estabeleceu que as autoridades, no âmbito de suas competências, poderão determinar a realização compulsória de vacinação e outras medidas profiláticas (art. 3º, III, d). Porém a lei foi objeto de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, e o STF, no julgamento conjunto das ADIs 6.586 e 6.587 e do Recurso Extraordinário com Agravo (ARE) 1.267.879, decidiu, em dezembro de 2020, que o Estado pode determinar aos cidadãos brasileiros que se submetam compulsoriamente à vacinação contra a Covid-19. O julgado caminhou no sentido de que a vacinação é obrigatória, sendo passível de impor aos que se recusarem limitações de acessos, multas e restrição da liberdade, pois não fere a liberdade de consciência e de convicção filosóficas, e que essas medidas devem ser implementadas pela União, estados e municípios.
Em se falando especificamente do meio ambiente do trabalho, cabe às empresas a responsabilidade de fazer valer o direito à saúde de todos os trabalhadores, uma vez que a Constituição Federal já prevê que é direito dos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (art. 7º, XXII). Da mesma forma, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) determina que as empresas tenham relevantes deveres em relação à saúde de seus funcionários. Art. 157 - Cabe às empresas:
I - cumprir e fazer cumprir as normas de segurança e medicina do trabalho;
II - instruir os empregados, através de ordens de serviço, quanto às precauções a tomar no sentido de evitar acidentes do trabalho ou doenças ocupacionais;
III - adotar as medidas que lhes sejam determinadas pelo órgão regional competente;
IV - facilitar o exercício da fiscalização pela autoridade competente.
No mesmo sentido, a CLT também prevê que os trabalhadores têm obrigações relacionadas ao meio ambiente de trabalho saudável, podendo, inclusive, sofrer sanções em caso de violações às normas estabelecidas pelo empregador. Art. 158 - Cabe aos empregados:
I - observar as normas de segurança e medicina do trabalho, inclusive as instruções de que trata o item II do artigo anterior;
II - colaborar com a empresa na aplicação dos dispositivos deste Capítulo.
Parágrafo único - Constitui ato faltoso do empregado a recusa injustificada:
a) à observância das instruções expedidas pelo empregador na forma do item II do artigo anterior;
b) ao uso dos equipamentos de proteção individual fornecidos pela empresa.
Ainda, a legislação previdenciária dispõe na lei 8.213/1991 que a empresa é responsável pela adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador, e que constitui contravenção penal, punível com multa, se a empresa deixar de cumprir as normas de segurança e higiene do trabalho (art. 19, §§ 2º e 3º).
Por derradeiro, a lei 13.979/20 estabelece que durante a emergência de saúde pública decorrente do coronavírus o poder público e os empregadores ou contratantes adotarão medidas consideradas essenciais ao controle de doenças e à manutenção da ordem pública. (art. 3º-J).
Deste modo, analisando a legislação específica e o entendimento do STF sobre o assunto, deduzimos que a vacinação, além de ser um direito dos cidadãos, trata-se também de um dever de todos, na medida em que a necessidade de imunização da coletividade transcende eventuais interesses particulares, por mais legítimas que essas eventuais escusas possam parecer para determinados cidadãos. Nesse ponto, vale mencionar que a CLT também reconhece a prevalência do interesse coletivo sobre o privado, ao estabelecer em dispositivo que trata da interpretação das normas que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público (art. 8º).
Além de se tratar de um direito-dever dos cidadãos à vacinação, as empresas têm a obrigatoriedade de exigir que seus funcionários apresentem o comprovante de vacinação para retorno às atividades presenciais, sob pena , na recusa, de serem responsabilizados, acarretando a rescisão indireta do contrato de trabalho, situação que ocorre quando o funcionário dá a justa causa ao empregador.
Alinhados a esse entendimento, os Tribunais trabalhistas estão chancelando as decisões das empresas que dispensam por justa causa funcionários que se recusam à vacinação e também negando rescisão indireta pedida por funcionários que entendem que não devem se vacinar. O mesmo entendimento foi adotado pelo Ministério Público do Trabalho em seu "Guia Técnico Interno do MPT sobre vacinação da Covid-19.
Vale lembrar que as limitações impostas para cidadãos que não desejam se vacinar contra o Covid-19 não são novidades criadas nesta pandemia, já que existem há muito tempo compulsoriedade de vacinação para participação em concursos públicos, realização de matrícula escolar, alistamento militar e viagens internacionais, além da percepção do salário-família (art. 67, da lei 8213/91),
Não devendo ainda, serem menosprezadas, as decisões dos tribunais trabalhistas condenando os empregadores a indenizar os colaboradores contaminados com a Covid-19 no ambiente do trabalho, fatos caracterizados como acidentes do trabalho, existindo presunção relativa de que o trabalhador adquiriu a doença no exercício da atividade. Desse modo, a falta de imunização do empregado por mera liberalidade e sem qualquer justificativa tem sido objeto de repúdio em ambientes de trabalho.
O que vem acontecendo no Brasil é uma tendência que já se verifica em outros países. Nos Estados Unidos, o Facebook e o Google estão condicionando a volta aos escritórios, a partir de outubro, à imunização de seus funcionários. Em julho, um porta-voz do Facebook alertou em comunicado interno que será exigido o comprovante de vacinação de seus colaboradores no retorno a qualquer em seus campus.
PORTARIA nº 620 DO MINISTÉRIO DO TRABALHO
No sentido contrário às decisões do STF e do MPT, em 1º de novembro o Ministro do Trabalho e Previdência editou a Portaria número 620 que, entre outras medidas, proíbe as empresas de na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente comprovante de vacinação. A referida portaria considera discriminatória a prática da obrigatoriedade de certificado de vacinação em processos seletivos de admissão de trabalhadores, assim como a demissão por justa causa de empregado em razão da não apresentação de certificado de vacinação. Por fim, afirma que o rompimento da relação de trabalho por ato discriminatório, além do direito à reparação pelo dano moral, faculta ao empregado optar entre a reintegração com ressarcimento integral de todo o período de afastamento, ou a percepção, em dobro, da remuneração do período de afastamento, corrigida monetariamente e acrescida dos juros legais.
A exigência de vacinação contra o novo coronavírus não é sequer uma faculdade das empresas, mas uma obrigação imposta pelo ordenamento jurídico brasileiro, sendo uma medida eficaz de proteção coletiva, que visa à oferta de um ambiente de trabalho imunizado contra o novo coronavírus. É preciso lembrar, conforme dispõe o artigo 8º da CLT, que as autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho devem atuar de modo que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público.
Para o juiz Guilherme Feliciano, professor de Direito do Trabalho da USP e ex-presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), do ponto de vista jurídico legal, a portaria não tem valor algum porque só lei federal pode disciplinar Direito do Trabalho. Sendo assim, ela é absolutamente inconstitucional e ilegal, representando uma usurpação da competência legislativa do Congresso Nacional., que em cumprimento ao artigo 49 da Constituição, urge sustar seus efeitos, restabelecendo, com isso, a segurança jurídica para as empresas que adotam medidas visando à proteção da saúde de todos os trabalhadores e à higiene de seu local de trabalho.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com tudo que foi exposto, concluímos que até o presente momento não há qualquer definição legal sobre este tema, não existe uma resposta clara e direta. De um lado, o livre arbítrio do cidadão, desobrigado a fazer ou deixar de fazer algo sem previsão legal (artigo 5º, II, da CF) e de outro, diversas regras, como a função social do contrato, a prevalência do direito coletivo sobre o privado e o direito potestativo do empregador. A questão é controversa e deverá ser resolvida com bom senso e à luz de cada caso específico, dado que ainda não há um entendimento jurisprudencial e nenhuma lei. Sendo assim, diante da incerteza na aplicabilidade de medidas punitivas, tais como a demissão por justa causa nos casos de eventual recusa, cada empresa deverá analisar os casos de forma isolada e agir sempre com a cautela e zelo que o assunto demanda.
Por fim, apesar de o assunto abordado ter se tornado sensível e polêmico não só na nossa sociedade mas, em outros países, constatamos que devido a falta de lei que regulamente o tema, cabe a sociedade agir em conjunto na imunização, de forma a todos protegerem-se a si próprios, suas famílias e toda a coletividade em uma rede de proteção compartilhada que somente gerará frutos positivos a todos.