» GUILHERME G. FELICIANO,
Juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté, é professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade
de Direito da Universidade de São Paulo e ex-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (2017-2019).
» ALAMIRO V. S. NETTO
Advogado. É professor titular de direito penal da Faculdade de Direito da USP
Em setembro último, veio a lume a Lei nº 13.869/2019, para redefinir o controle penal do abuso de autoridade no Brasil. Entendia-se que a revogada Lei nº 4.898/1965, para além de refletir os ideários do período da ditadura civil-militar, não mais satisfazia os anseios de uma sociedade que não aceita, como outrora, a pérfida cultura do "sabe com quem está falando".
Desde então, a mídia tem noticiado sucessivos ensejos de impactos negativos da nova lei -- que ainda nem entrou em vigor -- em processos judiciais concretos. Assim, por exemplo, em 30 de setembro, na cidade de Senhor do Bonfim (BA), um juiz criminal deixou de converter duas prisões em flagrante em prisões preventivas, ao argumento de que poderia vir a infringir os termos da Lei nº 13.869/19. No mesmo dia, em Japeri (RJ), o juiz deixou de proceder à penhora on-line de dinheiro do devedor com fundamento semelhante: o sistema Bacenjud, uma vez acionado pelo juiz, bloqueia imediatamente todas as contas ativas do devedor, nos limites do valor indicado, o que poderia configurar excesso de penhora e, por conseguinte, a conduta objetiva do artigo 36 da nova lei. E, assim, sucessivamente.
A rigor, não haverá crime de abuso de autoridade, se, nos termos dos parágrafos do art. 1º da lei, a autoridade não agir com a "finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal"; e, para mais, tampouco haverá crime se se configurar, no âmbito do processo, mera divergência de interpretação de lei ou de avaliação de fatos e provas. Não poderá haver persecução criminal em casos de equívocos, erros "in judicando" ou divergências de entendimentos. Nesse sentido, aliás, a nova lei aproximou a noção de abuso de autoridade com a de prevaricação em sentido amplo: deve-se coibir o desvio da função e a traição do interesse público.
Há, porém, ensejos e excessos perigosos no texto em vigor. A uma, parece claro que a nova legislação alimentará uma crescente litigiosidade endoprocessual, especialmente em audiências (e isso é particularmente problemático em procedimentos nos quais predomina a oralidade, como nos processos penais e trabalhistas). Além disso, bem se sabe que o Estado democrático de direito não convive bem com tipos penais excessivamente abertos, cujas redações instilem insegurança quanto às condutas que possam ou não estar ali contempladas. É o que se denomina de taxatividade penal; e, a respeito desses excessos, o próprio STF se manifestou (v., p. ex., HC 155.020). O que se deve entender, por exemplo, como prisão decretada em "manifesta desconformidade com as hipóteses legais"? Ou o que se poderá compreender como "liminar ou ordem de habeas corpus manifestamente cabível", para se apontar como crime o respectivo indeferimento? Ou, ainda, o que será uma condução coercitiva "manifestamente descabida"? A desconformidade ou o (des)cabimento deverá ser "manifesto" para quem? Ou ainda, no exemplo antes reportado, o que se entenderá por quantia penhorada ou indisponibilizada que extrapole "exacerbadamente" o valor da dívida? Aquela que a ultrapasse em 100%? Talvez 50%?
Tipos penais devem evitar, na medida do possível, elementos normativos que reconduzam às teias inexpugnáveis do psicologismo judiciário. É dizer: a lei penal não pode ser tão "flexível" hermeneuticamente, a ponto de se resolver, no fim das contas, com a definição judiciária do que é virtualmente insondável: saber se, no momento em que agiu, o réu estava ou não imbuído por maus sentimentos ("capricho", por exemplo). No célebre discurso de convocação dirigido à turma de graduandos de 2019 da Universidade de Duke, o reitor Steve Nowicki registrou fazer todo sentido questionar a autoridade, se a consideramos infundada, exercida injustamente ou de qualquer modo desatinada. Mas ao questionar, é preciso estar disposto a encontrar boas respostas. Sem abusos, de parte a parte.