A tragédia humana no Iraque tem nome. É Razek al-Kazem al-Kahaf. Ele perdeu, em poucos segundos, a mulher, seis filhos, o pai, a mãe, três irmãos e suas cunhadas. Quinze vítimas, mortas pelo exército de George W. Bush. Razek, certamente, agradecerá a Alá pela liberdade em que passará a viver quando o assassino Saddam tiver sido eliminado.
Como todo mundo sabe, Saddam preparava-se para enlutar famílias americanas usando poderosas armas de destruição em massa. Razek ainda acabará entendendo as razões dos ianques que detiveram a tempo a mão assassina do monstro. E, afinal, como diria Peter Arnett: ``Quinze mortos não são tantos assim``. Por que chorar?
Não se deixem enganar pelas imagens de bebês destroçados, ensangüentados, jogados entre trapos sujos e cheios de moscas em rústicos caixotes de madeira. Não se preocupem. Não chorem por eles. São apenas iraquianos, pobres diabos de vida barata, que não merecem sequer uma flor. Meros ``danos colaterais``, estatísticas de uma guerra contra a barbárie, movida em nome de Cristo e da Civilização.
Indignados estaríamos se as vítimas fossem crianças brancas, nutridas, que brincam de guerra com seus videogames, usam tênis Nike (aqueles feitos por pequenos escravos chineses), bebem Coca-Cola e freqüentam o McDonald`s; ou seja, ``nossas`` crianças. Imaginem a indignação na terra de Tio Sam se um helicóptero árabe disparasse um míssil sobre a família de um certo John Taylor, eliminando-a. Crime contra a humanidade!
O local se entupiria de flores, como santuário. As TVs passariam e repassariam a cena. Os EUA não descansariam enquanto não punissem exemplarmente o terrorista e seus mandantes. Graças a Deus, isso não aconteceu. Morreram apenas civis iraquianos e, como se sabe, são necessários muitos iraquianos mortos para equivaler a um único americano perdido. Ninharia...
Não entendo por que sociólogos ou antropólogos não pleiteiam bolsas para fazer estudos comparativos sobre o valor das vidas dos seres humanos. (Sou candidato a uma, vou precisar.) Diz a lenda que somos todos iguais. Será? Para começar poderíamos estabelecer como referência a vida dos norte-americanos. Quanto vale uma vida ianque? Os EUA já fizeram essa conta há 59 anos e esta resultou em duas bombas atômicas. Hiroshima e Nagasaki. Milhares de crianças, mulheres e velhos japoneses (meros amarelos) foram vaporizados no holocausto nuclear para evitar a morte de Gis do Texas, Califórnia, Ohio etc.
A vida de um norte-americano vale, certamente, mais do que uma vida inglesa, francesa ou alemã, mas não muito (as duas últimas desvalorizaram um pouco em função da posição da França e da Alemanha nesta guerra). Ousaria dizer que a vida de dois europeus ocidentais (portugueses, espanhóis e italianos valendo menos) equivale a uma vida ianque. Vidas israelenses andam perto dessa cotação. Se tomarmos russos como parâmetro será preciso matar uns cinco, talvez seis. E quantos brasileiros terão que ser eliminados para equivaler a um norte-americano? Agora imaginem árabes, negros ou vietnamitas...
E o mais irônico é que os assassinos dos filhos de Razek batizaram o sinistro helicóptero que os matou com o nome do povo índio que exterminaram, sem piedade, para roubar-lhe a terra: Apache! Jerônimo deve dar pulos de indignação em sua tumba.
E a imprensa continua com a ficção das ``bombas inteligentes``. São bombas serial killers, tão inteligentes quanto Hannibal Lector. A bomba que ``libertou`` a família de Razek é de fragmentação. Ela carrega 200 minibombas que se espalham e explodem na superfície do solo lançando uma onda de fragmentos, afiados como navalhas, que ferem e matam num raio de 200 metros. Não demole, nem danifica, prédios ou pontes. É feita para matar. Equivale a minas terrestres jogadas de avião. É arma assassina.
O que diz disso a Convenção de Genebra, zelosamente invocada pelos ianques quando os iraquianos mostram prisioneiros norte-americanos na TV? Presos tratados a pão-de-ló, quando comparados à maneira nazista como são torturados os afegãos em poder dos esbirros de Bush & cia, na base de Guantanamo, terra roubada de Cuba em... Mas isso já é outra História.
Fonte: Jornal do Brasil, Domingo, 06 de abril de 2003.