Flávio Ferreira
São Paulo
A medida provisória 966 é inconstitucional, de acordo com parte dos especialistas ouvidos pela Folha. Outros entendem que a MP nào traz novidades, pois só repete previsão de isenção de responsabilidade de servidores em situações excepcionais que já está presente na legislação brasileira. E isso pode resultar em insegurança jurídica.
A MP determina que durante a crise da Covid-19 os ocupantes de funções públicas só podem responsabilizados, no campo civil e administrativo, se "agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro".
Para a professora aposentada de direito administrativo da USP Odete Medauar, há inconstitucionalidade na nova MP por violar o artigo 37 da Constituição, que estabelece a responsabilidade dos órgãos públicos pelos danos causados pelos seus servidores, ou seja, o dever da administração de ressarcir diretamente os cidadãos prejudicados.
Nesse tipo de atuação, ao mesmo tempo, os órgãos públicos podem se voltar ao ocupante do cargo que causou o dano e cobrar dele indenização correspondente àquela que a administração pública teve que desembolsar. Esse mecanismo legal, no jargão técnico, recebe o nome de direito de regresso.
Para a especialista, a edição da MP tem como meta impedir que a administração exerça esse direito de regresso em relação aos agentes públicos que estão desobedecendo as determinações das autoridades de saúde para o combate da pandemia.
"Existe um óbvio desvio de finalidade. No caso, o objetivo é isentar pessoas que estão contra o que a ciência determina. O texto fala em erro grosseiro. Erro grosseiro é você contrariar o que a ciência e a Organização Mundial da Saúde dizem. Isso é um absurdo, é coerente com o festival de horrores que estamos vivendo", afirma Odete.
O professor de direito constitucional da PUC-SP Pedro Estevam Serrano diz que o direito de regresso do Estado contra o servidor pode ser exercido sempre que ficar provado que um funcionário público agiu com dolo (vontade de prejudicar) ou culpa (ato decorrente de negligência, imprudência ou imperícia).
Para Serrano, o problema é que a MP estabelece que a cobrança ao agente público só possa ser feita em caso de erro grosseiro. "A previsão da Constituição é que basta culpa para responsabilizar os agentes públicos, ela não fala em erro grosseiro. A lei não pode restringir a responsabilidade do agente criada pela Constituição" diz.
Para a professora de direi to administrativo da Universidade Presbiteriana Mackenzie Lúcia Helena Polleti Bettini, o texto "atropela a Constituição" e pode ser derrubado no STF por ação direta de inconstitucionalidade (Adin).
Já o professor de direito público da FGV-SP Carlos Ari Sundfeld diz que o texto da MP não traz novidade em relação ao já previsto em lei aprovada em 2018, a lei 13.655, que alterou a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, promulgada em 1942.
A lei de 2018 foi sancionada com o objetivo de estabelecer proteção aos gestores públicos nos casos em que eles cometem erros administrativos com culpa leve e sem má fé.
Há controvérsia jurídica sobre a constitucionalidade do texto, tendo em vista as disposições do artigo 37 da Constituição, que não faz diferenciação entre culpa leve e grave.
A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) apresentou ao STF ação para declarar a lei 13.655 inconstitucional, mas como o caso ainda não foi decidido pelo tribunal, o texto legal está em pleno vigor.
"O conteúdo da medida provisória é inútil, porque o que está escrito nela já está na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, e está corretamente. A personalidade do presidente é que contamina a medida provisória, e não o conteúdo dela" diz Sundfeld.
Para ele, a edição de MP po de trazer prejuízos à aplicação da lei de 2018. "O presidente não tinha razão nenhuma para editar isso agora. Isso só traz desconfiança para um assunto que está sendo bem trabalhado pela Justiça", afirma.
Segundo o professor da FGV, "o presidente tem tido um comportamento de desprezo completo ao direito. Quando um presidente com esse comportamento edita uma MP, as pessoas que leem supõem, e é uma desconfiança razoável, que ele está fazendo alguma coisa naquela linha do desprezo à ordem jurídica e agora quer proteger de qualquer responsabilização aqueles que desprezam o direito."
A advogada e doutora em direito do Estado pela USP Mariana Chiesa entende que a MP trouxe uma redundância que pode resultar em insegurança jurídica. "Acho preocupante não aplicar a norma que já prevê essa proteção, fazendo parecer necessária uma nova norma com enfoque na pandemia".