É inegável que esta era, sim, uma componente do debate. As Justiças estaduais, por estarem mais próximas dos poderes políticos locais, são mais permeáveis a pressões e influências externas. Por estarem mais distantes da observação da opinião pública nacional, também dão maior espaço à existência do que alguns críticos chegam a chamar de "coronelismo judiciário". E há quem resista mudar essa situação.
Só para se ter uma idéia, até havia pouco tempo, o Tribunal de Justiça do Maranhão não realizava concurso público para contratação de agentes administrativos.
O corporativismo e a complacência são dois subprodutos e, ao mesmo tempo, causa dessa realidade, que abrange também o trabalho das corregedorias estaduais, em especial quando se trata de investigar e punir desembargadores, que formam a cúpula dos Judiciários locais. Daí a declaração dura do ministro Gilmar Mendes no julgamento de quinta-feira: "Até as pedras sabem que as corregedorias não funcionam quando se cuida de julgar os próprios pares. Jornalistas e jornaleiros sabem disso".
A criação do Conselho Nacional de Justiça, há sete anos, começou a mudar essa situação.
"Até então, o Judiciário estadual era como um pequeno STF", disse a esta coluna o presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Renato Henry Sant`Anna, referindo-se ao fato de que, em matéria administrativa, os Tribunais de Justiça não deviam subordinação a instâncias superiores.
"Com o CNJ, criou-se a idéia de que o Poder Judiciário é único", acrescentou Sant`Anna.
A decisão tomada pelo STF na quinta-feira consolida esse conceito. Se a concepção fosse transportada para o Legislativo ou para o Executivo, seria como dizer que as Assembléias Legislativas e os governos estaduais devem subordinação administrativa a um órgão do Congresso Nacional ou da Presidência da República.
A analogia é imperfeita, claro, mas dá uma ideia da subordinação que os Poderes Judiciários estaduais devem agora a um órgão de caráter nacional.
Assim, havia também os que se opunham à possibilidade de o CNJ ignorar a primazia das corregedorias estaduais com base no princípio federativo, ou seja, o conceito segundo o qual os poderes do país se organizam a partir dos entes da Federação (União, Estados e municípios), que são independentes entre si. Ficou definido agora que o Conselho Nacional de Justiça pode, sim, interferir nas justiças estaduais.
Apesar da estridência dos debates no plenário do STF e também da forma algo distorcida com que a questão foi apresentada na imprensa, na prática, todos os ministros do Supremo, ao expor os seus votos, afirmaram que o CNJ tem competência para atuar antes das corregedorias. A divergência se dava em relação a como o órgão poderia atuar.
Para os ministros vencidos, o Conselho deveria expor as razões pelas quais abriria uma investigação antes das corregedorias estaduais e só poderia fazer isso quando houvesse alguma anomalia: processos simulados, demora injustificada na abertura de investigações e assim por diante.
O problema é que, se esse entendimento fosse adotado, muitos atos do CNJ poderiam ser contestados antes de serem implementados. Bastaria questionar as justificações do órgão e o debate mudaria de lugar. Passaria a ser se o Conselho tinha ou não razão de iniciar uma averiguação. Mas prevaleceu a tese de que a Corregedoria nacional não tem de se explicar antes de agir.
Apesar de a Associação dos Magistrados do Brasil ter tentado limitar os poderes do CNJ, não se pode considerar que essa seja a posição da maioria dos juízes e que todos os que concordavam com a ação da AMB o faziam por má-fé.
"A Anamatra (Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho) vê com tranqüilidade essa decisão do STF. Nossa tese era próxima à que prevaleceu no Supremo", diz Sant`Anna, por exemplo.
MAIS PODERES
Resta ainda ao Supremo decidir sobre outro tema que trata da extensão dos poderes do CNJ. Está para ser julgado um mandado de segurança impetrado em que a AMB, a Anamatra e a Associação dos Juízes Federais (Ajufe) questionam a decisão do Conselho que lhe deu acesso à declaração de bens de milhares de juízes, desembargadores e servidores de tribunais estaduais, federais e militares e seus parentes.
O ministro do STF Ricardo Lewandowski já concedeu liminar suspendendo a investigação aberta pelo CNJ com base nas informações obtidas.
Se o Supremo decidir em favor do Conselho, estará dizendo que o órgão tem também o poder, hoje restrito a juízes, de quebrar o sigilo fiscal e bancário dos funcionários do Judiciário.
O regimento interno do CNJ já prevê esse poder. Diz seu artigo 8º que compete ao corregedor nacional, dentre outras atribuições, "requisitar das autoridades fiscais, monetárias e de outras autoridades competentes informações, exames, perícias ou documentos, sigilosos ou não, imprescindíveis ao esclarecimento de processos".
A emenda constitucional que criou o CNJ prevê que "até que entre em vigor o Estatuto da Magistratura, o Conselho Nacional de Justiça, mediante resolução, disciplinará seu funcionamento e definirá as atribuições do Ministro-Corregedor". Ora, foi o que fez o estatuto.
Ocorre que tal poder, ainda que necessário para que se tornem mais rápidas e eficientes as investigações do CNJ, é realmente enorme. "Não vou perder um minuto de meu sono se o STF decidir assim. Mas tem de ser para todo mundo. É preciso que o STF decida que o CNJ pode quebrar sigilo", diz Sant`Anna.
Não são poucos os juízes, porém, que temem que esse poder possa ser exorbitado. No fim das contas, para alguns, resta a pergunta: "Quem correge o corregedor (correge, com "e" mesmo, do verbo correger)?"
A resposta cabe ao Supremo. No fim das contas, boa parte da crise que tem vivido o Judiciário por conta do debate a respeito dos poderes do Conselho se deve a uma omissão do STF: até agora, o Supremo não definiu seu projeto de Estatuto da Magistratura, a lei, que uma vez aprovada no Congresso, regerá o Judiciário e definirá definitivamente as atribuições e os poderes do CNJ.
Como disse Gilmar Mendes durante o julgamento de quinta-feira, "muitos dos debates versaram para a falta de um Estatuto da Magistratura. E, nesse caso, não podemos culpar o Congresso. A Corte é que deve enviá-lo."