No portal Jota, magistrado critica a falta de responsabilização da Administração Pública pela inadimplência dos encargos trabalhistas
O portal Jota publicou nesta quarta (22/3) artigo do presidente da Anamatra, Germano Siqueira, sobre a Lei 8.666/93 e os seus reflexos nos direitos dos trabalhadores terceirizados.
Confira:
Irresponsabilidade do Estado e Direitos Humanos
Por Germano Siqueira, presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - ANAMATRA
Ainda está no centro dos debates, com grande repercussão no meio jurídico e na vida cotidiana de milhares de trabalhadores, a opção legislativa encartada na Lei 8.666/93, mais especificamente em seu artigo 71, que estabelece com especial destaque em seus parágrafos primeiro e segundo o seguinte:
“Art. 71
(..)
§ 1o A INADIMPLÊNCIA do contratado, COM REFERÊNCIA AOS ENCARGOS TRABALHISTAS(..)NÃO TRANSFERE À ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA a RESPONSABILIDADE POR SEU PAGAMENTO (..)”.
“§ 2o A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA RESPONDE SOLIDARIAMENTE com o contratado PELOS ENCARGOS PREVIDENCIÁRIOS resultantes da execução do contrato, nos termos do art. 31 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991”.
O que temos diante desse quadro de escolhas legislativas? Sem dúvidas, um grave ferimento aos direitos humanos e aos compromissos democráticos que serviram de base à repactuação do Estado brasileiro em 1988, como se verá adiante.
É importante assinalar previamente que, no âmbito das contratações com o poder público, notadamente envolvendo as intermediadoras de mão de obra, há uma grande quantidade de empresas inidôneas, que são mal escolhidas e mal contratadas em processos licitatórios às vezes formalizados apenas para inglês ver, que, ao término das avenças, ou antes, já deixam pelo caminho dívidas trabalhistas, previdenciárias e fiscais. Um processo lamentável, que produz quadro fático desolador, resultante da má gestão desses contratos pelo poder público, incapaz de ser explicado ou solucionado por meras formalidades jurídicas, dando azo a que se tenha hoje que reconhecer que 25% dos maiores devedores trabalhistas são empresas que lidam com terceirização.
E é justamente por se saber dessa realidade, a produzir milhares de ações em trâmite na Justiça do Trabalho há décadas que se pode afirmar, sem dúvida alguma, ter o Congresso Nacional trilhado o pior caminho ao desenhar o texto do art.71 na Lei 8.666/93.
Em verdade, a norma em questão, mais precisamente em seu § 1º, desprezou completamente a tutela aos direitos sociais e ao bem jurídico “trabalho” , ao mesmo tempo em que introduziu naquele texto, em seu parágrafo segundo, algo pouco referido, que é uma indevida preferência que resulta do total descuido com o princípio da moralidade administrativa, a par de incidir em inexplicável contradição com disposto no parágrafo anterior.
Veja-se que a solução do parágrafo 2º impôs ao poder público socorrer as empresas sabidamente indignas de contratar com a União, estados e municípios, passando para a Fazenda Pública a conta resultante de suas dívidas previdenciárias. Para tanto, a lei autorizou o manuseio da técnica da responsabilidade solidária, empregada para dar vazão, no caso, aos piores expedientes do patrimonialismo que não raro animam os corredores invisíveis da política nacional para confundir interesses particulares com o patrimônio público.
A escolha política encartada no § 2º, por si só, deveria causar constrangimento, uma vez que premia, como se sabe, o mau pagador da Previdência, aquele que, no mais das vezes, nos processos licitatórios de terceirização, ao término dos contratos , não só descumpre esse dever legal (e termina socorrido ) como deixa de satisfazer obrigações trabalhistas.
Mas quanto a esses, o que ocorre? Dessa outra perspectiva, sem nenhuma coerência, pelo disposto no § 1º do art.71 o Parlamento reservou aos credores da mesma sequela uma solução completamente diversa e absolutamente injusta.
Recapitulando, em transcrição livre o parágrafo 1º do art.71 estabelece:
a inadimplência do contratado, com referência aos encargos (sic) trabalhistas não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento.
Mesmo ciente do panorama caótico e de descuido que predomina no ambiente da terceirização no serviço público brasileiro ou nas contratações no ambiente de negócios privados (que a modelagem de projetos que se pretende agora aprovar não vai corrigir) , o legislador fixou, sem nenhum receio, a ideia da total irresponsabilidade jurídica do poder público. Tal conduta produz como efeito prático, à luz da literalidade da lei, a total inefetividade prática de condenações judiciais quanto a créditos trabalhistas (no caso de procedência de pedidos), impondo como resultado concreto, para grande número de trabalhadores, a frustração de direitos básicos de subsistência, como salários e parcelas alimentares da idêntica natureza.
Essa conduta legiferante fere de morte e contradiz a noção mais básica que se pode ter em relação à dignidade de qualquer indivíduo , devidamente assentada em compromissos das nações democráticas com os Direitos Humanos, além de desestruturar a própria higidez do contrato social em que se assenta o convite à sociedade brasileira para um convívio igualitário e pacífico, já que cumpre à lei o papel importante de não desacreditar o projeto político e democrático de uma nação, consubstanciado em sua Carta Maior.
A esse propósito, a Constituição Federal, que comanda e inspira a ordem jurídica, é clara ao apontar em diversas de suas passagens a incontroversa prevalência do valor social do trabalho, sem deixar de valorizar a livre iniciativa. Veja-se:
Art. 1º A REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, CONSTITUI-SE em Estado Democrático de Direito E TEM COMO FUNDAMENTOS: (...)II - A CIDADANIA; III - A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA; IV - OS VALORES SOCIAIS DO TRABALHO E DA LIVRE INICIATIVA; (..)” Art. 3º CONSTITUEM OBJETIVOS FUNDAMENTAIS da República Federativa do Brasil: I - construir uma sociedade livre, JUSTA E SOLIDÁRIA; (..)III - ERRADICAR A POBREZA e a marginalização e REDUZIR AS DESIGUALDADES SOCIAIS e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e QUAISQUER OUTRAS FORMAS DE DISCRIMINAÇÃO”.
Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I - relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa, nos termos de lei complementar, que preverá indenização compensatória, dentre outros direitos; (..) X - proteção do salário na forma da lei, constituindo crime sua retenção dolosa;
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar A TODOS EXISTÊNCIA DIGNA, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (..) VII - REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS E SOCIAIS; VIII - BUSCA DO PLENO EMPREGO;(..)”
Como se vê, o pacto político nacional que renovou os compromissos da República Federativa do Brasil está principalmente assentado nas ideias de cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho e livre iniciativa; pluralismo político, defesa de uma sociedade livre, justa e solidária; erradicação da pobreza e da marginalização; bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, com eliminação de todas as formas de preconceito e discriminação.
Nesse sentido, ou seja, nas situações em que o Estado acaba contrariando essas premissas em algum de seus atos legislativos, como no caso da Lei 8.666 (art.71), a advertência de BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS (“Se Deus Fosse um Ativista dos Direitos Humanos”) merece ser lida com atenção, por ser apropriada. Diz ele:
“ O contrato social, QUE FOI CONCEBIDO COMO RAIZ FUNDACIONAL da modernidade ocidental , está a transformar-se [apenas] numa opção entre muitas outras. Assim deve ser lido o movimento neoliberal de recuo em relação ao contrato social e em direção ao contratualismo individualista e possessivo”.
E prossegue:
“Grupos sociais cada vez mais vastos são expulsos do contrato social (..) ou que a ele sequer têm acesso tornam-se populações descartáveis. Sem direitos mínimos de cidadania são, de fato, LANÇADOS NUM NOVO ESTADO DE NATUREZA, A QUE CHAMO FASCISMO SOCIAL”.
E conclui nesse ponto:
“No caso da globalização neoliberal (..) a erosão do contrato social como raiz torna possível o uso instrumental de todos os princípios que dele decorrem, nomeadamente o primado do direito, da democracia e dos direitos humanos. Os sintomas dessa instrumentalização são múltiplos [entre elas] : (..) níveis extremos de desigualdade social, à luz dos quais a igualdade formal perante a lei se transforma numa piada cruel; erosão dos direitos sociais e econômicos e a emergência de uma sociedade incivil ou do fascismo social que a acompanha; [além de] criminalizar o protesto social e erodir os direitos civis e políticos ao ponto de a cidadania se tornar indistinguível da sujeição”.
Sob essa ótica, o descompromisso da Lei 8.666/93 com a dignidade humana e com o pacto político constitucional tem realmente o efeito de excluir um grande número de trabalhadores do contrato social firmado em 1988, até mesmo tornando muitos deles descartáveis, sem direitos mínimos de cidadania, lançados, à própria sorte, em um novo – e mais cruel-, estado de natureza.
Em consequência, a irresponsabilidade do Estado, moldada pela questionada disciplina legal, aponta para a violação de direitos humanos desses trabalhadores, no que diz respeito à desproteção pelo pagamento de dívidas trabalhistas decorrentes de terceirização na relação triangular entre prestadores e tomadores estatais de serviços.
E é induvidoso que seja assim, inclusive à luz do que preceitua o art.23º da Declaração Universal de Direitos Humanos:
“ 1.Toda a pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do trabalho, a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego. 2. Todos têm direito, sem discriminação alguma, a salário igual por trabalho igual. 3.Quem trabalha tem direito a uma remuneração equitativa e satisfatória, que lhe permita e à sua família uma existência conforme com a dignidade humana, e completada, se possível, por todos os outros meios de proteção social”.
O direito à uma remuneração satisfatória que permita a subsistência dos trabalhador e de sua família “conforme a dignidade humana”, inclusive por todos os outros meios de proteção social, notadamente de ser ressarcido por ação do Estado quando seus direitos básicos são violados, não pode ser obstruído, muito menos por lei e menos ainda sem justificativa plausível e racional. Afinal, como pondera KONRAD HESSE (ELEMENTOS DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA – ED. SERGIO ANTONIO FABRIS):
“A limitação de direitos fundamentais deve (..) ser adequada para produzir a proteção do bem jurídico, por cujo motivo ela é efetuada. Ela deve ser necessária para isso, o que não é o caso (..) . Ela deve, finalmente, ser proporcional em sentido restrito, isto é, guardar relação adequada com o peso e o significado do direito fundamental.”
A norma do § 1º do art. 71 nem protege adequadamente o bem jurídico trabalho ou o interesse público, nem cria mecanismos proporcionais e hipóteses de relativizar direito fundamental que, de regra, deve preservar. Pura e simplesmente radicaliza a solução negativa para os trabalhadores e abre os cofres do Tesouro para devedor previdenciário na mesma relação.
Em sendo assim, sabendo-se de antemão, pela situação fática descrita, que o empregador direto ou quem o contrata não consegue promover os acertos rescisórios e demais pendências com os trabalhadores, que são levados para caminhos de execuções tormentosas perante a Justiça, a solução legal (§1 do art.71) significa jogar os trabalhadores ao inquestionável desamparo, em clara violação ao art.23 da Declaração Universal de Direitos Humanos, já citado.
DANIEL SARMENTO (Direitos Fundamentais e Relações Privadas. 2ª Edição), sobre a questão dos direitos socias na perspectiva dos direitos humanos acentua:
“As Constituições do México (1917) e de Weimar (1919) trazem em seu bojo novos direitos que demandam uma contundente ação estatal para sua implementação concreta, a rigor destinados a trazer consideráveis melhorias nas condições materiais de vida da população em geral, notadamente da classe trabalhadora. Fala-se em direito à saúde, à moradia, à alimentação, à educação, à previdência etc. Surge um novíssimo ramo do Direito, voltado a compensar, no plano jurídico, o natural desequilíbrio travado, no plano fático, entre o capital e o trabalho. O Direito do Trabalho, assim, emerge como um valioso instrumental vocacionado a agregar valores éticos ao capitalismo, humanizando, dessa forma, as até então tormentosas relações jus laborais. No cenário jurídico em geral, granjeia destaque a gestação de normas de ordem pública destinadas a limitar a autonomia de vontade das partes em prol dos interesses da coletividade.”
Não de outro modo analisa THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI ( PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO PÚBLICO. 2ª Ed) ao dizer que:
“o direito ao trabalho, à subsistência, ao teto, constituem reivindicações admitidas por todas as correntes políticas, diante das exigências reiteradamente feitas pelas classes menos favorecidas no sentido de um maior nivelamento das condições econômicas, ou, pelo menos, uma disciplina pelo Estado das atividades privadas, a fim de evitar a supremacia demasiadamente absorvente dos interesses economicamente mais fortes”.
Para AMARTYA SEN, na obra intitulada (A IDEIA DE JUSTIÇA), no tópico “Direitos Humanos e imperativos globais”:
As proclamações de direitos humanos (..) são declarações éticas realmente fortes sobre o que deve ser feito. Elas exigem que se reconheçam determinados imperativos e indicam que é preciso fazer alguma coisa para concretizar essas liberdades reconhecidas e identificadas por meio desses direitos”.
De forma induvidosa, portanto, é preciso pensar a efetividade da superação ou minimização das brutais desigualdades como dever Estado e, nesse sentido, entender que a inclusão do art.71 e seus parágrafos na ordem jurídica afeta direitos humanos de milhares e milhares de brasileiros, ferindo também o pacto republicano consagrado em 1988.
É urgente, pois, a necessidade de enfrentar essa questão, inclusive no âmbito legislativo, para excluir do ordenamento jurídico norma incoerente com os expressos compromissos da República Federativa do Brasil, assim como para eliminar a esdrúxula contradição que é obrigar o poder público a pagar dívidas previdenciárias de empresas muitas delas falidas, no mesmo instante em que desamparam aqueles que honestamente lhes prestaram serviços.
E, finalmente, que haja reflexão sobre o sentido, finalidade e o papel das instituições na vida real dos brasileiros, para considerar a importância e a gravidade de decisões políticas que podem afetar a vida de milhares de trabalhadores.