Evento “Rodadas de Diálogos e Conexões”, foi promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF)
A presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Noemia Porto, participou, nesta quarta (24/6), da live “Rodadas de Diálogos e Conexões”, promovida pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (Com) Vida, da Universidade Federal Fluminense (UFF).
Também participaram do debate sobre o tema central “O Trabalho no Novo Espírito do Capitalismo” o Pós-Doutor em Direito e professor da Universidade Autônoma de Lisboa (POR), Thiago Rodrigues Pereira, e o professor de Ciência Política e Administração Pública da Faculdade de Direito da Universidade de Málaga (ESP), Rafael Portales. A doutoranda em Sociologia e Direito do PPGSD, Christine Veviani, atuou como moderadora.
Em sua primeira intervenção, Noemia Porto falou sua percepção acerca das repetidas falas que indicariam um possível fim do trabalho. A juíza lembrou que este discurso não é algo novo e que o que está em jogo, na verdade, não é o fim do trabalho, mas a transformação do chamado trabalho protegido.
No entendimento de Noemia Porto, o modelo de proteção do trabalhador que se estabeleceu durante o século passado e que se baseava na ideia de proteger as pessoas que necessitam do trabalho para viver numa lógica contratual específica, que era justamente a do contrato de emprego, começou a ser tencionado já início da década de 1970. “À época, já era possível perceber uma forte reformulação daquilo que alguns iriam chamar de sistema toyotista e outros chamariam apenas de modelo pós-fordista. De toda forma, já era um modelo que colocava em xeque a lógica jurídica de proteger apenas o trabalhador assalariado”.
Mesmo nos dias atuais, lembra a presidente da Anamatra, alguns segmentos da economia ainda apresentam elementos de um clássico fordismo ou taylorismo em suas cadeias de produção. “No Brasil, temos como exemplo os frigoríficos, em que o fordismo e o taylorismo se fazem presentes, mas já com elementos do pós-fordismo”.
Diante do cenário atual, a magistrada afirma que o trabalho não acabou, muito pelo contrário, o trabalho está na centralidade da vida das pessoas, ainda que não se tenha trabalho nenhum. “O trabalho é central mesmo que você jamais possa se ocupar em um posto de trabalho formal. A centralidade do trabalho reside no fato de que o trabalho continua sendo o único ou o principal eixo no que nós chamamos de sobrevivência das pessoas”.
Para Noemia Porto, o desafio trazido pela Constituição Federal de 1988 foi o de passar a pensar formas de proteção jurídica para a totalidade dos trabalhadores e não apenas para os trabalhadores que possuem vínculo empregatício formal. “Se pensarmos em proteção jurídica apenas para trabalhadores empregados, essa proteção sempre será mais excludente do que inclusiva, especialmente em países que sofrem com altas taxas de desemprego”.
A presidente da Anamatra ressalta que, na atualidade, há uma troca de termos, com a repetição de velhos problemas. “O que antes se chamava de fordismo ou taylorismo, hoje se chama de Economia 4.0, o que eu prefiro chamar de Trabalho 4.0, com a ideia de visibilizar as pessoas que continuam precisando do trabalho para viver, e que hoje se deparam com as inúmeras plataformas virtuais, que desagregam mais profundamente do que os modelos anteriores”.
Entre os aspectos característicos do Trabalho 4.0, Noemia Porto chama à atenção para o que chamou de micro trabalhos, como os serviços de entrega de comida, por exemplo, que oferecem também micro remunerações. Outro aspecto refere-se à economia do bico, que visa eliminar os “tempos mortos” de trabalho, para eventualmente invadir os espaços de descanso do trabalhador formal.
“Esse novo contexto desafia especialmente os juristas a repensarem quais são os patamares jurídicos de proteção. E o desafio para todos é o de pensar como a proteção jurídica pode ser mais inclusiva e universalizante e, eventualmente, capaz de dar respostas ao profundo patamar de desigualdade que estamos vivendo”, avaliou Porto.
Novo padrão de exigências ao trabalhador contemporâneo – A presidente da Anamatra também expôs o seu posicionamento acerca da nossa formatação trabalhistas, no que diz respeito às exigências impostas aos trabalhadores e trabalhadoras. Essas exigências, em muitos casos, resultam em jornadas excessivas de trabalho e atentam diretamente contra a dignidade da pessoa humana.
O risco dessa nova configuração de trabalho, aponta a magistrada, está em o trabalho deixar de ser central para o trabalhador como possibilidade irradiadora de direitos de cidadania, passando a ser o centro da vida do trabalhador ou trabalhadora. “Isso faz um processo de adesão exponencial da pessoa ao trabalho e que agride qualquer lógica de liberdade, ainda que adotássemos uma logica de liberdade ao modelo liberal”.
Na avaliação da presidente Noemia Porto, o direito à desconexão do trabalho, atualmente, se tornou estranho e está voltado a uma classe de trabalhadores e trabalhadoras que são privilegiados, ou seja, aqueles que têm vínculo empregatício, que não são terceirizados, ou que estão inseridos em carreiras públicas, pois para os demais não existe direito à desconexão.
“Esse direito a desconexão nos traz um desafio novo, que é estabelecer políticas macro para que a desconexão não seja um privilégio, mas se torne um direito generalizado, capaz de corresponder às expectativas das liberdades mais básicas”.
Para Noemia Porto, falar no afastamento ou na contrariedade ao estado do bem-estar social, numa lógica da ausência do Estado na articulação de políticas públicas e, notadamente, na questão do trabalho, é o mesmo que flertar com a convulsão social.
“Essa produção econômica da modernidade trouxe elementos para um capitalismo relacional, que nos desafia para estarmos no mesmo lugar, que é fazer com que as nossas relações, sejam elas sociais, políticas, jurídicas, sejam sempre voltadas à valorização da pessoa humana”, finalizou a presidente da Anamatra.
Confira abaixo a íntegra do debate.