Em recente pronunciamento radiofônico, o presidente da República entendeu necessário lembrar aos líderes do MST que o nosso país "tem lei" e que "ela vale para o presidente da República, para o sem-terra e para o com-terra". A lembrança é justa, mas parcial. Deveria ser também lembrado que, acima das leis, há uma Constituição, que deve ser respeitada por todos, governantes e governados; e que ela tem sido sistematicamente violada, em matéria de direitos sociais, por todos os governos que se sucederam a partir de 5 de outubro de 1988.
A Constituição determina que "a propriedade atenderá à sua função social" (art. 5º, inciso 23). Mas ninguém ignora que a grande propriedade, no campo ou na cidade, só excepcionalmente se enquadra nesse dispositivo constitucional.
A Constituição declara, como direito fundamental dos trabalhadores, "salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, transporte e Previdência Social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo" (art. 7º, inciso 4). Seria injurioso pretender que o presidente da República, que foi um notável líder sindical, desconhece estar o salário mínimo vigente no país escandalosamente distante desse mandamento constitucional.
A Constituição estabelece, como princípio da ordem econômica, "a busca do pleno emprego" (art. 170, inciso 8). Mas as estatísticas oficiais demonstram que todos os governos que aceitaram as imposições do FMI sobre o "ajuste fiscal", inclusive o atual, foram diretamente responsáveis por uma agravação brutal do desemprego.
A tudo isso (e a muitas outras normas constitucionais que, citadas, encheriam toda esta página) o presidente da República e seu ministro da Fazenda provavelmente responderão, instruídos (quem sabe?) por algum candidato a ministro do Supremo Tribunal Federal, que o respeito aos direitos fundamentais de caráter social está submetido ao princípio da "reserva do possível".
Ora, como a dívida pública corresponde a mais da metade do PIB anual e o pagamento de juros desse saldo devedor consome cerca de 10% do que anualmente se produz no país, não causou surpresa verificar que o montante dos gastos sociais do governo federal, em 2003, equivaleu a menos da metade das quantias efetivamente pagas no serviço da dívida pública.
Todos sabemos que, num famoso documento de campanha, o candidato Lula prometeu, se fosse eleito, respeitar integralmente os acordos e contratos firmados pelo seu predecessor no Palácio do Planalto. A lição do episódio é clara: para o atual governo, o pagamento da escorchante dívida pública passa à frente do respeito aos direitos fundamentais da pessoa humana.
Sucede que uma parte substancial dessa dívida tem origem externa. Se abrirmos o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, encontraremos em seu art. 26 a seguinte determinaçã "No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro". Acrescenta esse artigo que, "apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de 60 dias, a ação cabível".
Ficará o leitor, porventura, surpreso se souber que, até hoje, passados mais de 14 anos, ainda não foi instalada no Congresso Nacional essa comissão mista de inquérito sobre a dívida externa?
Bem sei o que responderão os governantes, pressionados por habituais defensores da ordem pública: nada disso justifica o "abril vermelho" do MST.
Sem dúvida, a Constituição torna "insuscetível de desapropriação para fins de reforma agrária a propriedade produtiva" (art. 185, inciso 2). Mas ela também precisa, no artigo seguinte, que a função social da propriedade rural só se considera cumprida quando ela atende, simultaneamente, aos seguintes critérios:
"1) aproveitamento racional e adequado; 2) utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; 3) observância das disposições que regulam as relações de trabalho; 4) exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores".