A questão da competência para o julgamento de ação de indenização por danos materiais e morais decorrentes de acidente de trabalho ou doença profissional tem provocado acirrada polêmica entre os doutrinadores e tribunais pátrios. Trata-se de matéria controvertida, sendo certo que recentes julgados do Tribunal Superior do Trabalho têm decidido que esse tipo de causa seria da competência da Justiça do Trabalho (cf AIRR n. 78.8505, rel. Min. ANTÔNIO JOSÉ DE BARROS LEVENHAGEN, DJ de 25.10.2002; RR 755.758, rel. Juiz convocado HORÁCIO SENNA PIRES, DJ 25.10.02; RR 597.006, rel. Min. MARIA CRISTINA IRIGOYEN PEDUZZI, DJ 14.12.2001; entre muitos outros).
De forma divergente, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça orienta-se no sentido de que competência seria da Justiça Estadual, mesmo que o empregador seja empresa pública federal, autarquia ou a própria União (cf. súmula 15 e CC 30.911/SP, rel. Min. ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO; CC 22.709/SP, DJ de 15.3.99, rel. Min RUY ROSADO DE AGUIAR; CC nº 28204/MG, rel. Min. EDUARDO RIBEIRO, DJ de 29.02.2000; CC 22470/SC, rel. Min. SÁLVIO DE FIGUEIREDO, DJ de 15.3.99 e CC 31.410, rel. Min. CÉSAR ASFOR ROCHA, DJ de 21.10.2002).
Há também recentíssimo acórdão da Terceira Seção do TRF da 1a Região afirmando a competência da Justiça Federal para causa em que se postula indenização por danos morais e materiais decorrentes de doença profissional (LER), em razão de ser a empregadora empresa pública federal (EAC 1998.01.00.085337-3/DF, rel. Desembargador Federal FAGUNDES DE DEUS).
Por outro lado, em decisão singular publicada no DJ de 22.10.2001, o eminente Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, valendo-se da competência prevista no art. 544, `PAR``PAR` 3º e 4º, do CPC, deu provimento ao Agravo de Instrumento 349976/RJ e, desde logo, conheceu do recurso extraordinário e lhe deu provimento para declarar nulo o processo, a partir da sentença de primeiro grau, inclusive, afastando a competência da Justiça Estadual e assentando a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ação de indenização por ato ilícito visando ao pagamento pelo ex-empregador de verba salarial permanente, a título de reparação de doença pulmonar, resultante do trabalho. Para assim julgar, invocou precedente do Plenário do STF no Conflito de Jurisdição 6959-6/DF, do qual fora Relator, onde ficou decidido que "a determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil, mas sim, no caso, que a promessa de contratar, cujo alegado conteúdo é o fundamento do pedido, tenha sido feita em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho." Invocou, também, o Ministro PERTENCE os acórdãos da 1a Turma do STF no RE 149.740 e no RE 238.737, ambos de sua relatoria.
Verifiquei que, além da decisão no Agravo de Instrumento 349976/RJ, o Ministro PERTENCE deferiu liminares, nas Medidas Cautelares nas Petições 2651 e 2260, para determinar o processamento de recursos extraordinários, retidos na origem, nos quais se discute decisão interlocutória que deu pela competência da Justiça Estadual para processar e julgar ações ordinárias de indenização por danos decorrentes de acidentes do trabalho. Acentuou o Ministro que a regra do art. 542, `PAR` 3o, do CPC, deve ser interpretada cum grano salis, não se justificando que permaneça retido o recurso extraordinário, "sendo plausível a sustentação na espécie da competência da Justiça do Trabalho", pois "seria desastroso para as partes que - só quando decidida a causa nas instâncias ordinárias - se viesse a julgar o RE, com provável afirmação da incompetência da Justiça estadual." (cf. DJ de 9.4.2002, p. 49 e DJ de 28.6.2001, p. 4).
Mais recente, ainda, é, contudo, o acórdão da 1a Turma do Supremo Tribunal Federal, RE 349.160-BA, da lavra do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no qual Sua Excelência, manifestando entendimento oposto ao esposado nas decisões singulares acima referidas, decidiu que tais demandas são da competência da Justiça Estadual. Da ementa do citado acórdão, publicada no DJ de 14.3.2003, transcrevo a seguinte passagem:
"II. Competência: Justiça comum: ação de indenização fundada em acidente de trabalho, ainda quando movida contra o empregador.
1. É da jurisprudência do STF que, em geral, compete à Justiça do Trabalho conhecer de ação indenizatória por danos decorrentes da relação de emprego, não importando deva a controvérsia ser dirimida à luz do direito comum e não do Direito do Trabalho.
2. Da regra geral são de excluir-se, porém, por força do art. 109, I, da Constituição, as ações fundadas em acidente de trabalho, sejam as movidas contra a autarquia seguradora, sejam as propostas contra o empregador."
A questão em debate envolve a interpretação que se deve dar ao art. 109, I, da CF, o qual, estabelecendo a competência da Justiça Federal para as causas de que façam parte a União, suas empresas públicas e autarquias, faz ressalva expressa aos feitos relativos a acidente de trabalho e aos sujeitos à competência da Justiça do Trabalho.
Envolve também a interpretação do art. 114, da CF, segundo o qual "compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público (...) e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas".
Para entender o motivo de a competência para julgamento das causas relativas a acidentes do trabalho - neste conceito compreendida a doença profissional, em razão de se cuidar de infortúnio da mesma natureza, também decorrente do trabalho, e que dá ensejo aos mesmos direitos, conforme expressamente reconhecido pela legislação (Lei 5.367, de 14.9.67, art. 2o, Lei 6.367, de 19.10.76 e Lei 8.213/91, art. 20) - ter sido, desde os primórdios da República, atribuída a Justiça estadual, é muito útil a leitura dos votos dos Ministros ALIOMAR BALEEIRO, PRADO KELLY e ELOY DA ROCHA, no Conflito de Jurisdição 3.893/67, precedente da súmula 501 do STF, no qual foi declarada a inconstitucionalidade do art. 16, da Lei 5.316/67, que atribuía aos juízes federais a competência para julgar os dissídios decorrentes de acidente do trabalho.
Para não me estender em demasia, faço o resumo dos votos mencionados.
Antes da edição da Lei 5.316/67, o seguro por acidente do trabalho era responsabilidade do empregador, que poderia transferi-la para seguradoras, nelas realizando o seguro, ficando desonerado daquelas responsabilidades, ressalvado o direito regressivo das entidades seguradoras contra ele, na hipótese de infração, por sua parte, do contrato de seguro (Decreto-lei 7.036/44, art. 100).
A competência para julgamento das causas de acidente do trabalho era, em regra, a do Juiz estadual do local do acidente, mesmo que se tratasse de ação contra a União, dado que a Justiça Federal ordinária de primeira instância fora extinta pela Carta de 1937. A despeito da instituição da Justiça do Trabalho pela Constituição de 1934, tendo ela permanecido na Carta de 1937, a legislação sempre excluiu, na delimitação de sua competência, as questões referentes a acidentes do trabalho, declarando, expressamente, que elas continuariam sujeitas à Justiça ordinária (cf. Decreto 24.637/34, Decreto 6.596/40, CLT, art. 643, `PAR` 2o).
A tradição foi seguida pela Constituição de 1946. Explica o Ministro ELOY DA ROCHA que, segundo o projeto original da referida Constituição, a competência para julgar as causas acidentárias promovidas contra o empregador seria da Justiça do Trabalho, pois o art. 123, caput, do projeto estabelecia que "compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e as demais controvérsias oriundas de relações de trabalho regidas por legislação especial". Mas, em Plenário, foi aprovada emenda que acrescentou ao artigo o `PAR` 1o, segundo o qual "os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária".
Anota o Ministro ELOY DA ROCHA que, até então, "a discussão desenvolveu-se em termos de competência da Justiça do Trabalho ou da Justiça ordinária ou comum. Não se propôs, então, o problema da Justiça Ordinária Federal, que, pela Constituição, somente existiria em segunda instância."
Na vigência destas regras, foi editada a súmula 235, do STF, segundo a qual as ações acidentárias propostas contra as autarquias seguradoras competem à Justiça comum, inclusive em segunda instância.
O Ministro ELOY DA ROCHA justificou a exclusão da competência da Justiça Federal no caso das autarquias seguradoras pela circunstância de que "na ação de indenização contra autarquia federal, seguradora do risco de acidente do trabalho, por sua carteira financeiramente autônoma, não tem interesse a União." E o motivo de ordem prática foi também por ele esclarecido, nesses termos:
"O foro da União, nas duas instâncias, para as ações de acidente do trabalho contra autarquias federais, isto é, a centralização das ações nas Capitais dos Estados e na Capital Federal, quando se generaliza o seguro obrigatório nas instituições de Previdência Social, que abrangem considerável parte dos trabalhadores brasileiros, e quando crescem os riscos de acidente com a industrialização das atividades nacionais, conduzirá a uma situação calamitosa, quer para as vítimas de acidente, quer para os serviços judiciários. O eg. Tribunal Federal de Recursos, que julga questões administrativas, cada vez mais numerosas e complexas, deverá apreciar, ainda, os recursos, oriundos de todo o País, nas ações de acidentes do trabalho " (Revista Jurídica, v. 42/134/136).
O Ato Institucional n. 2, de 27.10.65, restabeleceu a Justiça Federal de primeiro grau, de sua competência retirando, expressamente, as causas referentes a falência e acidentes do trabalho. Em conformidade com a nova redação do art. 105, `PAR` 3o, da Constituição, a Lei 5.010, de 30.5.66, que organizou a Justiça Federal, também excetuou de sua competência as causas relativas a falência e acidentes do trabalho.
O projeto da Constituição de 1967 continha os seguintes dispositivos:
"art. 117 - Aos juízes federais compete processar e julgar, em primeira instância:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal for interessada na condição de autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e acidentes do trabalho"
Art. 132 - Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores e as demais controvérsias oriundas de relações de trabalho regidas por lei especial".
A este projeto foi oferecida e aprovada a emenda 383, que propunha substituir as expressões finais do art. 117, inciso I "exceto as de falência e acidentes do trabalho" por "exceto as de falência e as sujeitas às Justiças Eleitoral, Militar ou do Trabalho, que a lei regulará". O autor da emenda, Senador MELO BRAGA, esclareceu que "a exclusão da referência aos acidentes do trabalho decorre do fato de passarem essas questões para a competência da Justiça do Trabalho", não decorrendo, portanto, da intenção do constituinte de atribuí-las a competência da Justiça Federal.
Ocorre que foram também apresentadas e aprovadas as emendas 820-2, do Senador GILBERTO MARINHO, e 849-2, do Senador EURICO REZENDE, que acrescentavam ao art. 132 do projeto um parágrafo com a seguinte redaçã
`PAR`2o - Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária".
Foi a seguinte a justificativa dessas emendas:
"A supressão do parágrafo supracitado, que consta da atual Constituição, trará como conseqüência inevitável conflitos sobre a competência entre a Justiça ordinária e a Justiça do Trabalho, para julgar a matéria relativa a acidentes do trabalho, fato que o constituinte de 1946, com inevitável acerto, evitou, não ensejando qualquer modificação no sistema tradicional, observado desde a promulgação da primeira Lei de Acidentes do Trabalho - Lei n.º 3.724, de 15-1-1919 -, mantido com a segunda lei - Dec. N.º 24.637, de 10-7-1934 - e revigorado de maneira categórica e explícita pela Consolidação das Leis do Trabalho - Dec.-lei n.º 5.452, de 1º-5-1943 -, que instituiu a Justiça do Trabalho, para, finalmente, erigir-se em princípio constitucional em 1946.
A Lei de Acidentes do trabalho versa assunto tão especializado que a própria União, os Estados, os Municípios e as Autarquias por eles não têm foro privilegiados. Comete, também, às Varas de Acidentes do Trabalho (art. 100) competência para julgar as ações ordinárias regressivas do segurador contra o empregador e vice-versa, bem como aquelas contra terceiros civilmente responsáveis pelo acidente (art. 32). Guanabara, São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco, Bahia e outros Estados, com suas varas especializadas, perfeitamente aparelhadas, processam e julgam no momento mais de cem mil causas relativas a acidentes do trabalho, o que torna facílimo prever as conseqüências de um hiato no atual sistema."
Aprovadas as citadas emendas, ficaram assim redigidos os arts. 119 e 134, `PAR` 2o, da CF de 1967, em sua redação primitiva:
"Art. 119 - Aos Juízes federais compete processar e julgar, em Primeira Instância: I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal for interessada na condição de autora, ré, assistente ou opoente, exceto as de falência e as sujeitas à Justiça Eleitoral, à Militar ou à do Trabalho, conforme determinação legal;"
Art. 134 - `PAR` 2o - Os dissídios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça ordinária."
Após todo este histórico, afirmou o Ministro ELOY DA ROCHA que "a eventual omissão, na enumeração do art. 119, I, da Constituição de 1967, de causas excluídas da competência dos juízes federais, não servirá para afastar a competência de outros Juízes, se esta resultar de dispositivos da Constituição."
Baseado nesta premissa, concluiu que a competência para julgar as causas acidentárias, mesmo que ajuizadas contra autarquia federal, era da Justiça estadual. A Lei 5.316, de 14.9.67, que integra o seguro de acidentes do trabalho na Previdência Social, passando todas as causas acidentárias a terem como ré a autarquia previdenciária federal, não poderia, portanto, em seu art. 16, ter validamente estabelecido a competência da Justiça Federal para processá-las e julgá-las, a despeito de o `PAR` 2o do art. 132 da redação original da CF de 1967 referir-se genericamente à "Justiça ordinária" (conceito no qual, em tese, poder-se-ia incluir a Justiça Federal comum) e não à "Justiça ordinária estadual", e da exclusão das causas acidentárias das exceções previstas no art. 119, I.
Com estes fundamentos, declarou o Plenário do STF a inconstitucionalidade do art. 16, da Lei 5.316, de 14.9.1967, tendo sido editada a súmula 501, assim redigida: "
"Compete à Justiça ordinária estadual o processo e o julgamento, em ambas as instâncias, das causas de acidente do trabalho, ainda que promovidas contra a União, suas autarquias, empresas públicas ou sociedade de economia mista."
Em outubro de 1969, a Emenda n. 1, alterou a redação do texto constitucional, passando o art. 142 e seu `PAR` 2o a ter a seguinte redaçã
"Art. 142 - Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre empregados e empregadores, e, mediante lei, outras controvérsias oriundas de relação de trabalho.
`PAR` 2º - Os litígios relativos a acidentes do trabalho são da competência da Justiça Ordinária dos Estados, do Distrito Federal ou dos Territórios."
A exegese dada pelo STF à expressão "Justiça ordinária" contida na redação anterior do `PAR`2o foi, então, expressamente adotada pela Constituição que passou a referir-se à "Justiça Ordinária dos Estados, do Distrito Federal ou dos Territórios", não mais dando margem à interpretação de que poderia compreender, também, a Justiça Federal ordinária.
Se durante o período de vigência da Constituição de 1967, em sua redação original, em que não se excluíam expressamente as causas de acidentes do trabalho da competência da Justiça Federal ordinária, e havia dispositivo legal atribuindo expressamente à Justiça Federal o julgamento das causas acidentárias, ainda assim não se reconheceu a competência da Justiça Federal para processar e julgar tais causas, com maior razão ainda não há como admitir tal competência, com a devida vênia dos que pensam em sentido contrário, sob a égide da Constituição atual.
Com efeito, a Constituição de 1988 não comporta margem alguma para dúvida sobre a incompetência da Justiça Federal para julgamento de causas de acidente do trabalho, dado que expressamente as excluiu, conforme dispõe o art. 109, I, verbis:
"Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
I - as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho;
Assim, considero que não comporta dúvida alguma a falta de competência da Justiça Federal para julgamento de causas relativas a acidentes ou doenças do trabalho.
Resta examinar se a competência para a apreciação de tais causas é da Justiça do Trabalho ou da Justiça Estadual.
Delimitando a competência da Justiça do Trabalho, assim estabeleceu o art. 114 da CF:
"Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivos."
Ao contrário do que sucedia sob a égide da Constituição de 1946 e da Constituição de 1967 e 1969, não mais se excluiu, do âmbito de competência da Justiça do Trabalho, os litígios entre empregado e empregador relativos a acidentes do trabalho.
A Constituição de 1988 incluiu no rol dos direitos dos trabalhadores, "seguro contra acidente do trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, em caso de dolo ou culpa." (art. 7o, XXVIII).
A natureza de direito trabalhista da indenização por acidente do trabalho, em caso de dolo ou culpa do empregador, ficou extreme de dúvidas.
Na realidade, tal natureza sempre foi incontestável. Segundo a narrativa de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, o motivo de os constituintes de 1946 e 1967 terem excluído expressamente da competência da Justiça do Trabalho a apreciação das questões oriundas da relação de trabalho foi o "lobby" das empresas seguradoras, que, na época, arcavam com o ônus do pagamento das aposentadorias em caso de invalidez. Esclarece o autor "que essa exceção à competência da Justiça do Trabalho atendia aos interesses das companhias seguradoras privadas que temiam a benevolência dos órgãos da Justiça Trabalhista em favor dos acidentados. Hoje, tais seguros são monopólio de órgão paraestatal que, segundo se infere, também teme a benevolência" (Comentários à Constituição Brasileira, 1983, p. 526).
Pode-se indagar, contudo, porque o art. 109, I, da CF, exclui da competência da Justiça Federal as causas referentes a acidentes de trabalho e também as causas afetas à Justiça do Trabalho. Isto porque, estando as causas referentes a acidentes de trabalho agora contidas na competência da Justiça do Trabalho, não haveria necessidade de se mencioná-las, bastando a exclusão das causas da Justiça do Trabalho. Este foi o fundamento de voto do eminente Ministro EDUARDO RIBEIRO, do STJ, invocado como razão de decidir pelo Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE, no já citado RE 349.160-BA, para afastar a competência da Justiça do Trabalho para o julgamento de causas decorrentes de acidentes do trabalho.
A distinção justifica-se - e a meu ver, data vênia, não exclui a competência da Justiça do Trabalho, mas apenas a da Justiça Federal - porque as causas de acidente do trabalho não são todas decorrentes de litígios entre empregado e empregador.
Assim, por exemplo, as causas concernentes a acidente ocorrido durante o trabalho desenvolvido por servidor estatutário ocupante de cargo em comissão ou por presidiário (ambas as categorias compreendidas no âmbito da legislação previdenciária comum, Lei 8213/91, e da legislação de acidente do trabalho, Lei 6.367/76, mas não incluídas no conceito de relação de emprego), refogem à competência da Justiça do Trabalho e à da Justiça Federal - no caso desta, devido à expressa exclusão feita pela parte final do inciso I, do art. 109. Os litígios entre segurados e a Previdência Social, não sendo dirigidos contra o empregador, não se compreendem, portanto, na competência da Justiça do Trabalho e nem na da Justiça Federal. Não sendo da competência da Justiça Federal e nem da Justiça do Trabalho, competem, por exclusão, à Justiça comum estadual, conforme expressamente determinado pelo art. 19, II, da Lei 6.367/76 e pelo art. 129, da Lei 8.213/91.
No caso, contudo, de ação de acidente ou doença do trabalho decorrentes de dolo ou culpa do empregador, em que se alega tenha ele descumprido suas obrigações decorrentes de contrato de trabalho ou de convenção coletiva, não vejo fundamento, na Constituição atual, para excluí-la da competência da Justiça do Trabalho. Parece-me que tais causas compreendem-se perfeitamente no conceito de dissídio entre trabalhador e empregador, não as tendo a CF de 1988, ao contrário do que sucedia no direito constitucional revogado, retirado da competência da Justiça do Trabalho.
Impõe-se, portanto, a conclusão de que, no sistema da Constituição de 1988, as causas de acidente do trabalho competem à Justiça do Trabalho, no caso de litígio entre empregado e empregador, ou à Justiça Estadual, no caso de litígio entre o segurado (empregado celetista, servidor público ocupante de cargo em comissão, presidiário etc) e a autarquia federal previdenciária.
É curioso, portanto, notar que o que define a competência da Justiça do Trabalho é o fato de haver litígio entre patrão e empregado e não, necessariamente, a existência de relação de emprego como pano de fundo de direito previdenciário oponível ao INSS em caso de acidente ou doença do trabalho.
Quando um segurado - empregado, servidor estatutário ocupante de cargo em comissão ou presidiário - ou seu dependente dirige-se ao INSS, alega a ocorrência do acidente ou doença profissional, e requer o pagamento de benefício previsto na Lei 8.213/91, não lhe cabe comprovar que o infortúnio decorreu de culpa do tomador do serviço, e nem procurará a autarquia demonstrar que o evento decorreu de culpa exclusiva da vítima, para eximir-se da responsabilidade. Bastará a comprovação da condição de segurado e da ocorrência do acidente ou doença profissional (relação de causalidade entre o trabalho e a doença, Lei 6.367/76, art. 18, II). Se o benefício for negado, não haverá litígio entre empregado e empregador, mas entre o segurado e o INSS e a competência para julgá-lo será da Justiça estadual e não da Justiça do Trabalho (cf. Lei 8.213/91, art. 129 e Lei 6.367/76, art. 19, II). Da mesma forma, a competência será da Justiça Estadual para processar e julgar ação em que se discuta o critério de reajuste de benefício previdenciário decorrente de acidente do trabalho, conforme acórdão do Plenário do STF no RE 176.532, publicado no DJ de 20.11.98, relator para o acórdão o eminente Ministro NELSON JOBIM.
O Superior Tribunal de Justiça entende que se o pedido de indenização dirigido contra o empregador está fundado em fato decorrente da relação de trabalho, a competência será da Justiça do Trabalho, salvo na hipótese de cuidar-se de doença ou acidente de trabalho, quando a competência será sempre da Justiça estadual, seja o empregador privado ou público. Esta tese foi, agora, esposada pela 1a Turma do Supremo Tribunal Federal, no já mencionado RE 349.160-BA.
A despeito de respeitar as razões contidas nos diversos precedentes do STJ e no recentíssimo acórdão do STF, considero que o sistema constitucional vigente não mais admite tal exceção à competência da Justiça do Trabalho.
Penso que havendo litígio entre empregado e empregador, decorrente da relação de emprego, "à determinação da competência da Justiça do Trabalho não importa que dependa a solução da lide de questões de direito civil", mas sim que a causa de pedir decorra de fatos surgidos "em razão da relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho." (cf. STF, Agravo de Instrumento 349976/RJ, DJ de 22.10.2001).
É certo que os precedentes do Plenário e da 1a Turma do STF citados nas decisões singulares do Ministro SEPÚLVEDA PERTENCE referidas no início deste trabalho (CC 6.959-6 e RE 238.737-4) não se referem especificamente a ações de indenização por danos decorrentes de acidente do trabalho ou doença profissional ajuizadas pelo empregado contra o empregador. Mas, em ambos, os casos trata-se de ação de empregado contra o empregador, cuja causa de pedir é a suposta violação de dever decorrente de contrato de trabalho, dependendo a solução da controvérsia da interpretação de regras de direito cível, para que se reconheça, no caso do CC 6.959-6, o alegado direito de celebração de promessa de compra e venda de imóvel, e, no caso do RE 238.737-4, o pretendido direito de indenização por danos decorrentes de imputação caluniosa irrogada pelo empregador a pretexto de justa causa.
Os fundamentos dos mencionados acórdãos do Supremo Tribunal, ao meu sentir, aplicam-se como uma luva para justificar a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar ação ajuizada pelo empregado, pleiteando indenização de direito civil, em razão de acidente do trabalho ou de doença profissional contraída por culpa do empregador.
Este entendimento tem sido adotado pelo Tribunal Superior do Trabalho, em recentes acórdãos, dentre os quais cito o AIRRRR n. 788505, relator o Ministro ANTÔNIO JOSÉ DE BARROS LEVENHAGEN, de cujo voto trasncrevo a seguinte passagem:
"As pretensões provenientes da moléstia profissional ou do acidente do trabalho reclamam proteções distintas, dedutíveis em ações igualmente distintas, uma de natureza nitidamente previdenciária, em que é competente materialmente a Justiça Comum, e a outra, de conteúdo eminentemente trabalhista, consubstanciada na indenização reparatória dos danos material e moral, em que é excludente a competência da Justiça do Trabalho, a teor do artigo 114 da Carta Magna. Isso em razão de o artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição, dispor que "são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, seguro contra acidente de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa", em função do qual impõe-se forçosamente a ilação de o seguro e a indenização pelos danos causados aos empregados, oriundos de acidentes de trabalho ou moléstia profissional, se equipararem a verbas trabalhistas. […]. Não desautoriza, de resto, a ululante competência do Judiciário do Trabalho o alerta de o direito remontar pretensamente ao artigo 159 do Código Civil. Isso nem tanto pela evidência de ele reportar-se, na verdade, ao artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição, mas sobretudo em face do pronunciamento do STF, em acórdão da lavra do Ministro Sepúlveda Pertence, no qual se concluiu não ser relevante para fixação da competência da Justiça do Trabalho que a solução da lide remeta a normas de direito civil, desde que o fundamento do pedido se assente na relação de emprego, inserindo-se no contrato de trabalho (Conflito de Jurisdição nº 6959-6, Distrito Federal)". (AIRR n. 788505, Rel. Min. Antônio José de Barros Levenhagen, DJ de 25.10.2002)
Urge, portanto, aprofundar a reflexão sobre tema tão relevante e controvertido, concernente à delimitação da competência de três dos ramos do Poder Judiciário para julgar causas de natureza indenizatória e alimentar de interesse de grande número de pessoas modestas, e cuja indefinição pode causar o retardamento da prestação jurisdicional em cada caso concreto, por longo período de tempo, dando margem até mesmo a ação rescisória, em resultado que equivale à denegação de Justiça.