A última transgressão de Joaquin
Por Wilson Ramos Filho (*)
Há um ano, prefaciando sua obra ainda inédita, na qual metaforicamente percorre seus caminhos interiores ao ensejo de relatar viagem em moto pela península ibérica, pude observar que aquelas “rutas interiores” não eram mais apenas dele. As rutas, assim como os poemas, não pertenciam mais ao autor, mas a quem delas necessita para seguir viajando.
Naquela obra, o autor se perguntava “a quem pertence essa aranha esquizofrênica a que denominamos memória”. Em resposta lhe disse que, nós, “lendários” por havermos cumprido os 50 anos, partícipes da geração que contemplou inúmeros movimentos culturais sem sequer roçá-los, convivemos com nossos demônios, mas nem todos com a sua coragem para enfrentá-los.
Joaquin sempre manteve coerência com aquele jovem professor de filosofia que, na Ilha do Mel, há catorze anos propunha a polêmica sobre a possibilidade de haver amor sem sexo para, ao final, fazer ver aos seus interlocutores que a boa resposta depende, sempre, de uma de postura prévia frente aos fatos, do que entendemos por amor. Naquele livro Joaquin, em testemunho de sua maturidade filosófica, reafirmava que antes de tudo há a tomada de posição frente à vida como condição de escolha da maneira como queremos seguir, pois tudo depende da atitude com que afrontamos a viagem.
Escapando das armadilhas perigosas da mediocridade, nosso querido amigo sempre carregou consigo a inquietante contradição de elogiar a lentitude (que não pode e não deve ser traduzida como lentidão ou como lerdeza) sem nunca deixar de viajar (mover-se, avançar, seguir em frente, ou, como no curioso idioma andaluz, sempre tirando palante, corruptela da expressão castelhana segundo a qual sempre “hay que tirar hacia adelante”.
Hoje, na presença de seus familiares e de seus amigos mais próximos, Joaquin começou sua última viagem, pelos caminhos interiores de sua Andaluzia. Em undécima transgressão à legalidade, suas cinzas foram espargidas ao vento para deitarem nas calmas águas do rio Guadalquivir que, unindo Triana e Sevilla, serpenteia por plantações de oliva até desaguar, perto de San Lúcar de Barrameda, no tantas vezes transposto oceano Atlântico.
Para Joaquin, este oceano não poderia ser visto como aquele que separa Europa e África da iberoamérica (irônico, negava-se a utilizar a expressão “América latina” ao argumento de que nela “nadie habla latin”), e sim, como aquele que une povos e coletivos em busca de reconhecimento de suas próprias culturas e de suas próprias concepções de direitos humanos.
Lentamente, como sempre preferia, suas cinzas deslizarão pelos mares a caminho de sua segunda pátria, naquela onde morreu e renasceu há exatos dez anos, quando de sua primeira cirurgia cardíaca.
Assim como vida e morte não são antagonismos, mas companheiros de viagem, desde então seus problemas cardíacos receberam a incômoda companhia da leucemia e, nos últimos dias, de complicações hepáticas e pulmonares. Lutou até o fim, como um bravo, como um canibal que, comendo a si mesmo, busca forças para reagir.
Para Joaquin nunca houve caminhos fáceis. Algumas vezes por escolha; outras vezes, involuntariamente. Criança enferma desde sempre, adolescente desengonçado e feio, teve a coragem de afrontar a vida, sem moderação e sem preconceitos. O legado que nos deixa nos permite compreender que a dor e o prazer de seguir viajando deve atiçar nossos demônios internos para que resistamos à tentação de escolher os caminhos mais fáceis. E menos interessantes; menos excitantes. Com Joaquin aprendemos a preferir aqueles caminhos que nos permitam desfrutar da paisagem, que não nos é externa, eis que dela fazemos parte, integrando os contextos em que, conscientemente ou não, nos metemos. E aprendemos também que os caminhos difíceis que a vida nos impõe, do mesmo modo, devem ser desfrutados, não com o estoicismo estúpido das pregações religiosas, mas como fatos objetivos contra os quais só os tolos se opõem.
Agora viaja tranqüilo, pela rutas interiores das águas, cinzas que se espalham e se mesclam nas impurezas oceânicas, impregnando-as, assim como suas idéias, sua teoria impura dos direitos humanos, restarão impregnadas em cada um daqueles que a sorte permitiu desfrutar de sua fraterna, curta e intensa vida. Como disse seu irmão Adolfo minutos antes de, violando a lei, tingir de cinza as luminosas águas do Guadalquivir, “Joaquin no parte; queda”. Alguém duvida?
Wilson Ramos Filho, 4 de outubro, 2009.
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(*) Wilson Ramos Filho é doutor em direito (UFPR). Professor no mestrado das Faculdades Integradas do Brasil e na UFPR (graduação, mestrado e doutorado), encontra-se licenciado para fins de pós-doutoramento em Paris.