Catharina Signorini, especial
No dia 3 de junho, a Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da IV Região (Amatra IV) elegeu como seu novo presidente o juiz Rodrigo Trindade de Souza, que irá comandar a associação até 2018. Nesta entrevista para o Jornal da Lei, o magistrado enfatizou os projetos que irão nortear a sua gestão e apresentou um panorama dos desafios que a Justiça do Trabalho está enfrentando.
Jornal da Lei - Em linhas gerais, quais são os principais projetos para a sua gestão?
Rodrigo Trindade de Souza - Existem dois projetos que são pautas mais externas à nossa vida associativa e que possuem maior relação com a sociedade. O primeiro deles diz respeito a esse grande problema do falso testemunho na Justiça do Trabalho. Cada ramo do Judiciário tem os seus lugares comuns, as suas lendas, as suas fantasias. As pessoas costumam dizer que a Justiça do Trabalho é a justiça que sempre favorece os empregados e é a justiça em que todo mundo chega, mente para o juiz, o juiz acredita em todas as mentiras e produz condenações fabulosas contra os empresários, que andam muito bonzinhos e não deveriam ser condenados. Mas a gente precisa entender o que é fantasia e o que é realidade, e por que surgiram essas ideias comuns. E por isso é importante que a gente admita que, de fato, corre muita mentira sobre a Justiça do Trabalho. As testemunhas mentem muito, mesmo, não têm muitos pruridos. Precisamos entender por que isso acontece e, principalmente, mudar a cultura de se aceitar isso como algo mais ou menos natural, que não se possa fazer nada contra. Por que as pessoas mentem tanto na Justiça do Trabalho? Há varias teorias sobre isso, mas me parece que a mais adequada é o fato de que não se vê punição. As pessoas mentem porque parece que nada vai acontecer com elas. De todos os ramos do Judiciário, a Justiça do Trabalho é o único que não tem competência criminal. Se uma testemunha mente na frente do juiz estadual ou do juiz federal, ele tem condições de promover o processamento dessa pessoa pelo crime de falso testemunho. A Justiça do Trabalho ainda não tem esse tipo de competência. Então, quando uma testemunha mente para o juiz, o que ele tem que fazer é produzir um ofício dizendo que acredita que essa testemunha mentiu, enviar o ofício para a Polícia Federal (PF) e para o Ministério Público Federal (MPF), e eles, de acordo com circunstâncias próprias desses órgãos, vão decidir pela investigação e pelo processamento do crime. Normalmente, há uma grande dificuldade desses órgãos no processamento e na condenação de testemunhas. Se você fizer uma pesquisa jurisprudencial e for verificar quantas pessoas foram efetivamente punidas pela Justiça Federal pelo crime de falso testemunho, vai ser um número extremamente pequeno. E é muito comum os juízes terem produzido esses ofícios e não terem visto resultado. E isso estimula outras testemunhas a mentir. Há um problema moral, muito grave, de as pessoas aceitarem a mentira como algo natural.
JL - E o que pode ser feito para reverter esse cenário?
Souza - Não temos como resolver, mas há um problema institucional da falta de punição. E a nossa instituição, a Amatra IV, resolveu dizer que agora basta, chega disso, é preciso tratar a sério o problema do falso testemunho, que desmoraliza a jurisdição. Não só a jurisdição trabalhista, mas desmoraliza o Poder Judiciário. Pensamos, então, em quatro grandes atuações para reverter esse quadro. A primeira delas é criar condições para que os juízes do Trabalho identifiquem as circunstâncias de falso testemunho. Vamos produzir uma cartilha detalhada, com identificação das circunstâncias de falso testemunho. A segunda é estimular os colegas para que eles encaminhem essas situações de falso testemunho para os órgãos competentes. Em terceiro lugar, e isso é inédito no País, a nossa associação vai atuar como assistente de acusação nos processos federais e vai atuar também nos inquéritos na PF. Há pouco mais de um mês conversei com o superintendente da PF e ele se mostrou bastante sensível a isso, vai aceitar a participação do nosso advogado criminalista. Vamos ter reuniões com o MPF para tentar sensibilizar. Eu entendo que essas duas organizações - o MPF e a PF - têm muito trabalho, com situações de potencial punitivo e de perigo para sociedade muito maiores do que essa situação, mas a situação que enfrentamos é grave, e são necessárias algumas condenações exemplares para mostrar que isso basta, chega, não vai acontecer mais. Os juízes do Trabalho do Rio Grande do Sul não vão aceitar mais a mentira na Justiça do Trabalho como algo natural. Em quarto lugar, vamos fazer uma ampla campanha de divulgação na sociedade do perigo que é, e da inadequação, de faltar com a verdade na Justiça do Trabalho, esclarecendo todos os efeitos penais, punitivos, do falso testemunho. Esse é um compromisso institucional que temos, até de sobrevivência da Justiça do Trabalho. Se a gente aceita a mentira nesse único ramo do Judiciário, em breve vamos estar dizendo que a Justiça do Trabalho é um ramo menor, e isso não é possível. De modo algum, estou dizendo que há uma prática generalizada da advocacia trabalhista de instruir testemunhas para que mintam. A advocacia trabalhista gaúcha é a melhor do Brasil. Tenho imensa admiração pela qualidade da advocacia trabalhista gaúcha. A maioria absoluta é de advogados preparados, inteligentes e honestos. Mas existe uma minoria que contamina bastante a percepção do que seja esse trabalho. Há fundados indícios de que poucos advogados trabalhistas, uma minoria, atua de forma indevida na instrução de testemunhas. Isso nós não vamos permitir também.
JL - Em relação ao outro projeto da gestão...
Souza - Nosso segundo projeto é o do tratamento eficaz das demandas massificadas. Ações que são compartilhadas em vários processos poderão ter encaminhamentos completamente diferentes. Queremos oferecer um tratamento adequado às chamadas demandas de massa. É muito comum que uma situação equivocada, de uma empresa, com 300 ou 400 funcionários, produza 300 ou 400 processos individuais. Não faz sentido, por uma situação de fato única, eu ter três ou quatro centenas de processos. É importante que haja um tratamento adequado dessas demandas massificadas, de oferecer um tratamento uniforme para essas ações. Isso vai ser muito importante para não mais abarrotar o Judiciário.
JL - Muitas notícias tratam dos sérios problemas que os Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) estão enfrentando em razão do corte orçamentário. Como dar continuidade à prestação jurisdicional nessa situação?
Souza - Precisamos rememorar o que aconteceu. Em 2015, foi produzida a Lei Orçamentária Anual, com destinação de recursos para a Justiça do Trabalho. Esses recursos foram cortados de forma desproporcional no que tange à Justiça do Trabalho. Houve um corte geral no Poder Judiciário, mas na Justiça do Trabalho o corte foi muito superior a todos os demais ramos. Para se ter uma ideia, houve uma diminuição de mais de 30% das verbas de custeio e 90% das verbas de investimento. Por que o corte na Justiça do Trabalho foi maior? A informação que foi dada pelo relator do orçamento, deputado Ricardo Barros (PP-PR), é de que esse corte ocorreu porque a Justiça do Trabalho protegia, indevidamente, o trabalhador, e o corte deveria ocorrer para que o juízes do trabalho repensassem essa postura e buscassem alteração da legislação. Segundo o deputado, são muitas condenações das empresas, que passam a ter dificuldades de funcionamento em razão do Direito do Trabalho ser protetivo. Não existe Direito do Trabalho, no planeta inteiro, que não seja protetivo ao trabalhador. Se uma relação de trabalho é regrada pela identificação de que as partes são economicamente desiguais, é Direito do Trabalho.
JL - Qual o impacto do corte no serviço prestado?
Souza - Esse corte de orçamento foi desproporcional e houve um desvio de finalidade, o objetivo não foi econômico, de adequação do orçamento à realidade econômica do País. A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) ingressou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, que foi julgada improcedente porque se reconhecia a constitucionalidade na atribuição do Congresso de definir o orçamento. Porém, praticamente todos os ministros do Supremo Tribunal Federal afirmaram que era indevido o corte, que o Congresso Nacional deveria complementar o orçamento. A situação que se coloca é que, atualmente, praticamente todos os TRTs do Brasil não têm dinheiro para manter a atividade até o final de agosto. Se não houver complementação de orçamento, vai haver fechamento de portas. Não é porque não pode investir, porque não pode pagar salário, mas sim porque não tem como pagar água, luz, segurança, climatização. Não tem dinheiro. Recentemente foi editada a Medida Provisória nº 740, de liberação de verbas que estavam indevidamente retidas. O Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região vai receber cerca de R$ 29 milhões. Mas isso não é complementação de verbas, é oriundo de uma retenção, já eram do tribunal e se destinavam a investimentos. Como há esse problema de orçamento, essa verba, que era de investimento e que estava retida, vai ser direcionada para pagamento de custeio. Se não houver uma política forte no Congresso Nacional e no Poder Executivo, isso pode se manter no ano que vem. É algo muito grave.
JL - Muito se tem falado sobre a elaboração de documento de defesa do Direito e da Justiça do Trabalho. Quais são os principais pontos elencados neste documento?
Souza - Este é um documento que foi produzido pelos ministros do Tribunal Superior Eleitoral, e depois foi aderido por um número gigantesco de juízes do Trabalho pelo Brasil inteiro. E o objetivo é pontuar o entendimento da necessidade de defesa dos princípios de Direito do Trabalho e demonstrar que somos contrários às reformas trabalhistas que busquem a precarização do Direito. Atualmente, no Congresso Nacional, existem 50 projetos de reforma da legislação do trabalho, praticamente todos eles para tornar precário o Direito, para fazer com que o trabalho seja mais barato para o empresário e que haja um rol menor de benefícios para os trabalhadores. São três grandes projetos com que temos que lutar de forma mais aguerrida. O primeiro - e eu acho que é o mais grave -, são os projetos de diminuição da idade mínima para o trabalho. Atingimos um patamar civilizatório exemplar no planeta, embora haja ainda muito a avançar, como a proibição de qualquer trabalho para menores de 18 anos, com exceção dos menores aprendizes. Porém, existem projetos que chegam a diminuir para até 12 anos a idade mínima do trabalhador. Ou seja, de regredir aos patamares do século XIX.
JL - Em algumas regiões do País essa cultura é mais forte.
Souza - Aqui no Rio Grande do Sul é muito comum as pessoas entenderem que há necessidade de as pessoas trabalharem desde pequenas, acredito que pela tradição que temos de trabalho rural, do colonato. Desde pequenas, as crianças trabalham na colônia e se acostumam com o trabalho. Isso cria a ideia de que pessoas que começam a trabalhar mais cedo possuem melhores chances de ter um sucesso profissional maior, e, estatisticamente, isso não é verdade. No mundo inteiro é assim, e no Brasil também, diversas são as estatísticas que mostram. Quanto mais cedo se começa a trabalhar, menores as chances de ter um crescimento econômico e cultural. Há um círculo vicioso de perpetuação de pobreza quando as pessoas começam a trabalhar mais cedo. As crianças não têm que trabalhar. As crianças têm que se formar e viver o ludismo da infância. Há tempo para tudo, há tempo para trabalhar e há tempo de brincar e estudar. A Anamatra atua de forma muito firme no Congresso Nacional, é uma das únicas instituições que faz isso, fazendo o esquadrinhamento e o acompanhamento de todos os projetos. Produzimos memoriais e notas técnicas sobre todos os temas importantes de Direito do Trabalho, e esse é um tema muito importante. O segundo tema relevante são os projetos da supremacia do negociado sobre o legislado. Atualmente, no Brasil, temos uma regra legal que diz que, quando um determinado direito está previsto na lei, a negociação coletiva não pode produzir normas para pior. Então, se diz na lei que a hora extra tem um adicional de 50%, não pode a negociação coletiva dizer que a hora extra vai ser de 30%. Isso porque nem sempre os sindicatos têm poder suficiente para negociar, com igualdade de armas, condições piores do que as previstas em lei. O problema da supremacia do negociado pelo legislado é que sempre se pressupõe um poder e uma representatividade, independentemente do sindicato, e nem sempre ela existe. E isso pode contaminar de forma muito tensa esses normativos coletivos, que podem vir a ser prejudiciais à lei. Atuamos de forma muito firme contra isso.
JL - E o terceiro item?
Souza - O terceiro item é o da terceirização. A terceirização é um problema muito grave. No mundo inteiro, a terceirização é uma opção administrativa das empresas para que elas possam se focar na atividade fim, e a atividade meio elas deixam para outras empresas especializadas. Em uma empresa especializada em produzir agendas, o trabalho de limpeza, de conservação, de segurança, não é o objetivo dessa empresa, então ela terceiriza para outras. No Brasil, a terceirização tem outro foco, que é o de redução de custos. Eu quero reduzir meus custos de produção, então eu terceirizo para uma rede de empresas satélites que fazem parte da produção por um preço muito menor. Para que esse preço seja menor, é necessário que haja uma redução de custos dessas empresas. E aí é matemático: se uma empresa tem que produzir lucro para duas empresas, para si e para aquela contratada, ela tem que reduzir muitos seus custos, e no Brasil essa redução de custos ocorre, principalmente, com a precarização do trabalho, com a sonegação de direitos trabalhistas, com a sonegação de direitos previdenciários, não pagamento de horas extras, contratação de autônomos, quando deveriam ser empregados. E isso causa problemas muito graves.