Correndo pelas varas do Estado, como juiz do trabalho substituto, havia um momento indispensável na primeira chegada. “Aqui, onde sentam os empregados?”, eu perguntava. “Empregados à esquerda e patrões à direita”, alguém respondia. Advogados chegados à cidade ainda enfrentam a mesma dúvida.
A pergunta, apesar da singeleza e da imprecisão, escondia muitas pré-concepções. Elas até agora se encaixavam no arcabouço teórico-ideológico da área e não chamavam a atenção. Mas ganharão crescente importância a partir da nova competência fixada para a Justiça do Trabalho.
Examinemos uma delas, que começa a ser desmontada. Trata-se da associação de “empregado” com autor e de “empregador” com réu.
Nas salas de audiência, as partes punham-se, em 99,9% dos casos, da mesma maneira: empregado sempre de um lado da mesa(esquerdo, por exemplo) e empregador do outro(direito). E daí? Daí que em 99,9% das ações ajuizadas o empregado demandava contra o patrão. A mesa expunha a luta do empregado contra o empregador, para receber seus direitos.
E tudo ganhava um objetivo preciso, em consonância com a luta Davi / Golias que ali se expunha, desde a lei material, passando pela processual, até às portarias, provimentos, regimentos. A visão incrustada nas normas espraiava-se para o agir dos magistrados, como não poderia deixar de ser, e inspirava um proceder naturalmente sintonizado com a característica histórica da área empregatícia. Marx falaria da luta de classes.
Até 30.12.2004, a luta do empregado contra os desmandos do empregador orientava tudo, na Justiça do Trabalho. Basta ver, por exemplo, as recentes ações institucionais do Tribunal Superior do Trabalho contra o trabalho escravo e as das associações de magistrados trabalhistas contra a nova Lei de Falências, pelo esvaziamento de direitos dos empregados.
Toda a principiologia básica aplicada na área, portanto, se desnudava naquela polaridade sistemática das salas de audiência. Por imposição legal, uma aura de proteção cobria um dos lados da mesa – o do empregado – o que significava dizer que a outra dispunha da técnica a seu favor. Nada mais. Isso chegava à cabeça dos magistrados. Daí nascia uma lógica própria, norteadora do processo e da decisão, só longinquamente formal-silogística, mas muito aberta às investidas dos valores informativos da lei e da ideologia dominante na área. Valores consagrados naquela aura protetiva referida.
Pois bem. A primeira ação trabalhista ajuizada em Florianópolis, em 2005 – li hoje no informativo do Tribunal Regional do Trabalho de SC – traz para a sala de audiências uma empregadora, que vai ocupar o antigo lugar reservado aos empregados, e o Estado, que vai sentar no lugar antes ocupado pelos empregadores. A empregadora move ação contra a União.
Deixemos de lado tudo que isso significa em prejuízo da especialização da JT – por atrair leis diversas a serem aplicadas etc -, da celeridade – pois o Estado vai recorrer até o STF e um canal restrito do empregado passa a ser ocupado por interesses que lhe são estranhos -, das questões processuais – como a da sucumbência, da gratuidade, da oralidade, do procedimento -, e foquemos apenas o aspecto em exame.
No dia da audiência desse processo, o magistrado não verá, mais, pairando sobre o lado da mesa em que sentava o empregado, aquela nuvem de princípios de proteção que davam ao conjunto sua peculiar e constante aparência. Ela não estará lá. A atuação de anos a fio, acompanhada e orientada por aquela névoa inspiradora, terá de ser repentinamente substituída por um agir diferente, sem um suporte valorativo amadurecido e sólido.
O magistrado não terá diante de si um daqueles momentos típicos da luta do hipossuficiente contra o bem sucedido. Estará no ar uma luta nova, do bem sucedido contra o maior dos vilões – o Estado. Os últimos 350 anos da cultura ocidental, desde Locke até as atuais lutas pela derrocada dos regimes totalitários sobreviventes e pela afirmação dos direitos humanos, representaram a busca de meios de domínio e contenção do Leviatã – o Estado – e de defesa do privado, no qual se insere o empregador autor. Se, para além da técnica processual, entender-se que uma parte deve merecer algum “benefício”, na mesa, parece que será o empregador.
Simples, não é? Não. Há um desmonte a ser feito. Seja para se pôr tecnicamente diante das partes, seja para assumir uma postura voltada a promover um equilíbrio na relação, desde que se entenda devida, é necessário desvencilhar-se de uma herança. No primeiro caso, menos dolorosa. Tratamento igual e técnico. No segundo, entendendo-se cabível tratamento processual tendente à promoção do equilíbrio entre o privado – o fraco – e o Estado, mais doloroso. Dever-se-á destruir aquela visão corriqueira, de vilão da relação, que o empregador carrega, e substituí-la por outra, incompatível, de vítima da relação.
Na audiência do processo seguinte, da pauta, ainda segundo o antigo figurino – empregado x empregador – o magistrado se voltará a orientar pela tábua de valores das últimas décadas. Em pouco tempo, tais alternâncias se sucederão no dia a dia. A visão especializada, focada na relação empregatícia e suportada em valores muito bem fixados, se diluirá. Interesses juridicamente protegidos, de outra natureza, demandarão a atenção e o esforço do juiz do trabalho.
Haverá uma evolução ou uma involução? O tempo dirá. Uma coisa é certa: haverá uma transformação profunda da Justiça do Trabalho.
Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.