Entrou em vigor a Emenda Constitucional 45, que alterou profundamente a competência material da Justiça do Trabalho. De acordo com o novo artigo 114, caberá à Justiça do Trabalho não mais processar e julgar apenas "os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores", mas, a partir de agora, todas as "ações oriundas da relação de trabalho" (abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios).
Os sujeitos e o núcleo obrigacional das "relações de trabalho" são bem mais diversificados do que os das "relações de emprego". A Justiça do Trabalho deixa de ter como foco as lides entre empregados e empregadores, na forma da Consolidação das Leis do Trabalho, e passa a decidir todas as pendengas que envolvam, direta ou indiretamente, o "trabalho".1
Até que a jurisprudência se assente sobre o que está além e aquém desse nicho de relações jurídicas (as "relações de trabalho"), certamente haverá um período de transição e de turbulência2 de alguns anos. Nos dissídios individuais processados pelo rito ordinário, somente a partir da terceira instância, isto é, com o julgamento de recursos de revista (alínea "a" do artigo 896 da CLT), é que o Tribunal Superior do Trabalho começa a ser instado a unificar correntes divergentes.
E, com efeito, divergências surgirão sobre o que se encaixa no significado da expressão trabalho contida no artigo 114. Gramaticalmente, trabalho é:
"1 atividade produtiva, paga ou não 1.1 seu resultado 2 esforço, lida 3 funcionamento [de mecanismo] (...)" (Mini HOUAISS - Dicionário da Língua Portuguesa, Ed. Objetiva, pág. 513).
Por isso pressentimos que a amplificação da competência material da Justiça do Trabalho poderá se revelar muito mais expressiva do que em princípio possa parecer. Considerado o trabalho como atividade, pouco importa se é desenvolvida por pessoas físicas ou jurídicas, assim como pouco importa se esse trabalho é oneroso ("remunerado") ou voluntário.
Assim, em princípio, a Justiça do Trabalho passa a ser competente para processar e julgar todas as ações decorrentes de relações de trabalho, ainda que tenham por sujeitos duas pessoas jurídicas, como ocorre, na maioria das vezes, nas prestações de serviços em geral.
Para se saber das novas fronteiras de competência, portanto, será preciso policiar velhos cacoetes, porque as relações de trabalho não são, por essência, intuito personae em relação ao contratado, diferentemente do que ocorre nas relações de emprego (artigo 3o da CLT). Aliás, é natural que as prestações de serviços entre pessoas jurídicas ocorram sem o concurso de pessoalidade, porque nesses contratos importam mais os resultados do que os meios produtivos.
É preciso lembrar, também, que essa alteração constitucional insere a Justiça do Trabalho nos novos tempos de competitividade e diversificação próprias da globalização, onde o emprego formal já vinha perdendo estatisticamente a posição majoritária (escrevemos a respeito d"O fenômeno da crise de autenticidade" "in" revista Trabalho & Doutrina, número 7, dezembro de 1995, Saraiva, pág. 66).
Caberá à jurisprudência, como se disse, analisar as espécies contratuais, e caso a caso, definir as que estarão sob o pálio da locução "relações de trabalho" e que, a partir de agora, agregar-se-ão à competência jurisdicional trabalhista. Sendo espécie do gênero "relação de trabalho", pouco importará também qual o direito material discutid de direitos de propriedade intelectual até contratos de grande empreitada3, em tese sujeitar-se-ão exclusivamente à jurisdição delimitada no artigo 114.
Não podem ser descartadas, é claro, construções jurisprudenciais mais conservadoras, pugnando, por exemplo, no sentido de que as "relações de trabalho" a que se refere o novo artigo 114 seriam as obrigações (de trabalhar) assumidas por trabalhadores, isto é, pessoas físicas não subordinadas na forma do artigo 3o da CLT, tais como os profissionais liberais, e que, portanto, as prestações de serviços entre duas pessoas jurídicas continuariam fora da competência da Justiça do Trabalho.
Se essa corrente prevalecer, ter-se-á que admitir, em contrapartida, que a nova redação dada ao artigo 114 da Constituição não abarcou, verdadeiramente, todas as ações oriundas da relação de trabalho, mas apenas as que derivarem do trabalho individual executado à semelhança do art. 3o. da CLT, isto é, com "pessoalidade", porém sem o requisito da "subordinação". Todas as demais relações de trabalho só poderiam ser incluídas mediante a regulamentação infraconstitucional aludida no inciso IX ("outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei").
Nessa interpretação conservadora, a prestação de serviços realizada por cooperativas (para citar mais um exemplo de "trabalho" não subordinado) não seria da competência da Justiça do Trabalho. Da mesma forma, a representação comercial autônoma exercida por pessoa física seria da competência da Justiça do Trabalho, mas não as desincumbidas por pessoas jurídicas, o que não nos parece razoável, porque a competência da Justiça do Trabalho é fixada em razão da matéria ("ex ratione materiae"), e não em razão de pessoas ("ex ratione personae").
Algumas "outras controvérsias" já foram especificadas nos incisos I a VIII: tudo o que disser respeito ao exercício do direito de greve (portanto, não apenas a greve em si; exempl ação de indenização por danos materiais causados no exercício abusivo do direito de greve); as ações sobre disputa de representação sindical; as de "indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho"; para "aplicação de penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho" (cumprimento de multas administrativas impostas pelos órgãos do Ministério do Trabalho e do Emprego).
Dessas "outras controvérsias", a que também promete debate jurisprudencial acalorado é a do inciso VI: "ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho", particularmente quanto às indenizações porventura devidas em acidentes de trabalho.
Em que pesem serem espécies do gênero "relações de trabalho", o Supremo Tribunal Federal já vinha decidindo no sentido de que a competência dessas ações escapava da Justiça do Trabalho por conta do inciso I do artigo 109 da Constituição, que não está entre os dispositivos expressamente revogados no artigo 9o da EC 454. Essa, portanto, é a segunda questão trazida pela EC 45 que promete bastante controvérsia.
A terceira questão palpitante e cuja controvérsia já se ensaia na doutrina especializada é relativa ao direito processual aplicável às relações de trabalho doravante acometidas à Justiça do Trabalho. O jurista COUTO MACIEL tem externado que nessas novas lides abarcadas pela Justiça do Trabalho incidirá o direito processual comum, e não o direito processual trabalhista (A Nova Competência da Justiça do Trabalho, "in" Revista Jurídica Consulex n° 190, pg. 27/29), opinião que não corroboramos, porque o "Processo Judiciário do Trabalho" disciplinado no Título X da CLT é dirigido expressamente a todos os feitos da Justiça do Trabalho.
São decisivas, neste particular, as expressões contidas nos artigos 763 e 764 da CLT, respectivamente: "O processo na Justiça do Trabalho, no que concerne aos dissídios individuais e coletivos e à aplicação de penalidades, reger-se-á em todo território nacional pelas normas estabelecidas neste Título"; e "Os dissídios individuais ou coletivos submetidos à apreciação da Justiça do Trabalho serão sempre sujeitos à conciliação". Portanto, nas ações decorrentes das relações de trabalho (processos de conhecimento), assim como na das relações de emprego, a legislação processual do trabalho será aplicável, cabendo à legislação processual comum apenas a atuação supletiva prevista no artigo 769 da CLT.
Da ilustrada opinião de MACIEL também se extrai a revogação da obrigatoriedade de tentativa de conciliação nos processos submetidos à jurisdição trabalhista, com o que também discordamos. Realmente a dicção do artigo 114 foi alterada de "conciliar e julgar" para "processar e julgar", notando-se um recuo do legislador constituinte quanto à missão conciliatória. Mas a conciliação permanece obrigatória em razão da legislação processual trabalhista infraconstitucional, que a Constituição permite, é verdade, seja regulada doravante de outro modo, mas enquanto a tentativa de conciliação for considerada obrigatória pela lei ordinária, a sua falta continuará, em nosso ver, a gerar nulidades processuais.
Enfim, o que se mostra imune a controvérsias, pela nova redação do artigo 114 da Constituição, é que as relações de trabalho (envolvendo trabalhadores pessoas físicas), celetistas ou estatutárias, não subordinadas, passaram à competência material da Justiça do Trabalho.