Ninguém ignora que o processo de reforma da estrutura do Poder Judiciário nos países da América Latina, entre eles o Brasil, decorre de imposição dos organismos financeiros internacionais a estas soberanias endividadas.
Prova eloqüente disso é o tantas vezes mencionado Documento Técnico n.º 319, do Banco Mundial, que prescreve uma espécie de receita para a modificação, calcada em três premissas básicas: controle externo do Poder Judiciário, adoção de mecanismos alternativos para resolução de conflitos e verticalização pela prevalência da jurisprudência dos órgãos de cúpula. O objetivo é evidente: reduzir a órbita de ação do Poder Judiciário, especialmente da base da magistratura, assegurando-se a previsibilidade jurídica tão cara ao capital especulativo internacional.
Em países como a Argentina, a Bolívia e a Venezuela, tais propósitos foram plenamente alcançados, chegando-se ao extremo de se atribuir ao Ministério da Justiça o controle da magistratura.
No Brasil, os objetivos foram alcançados em parte. Não contava o Poder Político com a resistência determinada de alguns segmentos da sociedade organizada, à frente as associações de magistrados. O controle externo do Poder Judiciário não foi implementado. O Conselho Nacional de Justiça, criado no âmbito da reforma, constitui órgão integrante do Poder, admitida a participação minoritária de representante da Ordem dos Advogados do Brasil. Há críticas quanto a sua ampla competência, que atentaria contra a autonomia dos Tribunais. Mas é preciso que se tenha em mente que o Conselho constitui a opção possível ao controle externo. Um aspecto positivo é o de ser composto por representantes de todos os graus de jurisdição e de todos os segmentos da magistratura. (e o de primeiro grau eleito).
Alguns mecanismos alternativos foram criados, nos últimos anos, mas não em sede constitucional. Refiro-me às Comissões de Conciliação Prévia, destinadas à composição de litígios trabalhistas e à Lei de Arbitragem. As duas providências atendem, em parte, às prescrições do Banco Mundial. Primeiro porque não tiveram o condão de quebrar o monopólio jurisdicional do Poder Judiciário. Segundo porque, embora sejam, hoje, instrumentos de fraude ao direito do trabalhador, com ajustes que já foram propostos ao Parlamento, inclusive pela Anamatra, poderão servir como instrumento importante de harmonização social.
Resultados mais significativos foram alcançados no propósito de verticalizar o Poder Judiciário. Aos poucos e sorrateiramente, o Poder Político promoveu alterações que atribuíram ao Supremo Tribunal Federal o balizamento jurisprudencial compulsório. A proposta da súmula vinculante, aprovada na Câmara dos Deputados e na CCJ do Senado Federal constitui, digamos, a “cereja do sorvete”. Com efeito, a Constituição de 1988 sofreu mudanças significativas, a partir de 1993, todas no sentido da verticalização. Com a Emenda n.º 3/93 foi acrescentado à competência do STF o julgamento de ação declaratória de constitucionalidade, com efeito vinculante. Foi aprovada também a argüição de descumprimento de preceito fundamental, que veio a ser regulamentada em dezembro de 1999, pela Lei n.º 9.882/99. Proposta de Emenda Constitucional para a introdução do incidente de constitucionalidade a ser argüido em casos de reconhecida relevância, tramita no Congresso Nacional. Recentemente, o STF decidiu que os julgamentos da Corte em Ação Direta de Inconstitucionalidade e Ação Declaratória de Constitucionalidade têm efeito vinculante.
A magistratura brasileira, há dez anos, vem trabalhando contra a súmula vinculante. Apresentou proposta alternativa, a chamada súmula impeditiva de recursos, mais racional e não ofensiva à independência do juiz. Até aqui, não logramos êxito, embora tenhamos reduzido, sobremodo, os efeitos maléficos do instituto (a responsabilização juiz que decidir contra a súmula). Na verdade, na concepção original, previa-se a responsabilização do magistrado que julgasse contra o teor da súmula. Tal aspecto foi eliminado. No mais, estamos esperançosos na aceitação, pelo Plenário do Senado, da idéia da súmula impeditiva de recursos.
Mas, admitindo-se a aprovação da súmula vinculante, será a mudança de mentalidade dos juízes que irá reduzir-lhe o alcance. Hoje, sem que haja, formalmente, a vinculação, não se pode negar que boa parte da magistratura segue, comodamente, a orientação das Cortes Superiores (mesmo não sumuladas). A consciência do papel transformador da ação da base da magistratura é que dará contornos definitivos à questão.
Mas se a reforma determinou alterações graves e indesejáveis, hão de ser reconhecidos os avanços alcançados na reforma. Tímidos, em algumas áreas. Expressivos, em outras. De caráter geral, merece relevo a vedação de nomeação de parentes de magistrados até o segundo grau civil.
Metade do Órgão Especial dos Tribunais será eleita diretamente pelo conjunto dos juízes vinculados à Corte, outra importante conquista, embora não tenhamos conseguido, por ora, a eleição direta para a presidência dos Tribunais.
Alteraram-se aspectos relativos à promoção por antiguidade, exigindo-se que a recusa do juiz mais antigo pelo Tribunal pressuponha o voto fundamentado de dois terços de seus membros, assegurada ampla defesa ao magistrado. Também se veda a promoção de juiz que retiver autos injustificadamente além do prazo legal. O juiz que incorrer nestas duas hipóteses terá instaurado contra si processo administrativo-disciplinar. Medidas acertadas. A uma, por assegurar ao magistrado o conhecimento das razões que levaram a sua rejeição. A duas, por garantir ao mesmo amplo direito de defesa. A três, para que não seja premiado o juiz desidioso. Por último, por se corrigir terrível paradoxo: hoje, o juiz rejeitado para o Tribunal permanece exercendo suas funções na primeira instância. Ora, se há fatores determinantes de sua inaptidão para a Corte, certamente os haverá para o primeiro grau de jurisdição. E tais aspectos deverão ser apreciados em processo disciplinar.
Cria-se a chamada quarentena para o ingresso no STF. Assim, não poderá ser nomeado que tiver exercido os cargos de Presidente ou Vice-presidente da República, Senador, Deputado Federal, Governador ou Vice-governador, Ministro de Estado, Procurador Geral da República, Advogado-Geral da União, Presidente da OAB. Nem os cônjuges ou parentes até o segundo grau de qualquer destas autoridades. Além disso, a aprovação pelo Senado passa a ser de três quintos de seus membros (para os Tribunais Superiores, deverá haver aprovação da maioria absoluta do Senado). Esta medida reduzirá consideravelmente o universo de escolha e, melhor, evitará o prêmio imediato por serviços prestados ao Chefe do Executivo.
No Superior Tribunal de Justiça, os desembargadores dos Tribunais de Justiça e dos Tribunais Regionais Federais (passam a se chamar desembargadores também) somente ingressarão se forem magistrados de carreira. Ou seja, aqueles que ingressaram no segundo grau pela via do quinto constitucional não poderão chegar ao STJ. Equipara-se o STJ ao TST, no particular, e se trata de boa medida. Para os Tribunais Regionais Federais, somente serão promovidos por merecimento os que estiverem no quinto superior da antiguidade. Corrige-se, assim, falha hoje verificada, que distingue os TRF dos TRT.
Se restringirmos a avaliação à Justiça do Trabalho, o resultado é ainda mais positivo. Logramos reverter quadro absolutamente adverso, eis que proposta, em certo momento, a nossa extinção e sairemos extremamente fortalecidos. São criados mais 10 cargos de Ministro do TST, singular possibilidade de oxigenação da Corte. Os Tribunais Regionais passarão a ter, no mínimo, 9 membros. A competência da Justiça do Trabalho foi, até agora, extraordinariamente ampliada: julgaremos os dissídios decorrentes de qualqu1er relação de trabalho, incluídos os trabalhadores autônomos e servidores públicos; as ações acidentárias; os crimes contra a organização do trabalho; as ações decorrentes da fiscalização do trabalho; aplicação e execução de multas pelo descumprimento da norma trabalhista; questões previdenciárias onde não houver Vara Federal; habeas corpus e habeas data; entre outros aspectos igualmente relevantes.
Vê-se, pois, que a PEC 29/00 não pode ser considerada a caixa de Pandora do Poder Judiciário brasileiro. Se alguns males vão decorrer do processo de alteração, avanços significativos poderão ser notados. E poderemos avançar, a partir do próximo ano, com alterações específicas, por exemplo, no que tange a eleição direta para a administração dos Tribunais e os critérios de escolha de magistrados a partir do segundo grau de jurisdição, incluída a revisão do instituto do quinto constitucional.
Considerados os aspectos positivos e negativos, não se vislumbra razão para a postergação da Reforma. Não se pode deixar para depois o desfecho de um processo que se iniciou há 10 anos.
Não se pode alegar que as matérias não estejam maduras para votação, ou que não foram suficientemente debatidas. Todos os pontos foram objeto de profundo debate e os que constituem matéria nova retornarão à apreciação da Câmara dos Deputados. O texto que vai à votação no Plenário do Senado é, portanto, o resultado democrático da vontade do Parlamento brasileiro.
Ainda que haja, no texto, aspectos que contrariam as expectativas da magistratura, especialmente a proposta de instituição da súmula vinculante – e os juízes do trabalho trabalharão para que seja rejeitada pelo Plenário do Senado, conscientes de que será um instrumento de injustificável limitação da ação da base da magistratura - não parece democrático que isso motive protestos pelo adiamento da Reforma.
Ninguém ignora que, adiada a Reforma do Judiciário, dificilmente será retomada a votação da PEC 29/00. O adiamento representará a inutilização de anos de trabalho, dos parlamentares e dos magistrados, que em nada se harmoniza com o interesse público.