Sumário: 1. Introdução; 2. O art. 114 da Constituição; 3. O art. 114 em sua nova versão; 4. A liminar concedida pelo Ministro Nelson Jobim; 5. Conclusões; Bibliografia.
1. Introdução
O Congresso Nacional concluiu, em dezembro próximo passado, a reforma do Poder Judiciário, após longa tramitação que perdurou por cerca de uma década.
O instrumento da reforma corresponde à Emenda Constitucional n.º 45, que veio a ser publicada no Diário Oficial da União de 31/12/2004.
Seu alvo principal foram os diversos órgãos integrantes do Poder Judiciário, colimando dar maior transparência administrativa aos seus atos, criando o Conselho Nacional de Justiça, composto por quinze(15) membros, seis dos quais estranhos à Magistratura(dois representantes do Ministério Público, dois advogados e dois cidadãos), assim como foi instituída a súmula vinculante no âmbito do Supremo Tribunal Federal.
Em relação à Justiça do Trabalho, a redação do art. 114 da Constituição foi melhorada sensivelmente, ao tempo em que se observa relevante ampliação de sua competência.
2. O art. 114 da Constituição
Em sua redação primitiva, fruto de trabalho gestacional da Assembléia Nacional Constituinte, o art. 114 da Constituição veio vazado nos termos seguintes: “Compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta dos Municípios, do Distrito Federal, dos Estados e da União, e, na forma da lei, outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho, bem como os litígios que tenham origem no cumprimento de suas próprias sentenças, inclusive coletivas”.
Ao se referir a “empregadores”, o Texto, à evidência, restringiu a competência da Justiça do Trabalho aos litígios decorrentes da relação de emprego, que corresponde ao liame contratual regrado pela Consolidação das Leis do Trabalho.
Quanto a este fato inexiste voz opositora, cujo quadro muda drasticamente com a entrada em cena da EC n.º 45, que deu novo conteúdo ao Texto Constitucional.
3. O art. 114 em sua nova versão
Eis a nova redação do art. 114, com a promulgação da EC n.º 45, já em pleno vigor: “Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I-as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
São nove os novos incisos do novo art. 114, mas a norma-matriz repousa precisamente no inciso I, o qual, em necessário cotejo com o anterior conteúdo, faz aflorar algumas constatações irrecusáveis.
A expressão restritiva “empregadores” foi abolida, optando-se pela nomenclatura “relação de trabalho”, de modo que toda controvérsia oriunda de relação que envolva o trabalho humano passa a ser dirimida pela Justiça do Trabalho.
Relação de trabalho, convém sublinhar, é gênero, do qual são espécies o contrato de emprego, os contratos de natureza civil e os liames de cunho estatutário, sendo que estes últimos não têm natureza contratual, mas institucional.
Os contratos de emprego, todos o sabem, são disciplinados pela CLT; os contratos de natureza civil, pelo Código Civil(art. 593 e seguintes) e/ou pelas legislações específicas(verbi gratia, Lei nº. 4.886/65, que trata da representação comercial); e as relações do servidor e a pessoa jurídica de direito público à qual está ele vinculado são reguladas pelo respectivo estatuto.
Toda essa gama de matéria tem agora na Justiça do Trabalho o foro competente para a solução dos litígios dela decorrentes.
A Justiça do Trabalho, portanto, não mais é a Justiça do emprego, da CLT, mas a Justiça de todo e qualquer trabalho humano.
A CLT – e o rito procedimental peculiar – será usada única e tão-somente quando se defrontarem, em dissenso, empregado e empregador.
Fora disso, aplicar-se-á o rito previsto no CPC, com a incidência do direito material respectivo(CC, Estatuto etc.), sem se cogitar, nem de passagem, da aplicação de qualquer dispositivo da CLT.
Estas constatações são fruto de uma leitura isenta do novel art. 114, com as quais, todavia, não comunga o eminente Ministro Nelson Jobim, Presidente do Supremo Tribunal Federal.
4. A liminar concedida pelo Ministro Nelson Jobim
A Associação dos Juízes Federais do Brasil-Ajufe ingressou no STF com ação direta de inconstitucionalide(Adin), com pedido de liminar, contestando o texto da reforma do Judiciário que deu nova redação ao art. 114, inciso I, da Constituição.
A Ajufe sustenta, em síntese, que a EC n.º 45 foi promulgada, no particular, hospedando vício formal, vez que o Senado Federal teria alterado o texto aprovado pela Câmara dos Deputados, ao acrescentar uma ressalva na parte final do inciso I.
Argumenta, ainda, a aludida entidade de classe, que o texto aprovado dá margens a interpretações duvidosas, fruto de sua “manifesta dubiedade”, mercê da indefinição do que seja “relação de trabalho”.
O Ministro Nelson Jobim, em sede liminar, afastou a alegada inconstitucionalidade formal, mas atendeu ao pedido da Ajufe, ao fundamento de que “Não há que se entender que a justiça trabalhista, a partir do texto promulgado, possa analisar questões relativas aos servidores públicos. Essas demandas vinculadas a questões funcionais a eles pertinentes, regidos que são pela Lei 8.112/90 e pelo direito administrativo, são diversas dos contratos de trabalho regidos pela CLT”.
Em arremate, diz o eminente Ministro: “Suspendo, ad referendum, toda e qualquer interpretação dada ao inciso I do art. 114 da CF, na redação dada pela EC 45/2004, que inclua, na competência da Justiça do Trabalho, a ‘... apreciação ... de causas que ... sejam instauradas entre o Poder Público e seus servidores, a ele vinculados por típica relação de ordem estatutária ou de caráter jurídico-administrativo”.
Um primeiro aspecto a destacar nesta decisão diz respeito à absoluta ausência de qualquer inconstitucionalidade a macular o texto promulgado.
Como se trata de Emenda Constitucional, eventual inconstitucionalidade material deve ser perquirida sob a ótica do art. 60, `PAR` 4º, da Constituição, necessariamente.
A decisão do Ministro Jobim, todavia, não aponta uma única violação ao comando prescrito no art. 60, `PAR` 4º, que impõe às gerações presente e futuras a inalterabilidade da Constituição de 1988 no que pertine à forma federativa de Estado, ao voto direto, secreto, universal e periódico, à separação dos Poderes e aos direitos e garantias individuais.
O aludido `PAR` 4º, art. 60, da Constituição, não sobeja lembrar, constitui o núcleo imutável da Carta Política, abrigando inafastáveis limitações materiais explícitas ao Poder Constituinte derivado.
Entretanto, soa em desatino fazer operar a subsunção da atuação do Congresso, aqui, na norma do art. 60, `PAR` 4º, precisamente porque, ao atribuir competência para a Justiça do Trabalho apreciar as lides envolvendo servidores estatutários, não se vulnerou, nem de passagem, nenhuma das matérias que compõem o núcleo imodificável da Constituição.
Necessário se faz ter em mente, demais disso, que mesmo na interpretação conforme a Constituição, em se tratando de Adin, impõe-se seja detectada alguma inconstitucionalidade a inviabilizar a norma.
A interpretação conforme a Constituição, com efeito, somente tem lugar “no caso de normas com várias significações possíveis”, caso em que “deverá ser encontrada a significação que apresente conformidade com as normas constitucionais, evitando sua declaração de inconstitucionalidade e conseqüente retirada do ordenamento jurídico”.
Canotilho esposa igual pensar: “a interpretação conforme a constituição só é legítima quando existe um espaço de decisão(=espaço de interpretação) aberto a várias propostas interpretativas, umas em conformidade com a constituição e que devem ser preferidas, e outras em desconformidade com ela”.
Pois bem, a interpretação primeira que emerge da leitura do novo art. 114, inciso I, em cotejo com a redação primitiva, não é outra senão a de que o legislador constituinte derivado deslocou para a Justiça do Trabalho a competência para dirimir controvérsias em torno dos estatutos(âmbito da União, Estados, Distrito Federal e Municípios).
E, indague-se, há alguma inconstitucionalidade a gravitar em torno desse trabalho hermenêutico ?
Não, absolutamente nenhuma incompatibilidade existe entre ele e o Texto Constitucional.
A atuação do legislador constituinte derivado, neste caso, foi completamente lícita, não demandando reparo de qualquer ordem.
As competências dos órgãos jurisdicionais, não se olvide, são fixadas exatamente pelo legislador constituinte, fruto da engenharia jurídica que deu azo à separação dos Poderes.
A competência do Supremo Tribunal Federal é fruto da vontade política do legislador constituinte; as do Superior Tribunal de Justiça, da Justiça do Trabalho, da Justiça Federal, idem.
Aliás, o mesmo legislador constituinte, na mesma EC n.º 45, transferiu das Justiças Estaduais para a Justiça Federal a competência para julgar as ações que envolvam “grave violação de direitos humanos”, do mesmo modo que deslocou do STF para o STJ a competência para homologar sentenças estrangeiras e conceder exequatur às cartas rogatórias.
Absolutamente constitucional, qual se vê, a atuação do Congresso Nacional, mercê da ausência de maltrato ao art. 60, `PAR` 4º, da Constituição, ao deslocar para a Justiça do Trabalho competências antes atribuídas a outros órgãos jurisdicionais.
Pertine salientar que “um sistema de governo composto por uma pluralidade de órgãos requer necessariamente que o relacionamento entre os vários centros do poder seja pautado por normas de lealdade constitucional(Verfassungstreue, na terminologia alemã). A lealdade institucional compreende duas vertentes, uma positiva, outra negativa. A primeira consiste em que os diversos órgãos do poder devem cooperar na medida necessária para realizar os objetivos constitucionais e para permitir o funcionamento do sistema com o mínimo de atritos possíveis. A segunda determina que os titulares dos órgãos do poder devem respeitar-se mutuamente e renunciar à prática de guerrilha institucional, de abuso de poder, de retaliação gratuita ou de desconsideração grosseira. Na verdade, nenhuma cooperação constitucional será possível, sem uma deontologia política, fundada no respeito das pessoas e das instituições e num apurado sentido da responsabilidade de Estado(statesmanship)”.
Mostra-se carente de consistência, por outro lado, o argumento de que lançou mão o Ministro Jobim, ao invocar precedente do STF que “declarou a inconstitucionalidade de dispositivo da L. 8.112/90, pois entendeu que a expressão ‘relação de trabalho’ não autorizava a inclusão, na competência da Justiça trabalhista, dos litígios relativos aos servidores públicos”.
O precedente é de todo impertinente à hipótese atual, pois se relacionava com uma lei ordinária que conflitava com o art. 114, caput, da Constituição, vez que a redação deste dispositivo, como demonstrado alhures, era visivelmente restritiva, dado que se referia a empregadores, figura inexistente no vínculo estatutário.
A situação atual é completamente diversa daqueloutra, haja vista que se trata de uma Emenda Constitucional, promulgada sem a menor ofensa ao núcleo imutável fixado no art. 60, `PAR` 4º, da Carta Política.
Não há, portanto, a mais mínima similitude de casos.
Igualmente não procede o argumento de que a solução dos litígios que envolvam servidores estatutários são da órbita do Direito Administrativo, o que excluiria a competência da Justiça do Trabalho.
Trata-se de aspecto absolutamente irrelevante.
O juiz do trabalho, realmente, diante de litígio dessa ordem, não aplicará a CLT, mas o respectivo estatuto e os princípios a ele inerentes que integram o Direito Administrativo.
Há, no entanto, alguma inconstitucionalidade neste atuar, inclusive a demandar urgente concessão de liminar em Adin ?
A resposta, evidentemente, é negativa, mesmo porque a legislação aplicável por qualquer juiz corresponde àquela pertinente à controvérsia instaurada nos autos.
O próprio STF, não há muito, reafirmou a competência da Justiça do Trabalho para apreciar pedido de indenização por dano moral decorrente de violação do contrato de trabalho, desdenhando, acertadamente, ao fato de a lide ser solucionada sob a égide do Código Civil.
O Código Civil não é a lei dos juízes de direito, assim como a Lei n.º 8.112/90 não nasceu para ser lida exclusivamente na Justiça Federal.
Estas e outras normas são aplicadas pelos órgãos jurisdicionais, quaisquer que sejam, na exata medida da competência fixada pelo legislador constituinte.
Imperioso é que se evitem as “guerrilhas institucionais” e se fortaleça o princípio da separação das funções estatais, solenemente insculpido como princípio fundamental no art. 2º da Constituição, o qual está a exigir dos Poderes da República uma conduta de estrita lealdade constitucional, respeitando cada um deles as decisões emanadas do outro, desde que tomadas no exercício regular das atribuições fixadas pela Constituição.
5. Conclusões
Do exposto emergem, como consectários naturais, as conclusões a seguir:
a) a redação original do art. 114 da Constituição Federal se referia a empregadores, o que excluía do âmbito de competência da Justiça do Trabalho as controvérsias entre servidor estatutário e a pessoa jurídica de direito público à qual está vinculado;
b) a nova redação do art. 114, inciso I, ampliou sobremaneira a competência da Justiça do Trabalho, deslocando para esta, dentre outras, as lides dos servidores estatutários;
c) a EC n.º 45, no particular, não padece de inconstitucionalidade material, inexistindo violação ao núcleo imodificável estatuído no art. 60, `PAR` 4º, da Constituição;
d) ao dirimir as controvérsias instauradas por servidores estatutários, o juiz do trabalho aplicará regras e princípios do Direito Administrativo, fato que, à evidência, não encerra qualquer inconstitucionalidade;
e) legítima a atuação do Poder Legislativo ao deslocar de um órgão jurisdicional para outro a competência em determinadas matérias, notadamente no exercício regular do poder constituinte derivado, o que se insere na seara da separação dos Poderes, sendo de se esperar que o Pleno do STF casse a cautelar concedida, laborando, assim, em lealdade constitucional.
Bibliografia:
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional. Coimbra: Almedina, 1993.
CANOTILHO, J. J. Gomes e MOREIRA, Vital. Os Poderes do Presidente da República. Coimbra: Coimbra Editora, 1991.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2003.