Ao longo dos últimos anos, a democratização do Poder Judiciário tem representado uma das principais bandeiras de luta das entidades de classe da magistratura brasileira.Conscientes de que a superação dos vícios e contradições internas representa etapa fundamental para a correção das graves falhas presentes na administração da Justiça, os magistrados brasileiros têm preconizado, entre outras propostas, o fim das sessões secretas e do nepotismo, a eleição direta para os cargos diretivos dos tribunais e a elaboração dos orçamentos com a participação de vários atores, todas fundamentais para a construção de um novo e democrático Poder Judiciário, capaz de bem enfrentar os sérios e cada vez mais complexos desafios apresentados pela sociedade brasileira.
Mas o debate sobre a democratização interna do Judiciário passa também por alguns outros temas absolutamente sensíveis e relevantes, como o do controle externo. Para além de quaisquer reflexões teórico-dogmáticas, fundadas na inconstitucionalidade de qualquer modelo capaz de mitigar, mesmo que indireta ou parcialmente, a independência e a autonomia do Poder Judiciário, parece haver consenso quanto à necessidade de implantação de um sistema que possa melhor compatibilizar a autonomia administrativa, financeira e orçamentária dos tribunais ao interesse da sociedade pela mais efetiva administração da Justiça.
Com esse objetivo, a Anamatra, entidade que reúne os juízes do trabalho de todo o Brasil, apresentou proposta de criação de um sistema de controle que, pautado na premissa da independência absoluta dos juízes e composto por representantes da sociedade civil, teria entre as suas várias atribuições a definição da política judiciária, o planejamento estratégico e a avaliação do Poder Judiciário, a coordenação, supervisão, fiscalização e disciplina sobre as atividades administrativas, financeiras e orçamentárias de seus órgãos, incluído o Supremo Tribunal Federal. Essas atribuições tocariam, ainda, em questões relevantes como a da promoção de magistrados, pelos critérios de antiguidade e merecimento, cabendo ao Conselho propor, nesse último caso, os critérios a serem observados.
Para além de aspectos relevantes como o da pesada estrutura que seria necessária para subsidiar a atuação desse Conselho -- existem no Brasil 65 tribunais, cada qual elaborando seu próprio orçamento, avaliando as necessidades de investimento nas áreas de pessoal e recursos materiais, na perspectiva de bem responder ao volume crescente de mais de 12 milhões de ações que lhes são dirigidas anualmente --, parece irrefutável a conclusão de que a autonomia conferida aos tribunais pela Constituição de 1988 não foi efetivamente implantada, tanto em razão das dificuldades vividas pelos próprios tribunais (cujos integrantes não foram forjados para o ofício de administrador, o que os torna, em muitos casos, reféns da máquina burocrática e presa fácil para manobras lesivas ao erário), quanto pelas dificuldades orçamentárias do Estado brasileiro em geral, que têm limitado sobremaneira a melhor estruturação de suas instituições.
De qualquer modo, suprimir a infante autonomia administrativa e financeira dos tribunais não parece ser a melhor solução para o futuro do Poder Judiciário. Ao contrário, necessário seria buscar a definição de novos modelos de administração, com a implantação de propostas democráticas de modernização, como, por exemplo, a do orçamento participativo, que permitiria um amplo e mais preciso diagnóstico da realidade e das necessidades dos órgãos judiciais.Como forma de melhor responder à demanda social por justiça, é necessário buscar políticas estratégicas de planejamento de médio e longo prazo, que não estejam vinculadas apenas aos mandatos dos presidentes dos tribunais.
É equivocada a idéia de que os tribunais não estão submetidos a qualquer espécie de controle, diferentemente do que ocorre com os integrantes dos Poderes Executivo e Legislativo. Observadas as especificidades que marcam a investidura judicial, há que se reconhecer que os atuais meios de controle são suficientes. No âmbito dos julgamentos, há a possibilidade de interposição de sucessivos recursos, o que bem demonstra que os atos judiciais não são imunes à fiscalização. No plano administrativo, além da publicidade conferida a todos os atos, da qual advém a possibilidade de intervenção do Ministério Público, é fato que as cortes de contas atuam de forma decisiva, definindo, inclusive de forma prévia em muitos casos, as balizas que devem nortear a ação do administrador judicial.
Outro ponto que chama a atenção na proposta da Anamatra diz respeito à promoção dos magistrados por merecimento, que passaria a ser feita pelo Conselho de Justiça. Embora em termos abertos, a Constituição define os critérios para a aferição do merecimento, aludindo a segurança e presteza no exercício da jurisdição e à freqüência a cursos de reconhecido aperfeiçoamento profissional (art. 93). Ainda que segurança e presteza no exercício da jurisdição possam ser analisados sob diferentes prismas pelos juízes de segundo grau, representam, quando menos, o ponto de referência para que os magistrados de primeira instância possam pautar sua conduta profissional, buscando a justa e equilibrada medida entre celeridade e qualidade na prestação jurisdicional. Afinal, se a diversidade é inerente ao gênero humano, é natural que os magistrados apresentem características próprias e assumam diferentes atitudes em face dos grandes desafios e sacrifícios que o exercício da jurisdição impõe.
Além disso, e sem embargo de eventuais desvios que possam ser cometidos pelos tribunais na manipulação desse critério, é evidente que a idéia da promoção por merecimento, presente em várias das carreiras do serviço público, objetiva possibilitar, no interesse maior da sociedade, que as estruturas administrativas de grau superior sejam compostas por aqueles que possuem, de acordo com os referidos critérios, características profissionais que recomendam a promoção antecipada em relação ao critério da antiguidade. Ao votar na promoção de juízes pelo critério de merecimento, os membros dos tribunais são os mais habilitados a assumir a posição singular de “julgadores de julgadores”, desde que responsáveis pela revisão das decisões proferidas em primeiro grau, o que lhes permite conhecer, sob os mais variados aspectos (humanístico, técnico-profissional etc), o perfil dos magistrados vinculados ao tribunal.
A realização dos ideais democráticos e republicanos depende da capacidade das instituições públicas em exercer, com proficiência, as funções que lhe são reservadas. No caso do Poder Judiciário, cuja reforma ocupa a agenda política há mais de 12 anos, espera-se que o Parlamento brasileiro promova as inovações necessárias ao resgate da promessa constitucional do mais amplo e efetivo acesso à Justiça.