A Emenda Constitucional n. 45, publicada em 31 de dezembro de 2004 e promulgada em 8 de janeiro de 2005, alterou substancialmente a redação do parágrafo segundo do art. 114 da Constituição de 1988, possibilitando, com a obscuridade do texto, várias interpretações divergentes.
Dispõe, com efeito, o parágrafo segundo do art. 114 da Lei Maior, com a redação que lhe conferiu a Emenda Constitucional n. 45/2004:
“`PAR` 2° Recusando-se qualquer das partes à negociação coletivaou à arbitragem, é facultado às mesmas, de comum acordo, ajuizar dissídio coletivo de natureza econômica, podendo a Justiça do Trabalho decidir o conflito, respeitadas as disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”.
Talvez uma primeira leitura da nova norma constitucional possa conduzir a várias conclusões equivocadas. Dentre elas, duas desde logo são palpáveis. Em primeiro lugar, ao mencionar que o dissídio coletivo poderá ser ajuizado pelas partes “de comum acordo”, o texto deixa a impressão de ter condicionado a possibilidade do ajuizamento à concordância dos envolvidos no conflito. Em segundo, a alusão exclusiva ao dissídio de natureza econômica, parece insinuar que a única espécie sobrevivente desta ação coletiva é aquela ali referida, restando ultrapassadas e excluídas a declaratória ou de interpretação, também denominada jurídica, e outras espécies que figuram nas classificações adotadas pela doutrina do Direito Coletivo do Trabalho.
Parece correto afirmar, todavia, que o novo texto constitucional não proíbe o ajuizamento do dissídio coletivo por apenas uma das partes (entidades sindicais, empresas), caso não se consume a negociação prévia ou a arbitragem. Sem pretender, absolutamente, antecipar a interpretação que possa vir a ser adotada pelos Tribunais – inclusive pelo Supremo Tribunal Federal, já que se trata de matéria constitucional –, ousa-se afirmar que a redação não autoriza esta conclusão, embora a intenção do legislador constituinte derivado possa, realmente, ter sido esta. Mas, se foi este o propósito, poderia e deveria ter sido revelado de modo mais claro.
Em primeiro lugar, não se verifica no dispositivo a redução do papel do Poder Judiciário a mero árbitro, que é como se entenderia de modo equívoco a norma, lida, assim, de modo isolado e excluído de uma interpretação sistemática do diploma, olvidando-se os princípios maiores nele consagrados. Esta redução não condiz com o princípio da inafastabilidade da jurisdição inscrito no art. 5°, inciso XXXV, da Constituição da República. Este princípio revela-se como princípio constitucional geral inscrito no texto como norma-princípio e ali situado como garantia individual. E, nesta qualidade, não pode ser objeto de deliberação em proposta de emenda, conforme dispõe o inciso IV do `PAR` 4° do art. 60 da Constituição da República de 1988, aprovado pelo legislador constituinte originário entre as chamadas cláusulas pétreas. Em sede constitucional, leciona Luís Roberto Barroso, as normas “podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípio e as normas-disposição”. As normas-disposição, segundo ele, “têm eficácia restrita às situações às quais se dirigem”, enquanto as normas-princípio, ou simplesmente princípios, “têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade destacada dentro do sistema”. Para o referido autor, o “ponto de partida do intérprete há que ser sempre os princípios constitucionais, que são o conjunto de normas que espelham a ideologia da Constituição, seus postulados básicos e seus fins”. Os princípios, portanto, são os condutores da interpretação constitucional e servem de norte, inclusive, para a compreensão de outras disposições do próprio texto magno, com superioridade inerente ao caráter teleológico de seu conteúdo significante.
Por isso, antes de mais nada, a interpretação do parágrafo segundo do art. 114, com a redação agora introduzida, há de ser feita em consonância com aquele princípio geral maior da inafastabilidade da jurisdição, a fim de que haja compatibilidade entre as normas constitucionais, inclusive submetendo-se a regra específica ao princípio. Afasta-se, com isso, uma suposta e aparente antinomia entre eles, tarefa que, como se sabe, inclui-se entre as primeiras do intérprete da Constituição. O exercício interpretativo da nova redação do parágrafo segundo do art. 114 atrai a incidência, neste mister, do denominado princípio da unidade da Constituição, cuja finalidade é exatamente “procurar determinar o ponto de equilíbrio diante das discrepâncias que possam surgir na aplicação das normas constitucionais, cuidando de administrar eventuais superposiçoes”. O parágrafo segundo do art. 114, com a redação da Emenda 45/2004, não poderia e não pode impor a quem quer que seja, como condição (ou pressuposto) de acesso à justiça, a concordância do seu antagonista, sob pena de violência e ofensa ao mencionado princípio. Ainda que isto se pretenda no campo do poder normativo, já que o exercício deste também decorre de um conflito de interesses. Se conflito há – e é evidente que há, pois o próprio dispositivo o diz –, não se pode exigir a comunhão de vontades para o fim de provocar o Judiciário. E, sob tal fundamento, não se pode inibir a atuação deste. É bem possível que, frustadas a negociação e a arbitragem, uma das partes não tenha interesse em anuir ao propósito da outra quanto ao ajuizamento.
Cabe registrar, aqui, sem pretensão de trazer à tona qualquer juízo a respeito da conveniência, da excelência ou da total falta de adequação do poder normativo da Justiça do Trabalho, que não se pode ter como legislativa a função do Judiciário no exercício daquele poder. O ato legislativo, como tal, emanado do Poder competente, não se identifica, de modo algum, com o ato jurisdicional representado pela sentença normativa. Sob o aspecto formal é evidente a distinção, até mesmo em razão do Poder de que emana um e outro e tendo em vista o processo de criação ou de elaboração. No que respeita ao conteúdo, conquanto se possa verificar certa semelhança entre eles, há que se considerar que a decisão normativa é meio para solução de conflito de interesses que é submetido a julgamento. Conflito concreto de interesses. É imprescindível que haja lide, conceito que não pode restringir-se ao conflito decorrente da aplicação da norma legislativa no dissídio individual, ou seja, norma criada pelo Poder Legislativo. As ações coletivas, como instrumento de defesa de direitos e interesses coletivos, tornaram-se, atualmente, indispensáveis. Veja-se a multiplicação de várias espécies de ações voltadas para a defesa dos interesses coletivos; a preocupação, cada vez maior, da tutela de tais interesses, como se pode depreende, para não citar outros, do art. 81 da Lei 8.078/90 (proteção ao consumidor). Não há, portanto, qualquer delegação ou usurpação de poderes. O ato legislativo, por sua vez, tem como fim, e não meio, a normatividade. Não se propõe a solucionar conflito localizado de interesses e não se vincula à existência de um conflito.
De outro lado, não se alegue que a leitura do novo texto constitucional como possibilidade de ajuizamento do dissídio apenas na hipótese de comum acordo não implica violação do princípio fundamental da inafastabilidade da jurisdição. A se admitir a restrição, é patente a violação ao princípio. Sucede que é à Justiça do Trabalho, como órgão do Poder Judiciário (art. 92/CR), que compete, por força do art. 114, inciso IX, da Constituição, com a nova redação (e mesmo com a redação anterior), processar e julgar “controvérsias decorrentes da relação de trabalho, na forma da lei”. E a lei, no caso, é a Consolidação das Leis do Trabalho, que contém a disciplina do processo coletivo do trabalho.
Posta a questão em sua devida compreensão, com aplicação do princípio da inafastabilidade da jurisdição e adotado o princípio da unidade, está evidente que o ajuizamento do dissídio coletivo de comum acordo só pode ser entendido como uma faculdade dos envolvidos. Aliás, é assim mesmo que está expresso na nova redação do parágrafo segundo do art. 114 da Constituição da República: “é facultado”. Se um dos conflitantes não se interessar pelo ajuizamento, não há como negar esta garantia ao outro, que não pode estar sujeito ao seu próprio adversário, para que a Justiça do Trabalho, como órgão do Poder Judiciário, faça atuar a jurisdição, lançando mão do poder normativo. A faculdade conferida pelo dispositivo não exclui o ajuizamento singular do dissídio.
Curiosamente, o dispositivo diz que será ajuizado o dissídio (sempre de natureza econômica),“podendo” a Justiça do Trabalho decidir o conflito. O que se quis dizer com isto? Trata-se de faculdade? Poderia a Justiça do Trabalho negar-se à decisão? Parece correto afirmar que o que se pretende dizer é que a Justiça do Trabalho atuará no dissídio coletivo, antes do mais, em uma primeira fase do processo, como conciliadora (como sempre fez). Caso não seja alcançada a composição pela via conciliatória, passará ao julgamento (como sempre fez). Se não pode recusar o pronunciamento, e se decide (julga), trata-se de ato jurisdicional com caráter normativo. É sentença normativa. O gerúndio mal empregado, data venia, há de ser entendido, é claro, como solução a ser dada pela Justiça do Trabalho, caso não venha a ser celebrado acordo em sede processual. E solução obrigatória, exatamente porque a composição não foi alcançada pelas partes (aqui, sim, partes).
Permanece íntegro, pois, o poder normativo da Justiça do Trabalho. E daí resulta a manutenção dos dissídios econômicos e de revisão.
De outra sorte, não há como negar a evidente possibilidade de se pretender, mediante o ajuizamento de dissídio de natureza “jurídica”, a interpretação de normas convencionadas ou que tenham sido objeto de acordos, em sítio autônomo, pois não é outra a finalidade da ação declaratória, inclusive com suporte no art. 4° do Código de Processo Civil. O Tribunal detentor da competência originária, então, manifestar-se-á também em sentença normativa, desta vez de conteúdo declaratório.
No que toca à atividade de estabelecer normas, cabe assinalar que o novo parágrafo segundo do art. 114 não impede que a Justiça do Trabalho crie normas inexistentes na ordem jurídica positiva ou nos instrumentos coletivos de regulação autônoma anteriormente celebrados entre as partes. O que se verifica na disposição em comento é que, ao solucionar o conflito mediante decisão em sede de dissídio coletivo e estabelecer normas nesta decisão, a Justiça do Trabalho deverá respeitar as “disposições mínimas legais de proteção ao trabalho, bem como as convencionadas anteriormente”. Não há óbice à criação de normas mais benéficas ao trabalhador, o que significa, sobretudo, que não foi eliminada ou excluída – assim, sem mais – a proteção ao trabalho, expressão máxima do princípio protetor, base informadora do Direito do Trabalho. Nem há vedação de serem estabelecidas normas novas em relação àquelas já convencionadas anteriormente. Desde que respeitadas estas.
Quanto à observância das normas já convencionadas, em composição autônoma do conflito, assinale-se, em primeiro lugar, que, ao utilizar a expressão convencionadas, o dispositivo inclui os acordos coletivos, que vêm expressamente previstos no art. 7°, inciso XXVI, da Constituição da República. Já era assim na vigência da redação anterior do parágrafo segundo do art. 114 da Constituição da República.
Desse modo, parece claro que a nova disposição constitucional não proíbe a ampliação pela sentença normativa, proferida em dissídio de natureza econômica, de benefícios ou vantagens já adquiridos pelos empregados em convenções ou acordos precedentes. O texto constitucional, no particular, em seu conteúdo imperativo de observância de disposições anteriores, é um só, ou seja, trata-se de uma só norma quanto ao respeito às disposições mínimas legais e às disposições convencionadas. Com efeito, é evidente que, dizendo “convencionadas anteriormente”, o último período da oração está se referindo também às disposições mínimas, pois não há ali nenhum outro substantivo ao qual ela possa estar fazendo alusão. A norma, portanto, há ser lida da seguinte forma: deverão ser observadas as disposições legais mínimas de proteção ao trabalho, bem como as disposições mínimas de proteção ao trabalho convencionadas anteriormente. Fica evidente, com isso, que, neste aspecto, não foi introduzida qualquer novidade no texto, alterando-se apenas a redação. O texto anterior já determinava que fossem respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho. A diferença, se existe, é que, agora, fala-se (e, reconheça-se, que, neste ponto, até com vantagem para a compreensão) em disposições convencionadas anteriormente e não em convencionais.
Assim, o limite imposto à Justiça do Trabalho pelo parágrafo segundo do art. 114 da Constituição da República, quanto à estipulação de normas de natureza trabalhista, em sede normativa, refere-se, sempre, às disposições mínimas asseguradas, seja heterônoma, seja autônoma a fonte.
O entendimento ora expressado, de que é possível a fixação, pela Justiça do Trabalho, de normas não existentes no ordenamento jurídico, e que não estejam contidas em disposições anteriormente convencionadas – desde que seja respeitado o mínimo já convencionado – está em consonância com o método de interpretação sistemática,pois o art. 7°, caput, da Constituição, ao anunciar os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, assegura, além daqueles que arrola, outros tantos “que visem à melhoria de sua condição social”. Atua, novamente, o princípio da unidade como perspectiva estrutural da Lei Maior, já que este princípio decorre diretamente do método sistemático.
Conclui-se, portanto, que:
a) a alusão ao ajuizamento do dissídio coletivo “de comum acordo”, contida no parágrafo segundo do art. 114 da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 45/2004, revela faculdade do envolvidos no conflito e não inibe nem veda o ajuizamento singular do dissídio, caso não seja alcançada a conciliação em sede de negociação ou arbitragem;
b) a Justiça do Trabalho processará e julgará o dissídio, caso não haja composição, mediante acordo, em sede processual;
c) a decisão da Justiça do Trabalho, caso não alcançado o acordo em sede processual, é expressão do poder normativo, que continua incólume, não foi mitigado e, muito menos, suprimido pelo novo texto constitucional;
d) estão mantidas todas as espécies de dissídio coletivo, conforme a classificação que vinha sendo adotada antes da nova redação do texto constitucional, tais como os dissídios de natureza econômica (de interesse), de que resulta sentença constitutiva, de revisão, os de caráter declaratório, destinados à interpretação de normas coletivas autônomas anteriores, mantendo-se viva, inclusive a discussão quanto à classificação dos dissídios tradicionalmente aceitos no ordenamento jurídico e na doutrina nacional.
e) as normas coletivas a serem estabelecidas na decisão do dissídio deverão respeitar as disposições legais mínimas de proteção ao trabalho e as disposições mínimas de proteção ao trabalho convencionadas anteriormente.