A Medida Provisória da Liberdade Econômica, editada por Jair Bolsonaro em abril, tornou-se um Cavalo de Tróia para uma segunda fase da Reforma Trabalhista. Inicialmente apresentada como uma proposta para desburocratizar a vida das empresas, a MP 881 foi anabolizada com dezenas de propostas que alteram a Consolidação das Leis do Trabalho na comissão especial mista criada para analisá-la. Os 19 artigos iniciais tornaram-se mais de 50.
Coincidentemente, o projeto recebeu a aprovação de deputados e senadores na última quinta (11), exatos dois anos após o Congresso Nacional ter aprovado a Reforma Trabalhista.
Com seu parecer aprovado na comissão, a matéria será analisada pelos plenários da Câmara e do Senado após o recesso parlamentar e deve ser votada nas duas casas até meados de setembro, data em que expira a MP. Tramita agora como o Projeto de Lei de Conversão (PLV) 17/2019. Parlamentares ouvidos pelo blog afirmam que a proposta não foi anabolizada apenas nos gabinetes de deputados federais e senadores da comissão, mas também no Ministério da Economia com o apoio de setores empresariais.
Uma das propostas prevê que contratos de trabalho acima de 30 salários mínimos mensais serão regidos pelo Direito Civil, ressalvadas as garantias do artigo 7º da Constituição Federal que inclui direitos como férias e 13o salário, mas exclui muitas das proteções à saúde e segurança previstas na CLT.
Ivandick Rodrigues, professor de Direito na Universidade Presbiteriana Mackenzie e advogado trabalhista, avalia a medida como inconstitucional, por discriminar trabalhadores. "Tanto faz o valor de remuneração ou o tipo de trabalho exercido, sendo um trabalhador empregado, com vínculo celetista, ele terá os mesmos direitos que outro trabalhador celetista."
A mudança tem sido vista como a porta de entrada para a "carteira verde e amarela", proposta pelo ministro da Economia Paulo Guedes, em que a "negociação" individual estaria acima da CLT. Jovens ingressantes no mercado de trabalho podem ser o próximo alvo para esse tipo de contrato. Vale lembrar as palavras de Jair Bolsonaro, durante sabatina com empresários, em julho do ano passado: "o trabalhador vai ter que decidir se quer menos direitos e emprego, ou todos os direitos e desemprego".
Jornada, saúde e segurança
Outras medidas tratam da jornada de trabalho e do repouso semanal remunerado. A Constituição prevê que o descanso pode ser concedido preferencialmente aos domingos e determinadas categorias já contam com regras para o trabalho nesse dia estipuladas em negociações coletivas. O parecer aprovado na comissão autoriza o trabalho aos domingos e feriados, sem permissão prévia.
Noemia Porto, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), alerta que isso pode levar a uma "generalização" do trabalho aos domingos que, hoje, é uma exceção. Ainda mais se o descanso acabar suprimido em nome de remuneração extra. "Todos os dados estatísticos mostram que o excesso de disponibilidade para o trabalho é um risco laboral e está relacionado a doenças ocupacionais e acidentes, dos quais o Brasil é um dos campões mundiais." Para ela, ao invés de "esgotar a força vital das pessoas", empresas deveriam contratar mais trabalhadores.
Outra proposta aponta que "havendo necessidade imperiosa nas atividades econômicas do agronegócio", sujeitas a condições climáticas, o trabalho poderá ser exercido em sábados, domingos e feriados, prevendo remuneração ou compensação. Com isso, o trabalhador pode ficar quase duas semanas sem descanso.
O projeto mantém a existência de Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (Cipa) facultativo em locais com menos de 20 trabalhadores, mas acrescenta também as pequenas e microempresas. Avaliação do Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (Sinait) lembra que o Brasil é um dos campeões mundiais de acidentes de trabalho. Entre 2012 e 2018, ocorreu um acidente a cada 49 segundos e um morto a cada 3h38, causando também um prejuízo bilionário.
"Eliminar a obrigatoriedade da CIPA vai na contramão das políticas mundialmente reconhecidas como efetivas no combate à acidentalidade e aos impactos econômicos e sociais dela decorrentes." Uma das principais razões para a medida é que os empregados que fazem parte da Cipa têm estabilidade no emprego.
"As piores mudanças dizem respeito à exclusão de obrigatoriedade da CIPA para micro e pequenas empresas e as mudanças na sistemática de fiscalização e processo administrativo dos auditores do trabalho, pois vejo que ambas as hipóteses prejudicarão (ainda mais) a problemática dos acidentes no Brasil", afirma Ivandick Rodrigues. "Associado com as mudanças que se pleiteam para o sistema de seguridade social, os trabalhadores terão uma cobertura menor sobre o acidente ou doença do trabalho."
Fiscalização
Helder Santos Amorim, vice-presidente da Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), também alerta para o que chama de "afrouxamento da inspeção do trabalho", o que pode causar um impacto direto sobre a saúde e a segurança dos empregados. Um dos pontos é o que amplia o leque de infrações trabalhistas para os quais a dupla visita é aplicável. Para casos não listados como graves pelo governo, os auditores fiscais devem orientar e não multar a empresa na primeira visita, incluindo casos que envolvem estabelecimentos de grande porte ou que funcionam há muito tempo.
O projeto também prevê a instalação de um "conselho recursal paritário tripartite" com a presença de trabalhadores, empregadores e auditores fiscais do trabalho para analisar recursos de multas trabalhistas aplicadas em última instância. O governo Michel Temer tentou implementar essa estrutura e sofreu críticas pela possibilidade de empregadores e trabalhadores terem poder de anular autuações. A Convenção 81 da Organização Internacional do Trabalho, ratificada pelo Brasil, afirma que a função deve ficar na mão apenas de auditores fiscais concursados, com estabilidade e independência.
Outro polêmica é a permissão de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho. Com ela, o empregado não bate ponto todos os dias, mas registra apenas as entradas e saídas diferentes do normal. "O projeto prevê que isso pode ser definido por acordo individual por escrito com o trabalhador em empresas com até 20 empregados. Imagine as fraudes, com horas não registradas", afirma o procurador Helder Santos Amorim.
"Se a confecção do documento de controle de jornada deixa de ser obrigatória, seja este físico ou eletrônico, resta caracterizada uma situação de grave insegurança jurídica prejudicial a um ambiente de negócios saudável", afirma análise do Sinait. Porque, vale lembrar, a fraude também pode ocorrer contra o empregador que fez tudo dentro da lei sem que haja prova produzida para apoiá-lo.
Inconstitucionalidade
Há propostas que alteram a responsabilidade do grupo econômico. Com isso, uma empresa do mesmo grupo só poderá ser responsabilizada no caso de um calote juntos aos empregados se houver comprovação de fraude. De acordo com Noemia Porto será mais difícil punir aqueles empregadores e empresas acostumados a deixar um rastro de irregularidades.
A presidente da Anamatra avalia que "o projeto como um todo contribui para o processo de desestruturação do mercado de trabalho no Brasil".
No parecer do relator, o deputado Jerônimo Goergen (PP-RS), ainda apareciam algumas sugestões bastante polêmicas, como a chamada "medida anticrise", que não foram aprovadas.
Se a estimativa de desemprego do IBGE se mantivesse acima de 5 milhões de pessoas por 12 meses consecutivos, ficaria instituído um "regime especial de contratação anticrise", que suspenderia algumas leis, acordos e convenções coletivas que tratam de jornada de trabalho e duração de contrato. Ou seja, menos proteção ao trabalhador. Apenas para efeito de comparação, o desemprego, hoje, é de 12,9 milhões, segundo a última PNAD Contínua.
Esse ponto caiu com a negociação conduzida pelo deputado federal Ênio Verri (PT-PR), membro da comissão. "Tiramos o que foi possível do relatório", afirma. "Vamos discutir no plenário e, em caso de derrota, ajuizar o que for considerado inconstitucional." A oposição tentará levar ao plenário da Câmara dos Deputados os destaques que apresentou na comissão, como aqueles que tratam da possibilidade de estender o trabalho aos sábados, domingos e feriados devido a condições climáticas no campo.
O relatório passou com apenas três votos contrários em uma comissão com mais parlamentares-empresários e que representam os interesses de empregadores do que os de trabalhadores. Uma das razões para que esse projeto não tenha repercutido mais amplamente foi que sua votação na comissão ocorreu enquanto as atenções estavam voltadas aos debates sobre a Reforma da Previdência no plenário da Câmara dos Deputados.