Ministros do Tribunal de Contas da União criticaram duramente um projeto de lei aprovado pelo Congresso que aguarda sanção presidencial que trata de segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público. Na visão deles, o projeto, se sancionado pelo presidente Michel Temer, poderá dificultar enormemente a responsabilização de agentes públicos que cometerem irregularidades, ao exigir a comprovação de dolo (intenção), e engessar a fiscalização de contratos nas esferas administrativa e judicial.
Alguns ministros ressaltaram que as medidas poderiam trazer impunidade em um momento em que o País busca ampliar o combate à corrupção, e expressaram o desejo de que o presidente Michel Temer vete o projeto de lei. Outros falaram em veto parcial, ressaltando que há boas ideias no projeto, de autoria do senador Antonio Anastasia (PSDB-M), mas há problemas graves.
O presidente do TCU solicitou uma audiência com o presidente da República para que os ministros possam expor os riscos que enxergam no projeto. A tramitação sem audiências públicas foi criticada, e um dos ministros, Benjamin Zymler, sugeriu o reinício das discussões no Congresso.
Além das manifestações no plenário do TCU, nos dois últimos dias associações de magistrados, procuradores e auditores que enviaram ofícios ao Planalto pedindo o veto ao projeto de lei. O autor do projeto, Antonio Anastasia, afirmou via assessoria de imprensa que não houve atropelos na tramitação do projeto de lei e que não há limitação à atuação dos tribunais de conta.
Dos nove ministros presentes à sessão, apenas José Múcio Monteiro não entrou no debate. O ministro-substituto André Luis de Carvalho afirmou que "a sanção a esse projeto expressa ou tácita naturaliza o sistema de corrupção no país". O primeiro ministro a se manifestar no plenário foi Bruno Dantas, segundo quem as consequências do projeto seriam "desastrosas" e falou que a lei, se aprovada, pode ter a constitucionalidade questionada no Supremo.
Um dos pontos mais criticados estabelece que "o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro". Isso restringiria as punições de gestores, segundo os ministros. Atualmente, é possível punir gestores se comprovada a culpa, não necessariamente a intenção de cometer a irregularidade.
"Não existem instrumentos nos órgãos de controle que permitam demonstrar o dolo do agente. Para que isso seja feito, precisamos de métodos que permitam comprová-lo. Na Lava Jato, só conseguimos porque pegamos provas emprestadas. Mas em condições normais não conseguiríamos encontrar", afirmou Bruno Dantas.
Outro ponto criticado é o que cria a "ação declaratória de validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, cuja sentença fará coisa julgada com eficácia erga omnes", que tramitaria no poder judicial. Na prática, segundo ministros, isso poderia inviabilizar a atuação de tribunais de contas e da própria justiça.
"Como exemplo, hoje nos contratos da Petrobras sabemos que houve fraude a licitações e muitas outras irregularidades. Em 2009, não se sabia, a Lava Jato nem existia, mas já tínhamos suspeitas em relação à Refinaria Abreu e Lima. Bastaria que a Petrobras tivesse ajuizado uma ação como essa e o juiz, desprovido de qualquer elemento, declarasse válida. Somente por meio de uma ação rescisória no prazo limite de 2 anos poderia discutir. Depois, ninguém jamais, seja na esfera administrativa, seja na esfera judicial, poderia sequer olhar para esses contratos", disse Bruno Dantas. Segundo ele, é fundamental que qualquer alteração na lei permita pelo menos que os fatos descobertos posteriormente possam ser analisados.
O ministro afirmou que transferir para o poder judiciário a função de examinar a adequação e a economicidade dos preços ou valores previstos no ato, contrato ou ajuste irá "sepultar qualquer atividade dos órgãos de controle administrativo" e acrescentou que o poder judiciário não tem expertise e os conhecimentos técnicos para esse tipo de função, que é desempenhada pelos órgãos de controle administrativos.
'Interesse público'
O ministro Sherman Cavalcanti afirmou que o conteúdo do projeto de lei "é equivocado e pode provocar grave lesão ao interesse público". "É óbvio que prejudica os órgãos de controle e o poder judiciário no exercício da sua missão. Mas, pior ainda, prejudica a população brasileira, a sociedade brasileira, porque em determinadas situações ilícitas o erário vai ficar totalmente desprotegido", afirmou.
"Mas eu tenho certeza que o presidente Michel Temer ao ouvir as ponderações não só do tribunal mas dos outros órgãos certamente vai se convencer da necessidade de vetá-lo. Porque, se não for resolvida (a situação), podemos virar um paraíso da impunidade, e isso ninguém quer", disse.
A tramitação do projeto também foi questionada, principalmente quanto à Câmara, onde a aprovação se deu em caráter conclusivo, sem ir a julgamento ao plenário. "Não houve uma audiência pública que tenha sido discutido esse projeto. O assunto foi discutido em seminários particulares", disse o ministro Benjamin Zymler, que não considera a ideia como um todo negativa.
"Talvez a melhor solução seja sem dúvida reiniciar o processo legislativo na próxima legislatura e aproveitar esse período para discutir com todos os órgãos que tenham interesse", disse Zymler. Também expressaram preocupação os ministros Marcos Bemquerer, Vital do Rego, Weder de Oliveira e o presidente Raimundo Carreiro.
André Luís de Carvalho disse que, se Michel Temer sancionar, estaria "protegendo os amigos corruptos". "O presidente e vários membros do Congresso estão envolvidos em investigação de corrupção. Não podemos falar meias verdades. Membros do Executivo, Legislativo, Judiciário e até de tribunais de contas estão sendo investigados", disse.
Reações
Para além da manifestação no TCU, associações de magistrados, procuradores e auditores enviaram na terça-feira, 10, um ofício à Presidência da República pedindo o veto integral do projeto de lei.
As entidades que assinam o texto são a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (ANAMATRA), a Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE), a Associação Nacional dos Procuradores do Trabalho (ANPT), a Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), a Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (CONAMP) e o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais do Trabalho (SINAIT).
Na segunda-feira, a Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil (ANTC) e a Associação da Auditoria de Controle Externo do Tribunal de Contas da União (AUD-TCU) haviam enviado uma carta ao Planalto pedindo também o veto.
A assessoria de imprensa do senador Antonio Anastasia afirmou, em nota, que o projeto não altera qualquer competência dos Tribunais de Contas, "até porque é a Constituição Federal que prevê essas competências, algo que nenhuma Lei Ordinária pode modificar".
Acrescentou que, durante todos os 3 anos em que o projeto tramitou no Congresso Nacional o senador não foi procurado por qualquer órgão que apontasse críticas ao projeto. "Pelo contrário, o conjunto da proposta chegou a ser recomendado pelo Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CDES), conhecido como 'Conselhão', entre as 15 recomendações que, na avaliação de membros do colegiado, vão contribuir para a recuperação do País e foi apoiado por entidades como a Sociedade Brasileira de Direito Público, formada por especialistas e professores da área", diz a nota da assessoria. (Breno Pires)