Em nome dos juizes do trabalho, agradeço o convite do Senhor Senador Ramez Tebet dirigido à Anamatra, Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho, para participar de importante discussão sobre a nova lei de falências, de recuperação judicial e extrajudicial das empresas, na Comissão de Assuntos econômicos do Senado Federal. A minha rápida intervenção estará restrita aos reflexos da norma jurídica nas relações entre o capital e o trabalho. Louvável a atitude do Congresso Nacional em buscar meios outros que possam recuperar as empresas com dificuldades financeiras, ao invés de simplesmente fixar normas para o encerramento das atividades. O saneamento se dará através da recuperação judicial ou extrajudicial, que substituirá a conhecida concordata.
Crédito Trabalhista Privilegiado - Restrição Quantitativa.
Nenhuma alteração será justa se transferir para o empregado a responsabilidade pelos eventuais problemas de ordem econômica e financeira enfrentados pelas empresas, considerando que foram discutidas propostas de limitação do valor do crédito trabalhista para fins de preferência, seja na falência, seja na recuperação judicial ou extrajudicial. A legislação vigente, no campo do Direito do Trabalho (artigo 449, parágrafo 1º, da CLT) e também no Direito Tributário (artigo 186, do CTN), estabelece que os salários devidos ao empregado e a totalidade das indenizações a que tiver direito são créditos privilegiados no processo de falência, precedendo a quaisquer outros, inclusive os de natureza tributária e os de cunho fiscal em sentido mais amplo.
E assim o é porque a prestação possui natureza alimentar, sendo essencial para a subsistência do trabalhador. Ademais, os riscos do negócio pertencem ao empregador, não participando o empregado sequer da saudável repartição de lucros. Mas essa não é apenas a realidade brasileira, eis que a Convenção n.º 173 da OIT, de 1992, que superou a de N.º 95, protege os créditos trabalhistas em todos os casos de instauração de procedimento relativo aos ativos de um empregador, com vistas ao pagamento coletivo de seus credores.
Ainda no campo internacional e no plano do direito comparado, o privilégio do crédito trabalhista está consagrado nas legislações da Espanha, França e Itália. É verdade que nos dois primeiros países há limite do caráter preferencial do crédito trabalhista até “o mínimo social aceitável”.O restante, no entanto, está assegurado através do Fundo de Garantia Salarial (FOGASA), instituído pelo Ministério do Trabalho e Assuntos Sociais.
No Brasil a classe trabalhadora tem a mão-de-obra remunerada nos patamares mais baixos do mundo e por essa razão e tantas outras, não é socialmente recomendável deixa-la sem qualquer proteção para receber os seus créditos trabalhistas no momento da falência do empregador, dando lugar a credores que não possuem as mesmas necessidades.
Ainda que estejamos vivendo época de extrema desvalorização da força-de-trabalho em função dos novos modos de produção e do crescimento da ideologia neoliberal, responsáveis pela precarização das condições de trabalho, não deve ser usurpado do trabalhador o direito de receber as parcelas reconhecidas pela Justiça do Trabalho, seja através de preferência dada a outro credor, seja por meio da limitação quantitativa defendida pelos potenciais credores do empresário endividado.
Os juizes do trabalho constatam que um dos grandes entraves do processo consiste na sua falta de efetividade, diante do número elevado de possibilidades do devedor postergar o cumprimento da decisão judicial, também ocorrendo a hipótese do empregado “ganhar mas não levar”. São os desvios na transferência do patrimônio e a utilização de outros meios nada dignos pelos “espertos insolventes”. O destino de muitos processos em fase de execução é o arquivo provisório da Justiça do Trabalho, porque desaparece o devedor na companhia de seus bens.
Tenho certeza que o Congresso Nacional não contribuirá para o aumento de estatística tão dramática e anti-social, rejeitando todas as iniciativas que visem limitar o caráter privilegiado dos créditos trabalhistas, inclusive àqueles oriundos da indenização por acidente de trabalho e do FGTS, pois todos inseridos no contexto da relação entre capital e trabalho.
Nem mesmo o argumento de que a medida pretende atingir as eventuais simulações de diretores-empregados em detrimento dos reais credores guarda consistência jurídica ou coerência com o sentido de justiça, sob pena da exceção suplantar a regra e penalizar a imensa maioria de trabalhadores honestos empregados nas empresas que sofrem processo de falência e de recuperação judicial. Aliás, no particular, qualquer defeito do ato jurídico pode ser atacado com base na legislação vigente. Deve ser registrado que o artigo 25 do projeto ora em discussão prevê a exclusão do crédito nos casos de descoberta de falsidade, dolo, simulação, fraude ou erro.
Privilégio no Pedido de Restituição em Detrimento do Crédito Trabalhista - Sistema Financeiro Agraciado.
Apesar da regra geral de classificação estabelecer preferência para os créditos trabalhistas, na recuperação judicial (artigo 10) e na falência (artigo 11), o privilégio é anulado logo em seguida pelo pedido de restituição na falência (artigo 26), quando for devida coisa em virtude direito real ou de contrato, hipótese em que o pagamento será feito com preferência sobre todos os credores. Ora, tal situação pode se verificar em qualquer contrato de empréstimo em que alguma garantia real seja oferecida pelo devedor à instituição financeira ou quando assim estabelecer o pacto negocial.
É a declaratória de invalidade da regra geral pela especial dada aos credores que podem fazer uso do pedido de restituição, não estando incluído neste rol os empregados.
Idêntico tratamento é dispensado aos créditos originários de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (artigo 28).
Devo assinalar que a regra em vigor (artigo 76, do decreto-lei Nº 7.661/1945), não obstante contemplar o pedido de restituição de coisa arrecadada em poder do falido quando seja devida em virtude de direito real ou de contrato, não autoriza a sua transformação em pecúnia, nem lhe dar qualidade de crédito super-privilegiado, como faz o texto aprovado pela Câmara (parágrafo único, do artigo 26).
Na mesma linha antes de eliminação do privilégio do crédito trabalhista, encontra-se a norma prevista no artigo 48, do projeto ora em debate. Cabe assinalar que dentro de tal panorama, todos os credores com alguma garantia real têm o direito de receber a coisa oferecida ou o valor equivalente antes dos empregados, na recuperação judicial, constituindo-se os primeiros, na verdade, nos super-credores.
Precarização da Situação do Empregado na Recuperação Judicial.
O processo de recuperação judicial substitui a concordata para dar maior fôlego aos empreendimentos empresariais com dificuldades financeiras e econômicas, realizando-o de maneira flexível quanto aos direitos trabalhistas dos empregados, que ingressam nas fileiras das parcelas a serem percebidas de maneira escalonada e com redução por meios variados. Sem nenhuma dúvida, dentro do espírito que move o projeto, o trabalho terá que dar a sua contribuição para tentar soerguer o capital (artigo 50). Piora, pois, o status quo do credor trabalhista, considerando que na concordata a quitação integral e tempestiva das parcelas devidas aos empregados é preservada.
Não Atração do Juízo Universal - Competência da Justiça do Trabalho.
É aconselhável que a execução das sentenças trabalhistas permaneça na Justiça do Trabalho, ainda que em caso de falência da empresa, não ingressando tal crédito na seara do juízo universal, na forma do pagamento do crédito tributário. Este, apesar de estar incluído após o trabalhista, na prática, ganha maior importância ao não se submeter ao Juízo Falimentar. O projeto resolve a controvérsia jurisprudencial sobre o foro competente para prosseguir nos atos de execução da dívida trabalhista, mas o faz de maneira conservadora, ao remeter a matéria para o juízo universal (parágrafo 3º, do artigo 7º).
Tratamento Especial Destinado ao Sistema Financeiro.
A lógica do projeto não melhora a situação do trabalhador. Ao contrário, resolve questões controvertidas nos tribunais em seu desfavor e amplia a proteção aos credores bancários. O crédito tributário apesar de manter, em tese, a segunda posição na ordem de preferência, concorre em condições de um para um com os créditos do sistema financeiro, com evidentes prejuízos para os cofres públicos (artigo 11, inciso II).
O artigo 52, inciso VI, do projeto, estabelece que devem ser suspensas as ações judiciais em curso contra as empresas em processo de recuperação judicial, salvo quanto às demandas que envolvam os créditos por penhor, por valores imobiliários e aplicações financeiras.
A norma do artigo 123, parágrafo único, exclui a aplicação de juros contra a massa falida, desde que a dívida não seja originária de debêntures ou de crédito com garantia real. Há necessidade de suprimir o parágrafo VI do artigo 50, que dispõe sobre a possibilidade de redução salarial e de jornada de trabalho, eis que a matéria está regulada pela Constituição Federal. Tratá-la aqui seria incentivar a prática da diminuição remuneratória.
Também é imprescindível alterar o artigo 16, do projeto, que fixa o prazo de 15 dias para a habilitação do crédito, a contar da data da recuperação judicial, sob pena de perda da ordem de preferência.
Regime da Autogestão
Para valorizar de maneira efetiva o crédito de natureza trabalhista, mostra-se indispensável o estabelecimento do regime de autogestão. Através do qual os próprios trabalhadores, credores preferenciais, assumiriam a gestão dos negócios, com o acompanhamento do Poder Judiciário.
Propostas
Em resumo, Senhor Presidente, Senhor Relator, Senhores Senadores, a Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho - Anamatra, entidade representativa de mais de três mil juizes, propõe o seguinte:
1- A manutenção do caráter privilegiado do crédito trabalhista, inclusive o decorrente de acidente de trabalho e o do FGTS, sem qualquer limitação quantitativa, para que esta fração não passe a ter natureza quirografária, mediante redação própria do artigo 11, inciso 1 (da classificação dos créditos), do artigo 49 e seguintes (meios de recuperação judicial da empresa extrajudicial) e dos artigos que dispõem sobre as microempresas e empresas de pequeno porte. Trata-se, na verdade, de respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana. Segundo Fábio Konder Comparato, citado pelo Juiz Guilherme Feliciano, "as ordens jurídicas estão proibidas de retroceder em matéria de direitos humanos";
2- A supressão do parágrafo único, do artigo 26 do substitutivo, que trata do pedido de restituição, para não permitir a transformação da coisa em pecúnia e com caráter de crédito super-privilegiado, o mesmo devendo ocorrer quanto ao adiantamento do contrato de câmbio para exportação( artigo 28 do substitutivo).
3- Alteração do artigo 45 e seguintes do projeto, retirando os créditos trabalhistas do rol daqueles que serão objeto de negociação no processo de recuperação judicial, a exemplo do que ocorre atualmente no processo de concordata, sob pena de restar precarizada a situação do empregado.
4- A exclusão dos créditos trabalhistas do juízo universal, na falência ou no processo de recuperação judicial, retirando-os da própria habilitação, para melhor assegurar a respectiva satisfação perante o judiciário trabalhista, bem como para permitir a excussão de bens (alteração do artigo 7ª,parágrafo 3º)
5-Alteração dos artigos 11, inciso 2, 52, inciso 6, 123, parágrafo único, 50, inciso 6 e 16.
6- Instituição do regime de autogestão pelos próprios trabalhadores.