Arnaldo Boson Paes (*)
“O controle crescente da justiça sobre a vida coletiva é um dos maiores fatos políticos. Nada mais escapa ao controle do juiz. As últimas décadas viram o contencioso explodir e as jurisdições crescerem e se multiplicarem, diversificando e afirmando, cada dia um pouco mais, sua autoridade. Os juízes são chamados a se manifestar em um número de setores da vida social cada dia mais extenso”. Com essas palavras, o juiz francês Antoine Garapon, em Le gardien des promesses, aborda a judicialização da política e seu impacto nas democracias contemporâneas.
Esse fenômeno indica que questões de grande repercussão política passaram a ser decididas pelos juízes e tribunais, ensejando necessariamente a revisão do princípio da separação dos poderes, com o consequente deslocamento do poder político do Legislativo e do Executivo para o Judiciário. De fato, antes periférico, passivo, com a tarefa de dizer o direito, o Poder Judiciário tem assumido novos papéis, tornando-se o centro do debate de múltiplas e diversificadas insatisfações e reivindicações dos mais amplos e variados setores da sociedade.
Matérias que antes eram de responsabilidade de outros Poderes, passaram à arena do Poder Judiciário. Com isso as decisões judiciais ganharam as manchetes dos jornais, ocupando os juízes e tribunais espaço central na agenda pública, tornando-os mais presentes e visíveis na sociedade e na mídia. Entre nós, dentre tantas matérias, destacam-se questões envolvendo pesquisas com células-tronco, demarcação de terras indígenas, uso de algemas, fidelidade partidária, cláusula de barreira, número de vereadores, cassação de mandatos eletivos, realização de concurso público, greve de servidores e fornecimento de medicamentos.
O novo perfil do Judiciário decorre de múltiplos fatores, como a redemocratização do país, a existência de uma constituição analítica, a previsão de modelo amplo de controle de constitucionalidade das leis e a conscientização da população sobre seus direitos. Além desses fatores, pesa a crescente crise de representatividade, legitimidade e funcionalidade das instituições políticas. As assembléias legislativas e o Congresso Nacional (que ora atravessa uma crise moral sem precedentes) têm sérias limitações de atenderem a multiplicidade de demandas da sociedade e de realizar os princípios e valores constitucionais.
Esses fatos geraram a explosão quantitativa de litigiosidade, gerando vertiginosa ampliação do número de processos e da quantidade de direitos discutidos. Em 2008, entre ações novas e pendentes, tramitaram no Poder Judiciário 72,1 milhões de processos. Gerou também a explosão qualitativa de litigiosidade, pois a função jurisdicional não se limita mais a resolver conflitos de interesses. Envolve agora a resolução de conflitos de valores. E ao se defrontar com oposição entre valores, o magistrado faz escolhas, assume posições, expressa convicções, através de juízos de ponderação, sem a pretensão de implantação de um governo de juízes.
É certo que o entusiasmo exagerado pelo Judiciário pode conduzir ao impasse, haja vista que, transformando-se em estuário de todas as esperanças da sociedade, poderá frustrá-las ante a falta de meios materiais e instrumentais para concretizá-las. E por isso não lhe cabe resolver todos os problemas, definir o bem político ou assumir o papel da consciência moral pública. Deve, sim, assumir de forma plena e efetiva o papel que lhe cabe no desenho constitucional das democracias contemporâneas, cumprindo a função de aceleração da transformação social e de participação de forma ampla e intensa na concretização dos direitos fundamentais e de efetivação dos princípios democráticos.
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(*) Desembargador (TRT/PI), Mestre (UFC) e Doutorando em Direito (UCLM)