*Olga Vishnevsky Fortes
Sabemos da dificuldade de muitos juristas de outros ramos do Direito em entender como funcionam o Direito e o Processo do Trabalho, tendo em vista a possibilidade de aplicação subsidiária do direito comum. As dúvidas mostram-se mais exacerbadas quanto às repercussões de tal aplicação subsidiária na delimitação da competência e no reconhecimento da prescrição. Mas a dificuldade não é instransponível, desde que entendamos o Direito como um sistema único.
O ilícito está inserido no sistema como – perdoem-nos a paixão incontida pelo esporte -, as faltas estão inseridas no jogo de futebol, e “não é a negação, mas o pressuposto do Direito”[1]. Coibi-lo é inseri-lo no sistema como forma originária da sanção. O ilícito, consubstanciado em um ato comissivo ou omissivo sancionável, é, pois, sempre ilícito, embora a sanção possa dar-se em um ou mais âmbitos do Direito. Daí porque os ilícitos civis, penais ou administrativos que têm repercussão trabalhista passam a ser, embora descritos originalmente por seus específicos diplomas, ilícitos trabalhistas.
Exemplo disso são as simulações (CC, art. 162) e os furtos (CP, art. 155), havidos durante a relação de trabalho, que passam a denotar ilícitos trabalhistas como a nulidade do contrato simulado (com declaração de vínculo de emprego) e a justa causa (por improbidade). A repercussão trabalhista do ilícito – que o transforma em ilícito trabalhista –dá-se quando tal ilícito é praticado em razão da relação de trabalho, dela sendo originário.
A propósito, a partir da EC 45 a competência da Justiça do Trabalho passou a abranger todas as relações de trabalho, e não só, como antes, as de emprego e as de trabalho especificamente previstas na lei.
A competência constitucional trabalhista (material) é qualificada pela relação jurídica a qual equivale, no processo, à causa de pedir remota (fato constitutivo), já que atine à relação causal e portanto originária da causa de pedir próxima (fundamentos jurídicos) e do pedido (bem da vida buscado).
Não é demais mencionar que após a EC 45 tivemos a oportunidade de, em sentença, conceituar a novel competência como aquela que se baseia na relação originária dos contratos de prestação de serviços “intuitu personae” em relação ao prestador, excluídas as matérias atinentes ao direito do consumidor quanto aos fatos ou vícios do produto ou serviço, salvo quando julgadas como questões incidentais[2].
Pois bem. No nosso entender, se o ilícito é trabalhista, porque inserido na relação de trabalho de que fala o art. 114 da CF, parece claro que, ainda que a fonte originária ou fundamento legal seja de outro âmbito do Direito, a prescrição aplicável seja a trabalhista prevista no art. 7o, XXIX da Constituição Federal.
A questão da competência material está efetivamente atrelada à questão prescricional : a delimitação da primeira e a pretensão objeto da segunda, atinem à causa de pedir, embora os institutos pertençam a ramos diferenciados – mas interdependentes – do Direito, quais sejam, o direito processual e o direito material, respectivamente. Como bem destacou o Desembargador Sergio Pinto Martins ao discorrer sobre o tema: “A matéria originária da relação das partes é a que implica a qualificação da prescrição”[3].
Assim é que, ao contrário de Doutos entendimentos em sentido oposto, a Justiça do Trabalho sempre foi competente para apreciar o pedido de dano moral fundado em acidente do trabalho, sendo também aplicável, ainda que nas relações instauradas antes da EC 45, a prescrição trabalhista, tendo em vista que as ações deste jaez têm como causa de pedir remota a relação de trabalho, como causa de pedir próxima o acidente ou doença com nexo de causalidade (ilícito trabalhista), como mero fundamento legal o art. 186 do CC e como pedido a indenização[4]. Entendemos que o fundamento legal, que sequer é requisito da inicial trabalhista [5], não pode ter importância tal que tenha o condão de verter a prescrição aplicável nas pretensões relativas às relações de trabalho.
Não é demais destacar que o art. 109, I da Constituição Federal, prevê, por exclusão, a competência do Juízo Comum Estadual para as causas relativas a acidentes de trabalho porque tal atribuição de competência refere-se aos créditos previdenciários – daí a expressa menção às entidades autárquicas -, cujas ações são ofertadas em face do INSS na Justiça Comum, com o intuito de privilegiar o foro dos segurados ou beneficiários. Tal assertiva se infere da hialina redação do parágrafo 3o do citado art. 109 da Constituição Federal
Isto se dá porque a Justiça Federal não alcançava, territorialmente, todas as comarcas efetivamente alcançadas pela Justiça Estadual. A Constituição delegou a competência à Justiça Comum para possibilitar a proximidade geográfica do segurado com a Justiça que pudesse melhor ampará-lo nas questões previdenciárias. Este é, inclusive, o teor das Súmulas 15 do C. STJ e 235 e 501 do C. TST.
Mas e se a doença com nexo de causalidade com o trabalho aparecer somente depois do transcurso da prescrição bienal trabalhista? Ora, a regra geral não pode ser abalada pelas exceções, é cediço. Ademais, pudéssemos levar em conta as exceções para a elaboração e interpretação das leis, nenhuma delas sobreviveria a todas as hipóteses dos efeitos da lesão havidas após decurso do prazo prescricional. Nem a lei civil.
Aplicar a tese da qualificação trabalhista do ilícito também resolve a questão da abrangência da quitação havida nos acordos judiciais. Tais quitações, no nosso entender, também albergam eventuais pretensões de indenização por danos morais, ainda que não especificamente mencionadas no termo, sendo de somenos importância que o ilícito (dano moral) esteja previsto na lei comum, uma vez que, inserido na relação de trabalho – até pela abrangência constitucional da novel competência -, passa a ser ilícito trabalhista, acobertado pela quitação ampla advinda da conciliação judicial. Ou isso, ou a total quitação do extinto contrato de trabalho pouca validade jurídica haveria de ter, ainda que chancelada pelo Judiciário.
*OLGA VISHNEVSKY FORTES é Juíza do Trabalho do TRT da 2a Região e especialista em processo civil.
[1] HANS KELSEN in “Teoria Pura do Direito”, Ed. Martins Fontes, São Paulo, 1998, p. 124.
[2] Autos 393-06, 63a Vara, publicada na RevTRim 2007 do TRT da 2a Região
[3] In “Prescrição Trabalhista após a EC 45”, Revista SYNTESIS 45/07, p. 23.
[4] Tal entendimento foi esposado em voto proferido no proc 01586200503302002.
[5] Vide art. 840 da CLT.