Boa noite a todos!
Prezado Presidente da Mesa; Prof. Nalini; Des. Benedito; e especialmente Min. Pertence, que a todos honra com a sua presença nesta oportunidade.
Em primeiro lugar, agradeço a generosidade do convite que nos trouxe todos a este local maravilhoso, e saúdo diretamente os organizadores do evento pela sua execução.
Penso que, embora o tempo seja curto e mesmo com a importância das exposições que me antecederam, a relevância do tema exige que todos nós, integrantes das Escolas de Magistratura, ousemos um pouco nesse debate e nessa reflexão.
O tema é desafiador e de muita atualidade. Há muitos enfoques e abordagens possíveis (sociológicas, políticas, e mesmo jurídicas - pelas inúmeras tentativas de interpretação da EC 45) em torno desse complexo e importante assunto. É certo, porém, que, a despeito das múltiplas perspectivas, torna-se indispensável tentar entender o contexto histórico e sócio-político de todo o processo que culminou na "Reforma do Judiciário" e identificar o conjunto de demandas que a sociedade externa e pretende perante o Judiciário no início do século XXI. No bojo das suas críticas - algumas muito justas, e outras nem tanto -, podemos tentar entender melhor o papel que a sociedade espera de nós.
No momento em que se discute o papel das Escolas de Magistratura, não se pode esquecer a finalidade delas. A existência de Escolas faz sentido apenas na medida em que atendem à formação do Juiz; isto é: elas estão a serviço do Juiz, e não o contrário. Em essência, isso significa que primeiro deve-se definir o que se quer fazer com a Escola ou que tipo de juiz se pretende formar, e não como ela deve ser estrutural ou institucionalmente (o tamanho, o número de professores ou salas de aula, os diretores, os professores, a metodologia, etc.).
Nesse sentido, e considerando o tempo limitado de que dispomos, a abordagem que aqui se pretende desenvolver pode ser sintetizada como um conjunto de reflexões sobre o juiz do século XXI. Busca-se, aqui, rascunhar um conjunto de elementos que defina as demandas sociais sobre o juiz brasileiro no começo do novo século.
Seguindo essa linha de raciocínio, e dentre as diversas possibilidades analíticas, a exposição - que deve ser entendida como uma mera reflexão ligeira ou um pensamento em voz alta, nada mais do que isso - pretende centrar-se em três aspectos basicamente, expostos no pouco tempo que nos limita:
(1) QUAL O PAPEL DO JUIZ A SE FORMAR: qual juiz a sociedade quer e precisa no século XXI;
(2) O QUE É FORMAR: o que significa mais exatamente "formar" um magistrado;
(3) QUAL É O CONTEÚDO DA FORMAÇÃO: qual é o conjunto mínimo de saberes que se deve ensinar na formação do juiz;
O debate sobre a estrutura e natureza das Escolas, assim, é apenas uma decorrência da resposta dessas perguntas, e deve ser discutida à luz dessas considerações prévias.
Mais além, esse tema do papel do juiz no século XXI já revelou sua importância ao ter sido o objeto de vários seminários promovidos nacionalmente pelas atuais Escolas Trabalhistas. Nesse debate, tentou-se reconstruir o conjunto de expectativas da sociedade no início do século XXI, debatendo de forma multidisciplinar com os juízes, mas também com os outros ramos do saber, contando com a colaboração de sociólogos, cientistas políticos e psicólogos, além de juristas. Embora existam questões trabalhistas específicas, a essência da profissão da magistratura é a mesma, e, em linhas gerais, todas essas considerações aplicam-se igualmente a todos os seus ramos.
Advirta-se, desde já, que o que se vai dizer aqui não é ou pretende ser algum tipo de "verdade" ou uma tese. Essas considerações não passam de um esboço ou rascunho grosseiro de idéias e reflexões inacabadas e bastante incompletas desse complexo processo de mudança da magistratura e da própria sociedade. Por isso, desde já se registram as desculpas pela simplicidade e imprecisão de muitas observações, que tendem mais a chamar a atenção para a importância do tema e seus desdobramentos do que propriamente a desenvolver alguma teoria.
Para essa abordagem, que pretende resgatar aspectos centrais das expectativas sociais em torno da magistratura - e, assim, partem da sociedade civil, dos leigos, do cidadão sem familiaridade com o Direito e sua linguagem -, a metodologia centra-se no reposicionamento do magistrado na perspectiva da sociedade: para saber o que a sociedade quer do Juiz, nós precisamos pensar como a sociedade, e não como a instituição, seja para afastar seus corporativismos e sua visão institucionalizada, seja mesmo para permitir a abertura de outros horizontes aproximativos. Portanto, e sempre que possível, vai se tentar fugir do figurino e do vocabulário jurídico, como uma espécie de peça teatral na qual o magistrado tira a toga e senta na platéia para tentar entender o que a sociedade vê, e, assim, é o ponto de partida de suas críticas e expectativas sobre o Judiciário.
Vamos apreciar juntos essa outra visão.
(1) qual é o novo papel do juiz:
Este primeiro ponto nos coloca diante do desafio de tentar atender as novas demandas sociais, de promover uma resposta às críticas da sociedade ao nosso trabalho.
Para a sociedade, o cidadão, a essência da função do juiz é a solução de CONFLITO, não a solução do PROCESSO, formal ou processualmente considerado.
Enquanto os juristas consomem seu tempo e energia tentando aperfeiçoar o processo do ponto de vista formal, corre-se o risco de que ele vire um fim em si mesmo, um ente que adquire vida própria e deixa de ser o servo do juiz a serviço da sociedade e passa a ser o seu senhor.
É verdade que o Poder Judiciário vive inúmeras crises topologicamente delimitáveis - institucionais (papel a cumprir dentro do Estado e frente aos demais poderes), estruturais (número de varas, tribunais, computadores) e procedimentais (ritos, prazos, demandas, etc.) -, mas elas são apenas dimensões parciais de um problema bem maior. O nosso desafio real não é exatamente solucionar essas crises isoladamente, mas sim em conjunto, porque elas serão resolvidas apenas com a reconstrução da magistratura, ou, mais exatamente, com a construção da identidade da magistratura do século XXI.
Embora os juristas sejam precisos na crítica das interpretações puramente dogmáticas do Direito (enfatizando as limitações do pensamento de Kelsen, por exemplo), não o são na crítica sobre o seu próprio papel no século XXI. O jurista, embora apregoe a superação dos modelos jurídicos do século XIX, nada diz sobre a continuidade dos modelos judiciários (incluindo o recrutamento e a formação do juiz) do século XIX.
Em muitos aspectos, parece que se está iniciando o século XXI como se estivesse começando de novo o século XIX, com base em premissas de um Direito e uma sociedade na qual todos são livres, iguais e solidários. Mas a realidade é bem distinta. O mundo contemporâneo apresenta uma realidade de grande e progressiva exclusão social, de crise dos modelos de democracia representativa, e de economia que se globaliza de forma neoliberal e desregulamentada perante o Estado e a Sociedade. Assim como o Direito deve dar respostas a esses desafios na regulação da sociedade, o juiz deve estar capacitado a perceber esses desafios e operar os instrumentos disponíveis com eficiência, como a sociedade exige, para solucionar seus conflitos.
Por isso, não podemos recrutar o juiz e pensar em formar um juiz, hoje, no século XXI, com base nas teorias e nos métodos do século XIX. Isso não é apenas uma questão de usar a tecnologia de forma mais intensa (mais computadores, vídeo conferência, ensino à distância, etc.), mas sim de uma nova postura - crítica, pró-ativa, ética, aberta à sociedade, democrática, dinâmica e de aprendizagem permanente. No fundo, é o problema de uma nova deontologia da magistratura.
(2) como formar o juiz:
Este segundo ponto coloca-nos diante da formação diretamente.
É fundamental diferenciar a formação de outros processos cognitivos. Formar, neste contexto, é desenvolver habilidades específicas para o exercício da profissão.
"Habilidades", mais além, são "saberes" no sentido Foucaulniano. Ao formar o juiz, estamos apresentando ele a conjuntos de teorias e práticas voltadas para uma atividade específica, que pertencem ou não a algum ou vários ramos da ciência. Não se discute aqui se conciliar ou se interagir com os demais atores jurídicos é um ramo da ciência ou se integra um ou mais ramos científicos, como a Psicologia, a Sociologia e a Ciência Jurídica. O essencial aqui é o núcleo em si de idéias e ações que compõem o exercício da profissão de juiz.
O lugar da formação é apenas nas ESCOLAS DE MAGISTRATURA. O desenvolvimento de habilidades profissionais ocorre dentro do espaço de integração do ensino e da magistratura. Embora a Academia possa contribuir, não há curso de graduação ou pós-graduação que ensine isso, e tampouco há concurso que permita avaliar se o candidato apresenta ou não essas habilidades desenvolvidas. Por isso, reitera-se que as Escolas devem ser estruturadas para realizar essa atividade apenas depois da definição clara de quais são exatamente essas necessidades que a sociedade espera do Juiz como profissional a seu serviço.
É interesse notar uma curiosidade. Poucos ramos do conhecimento têm a peculiaridade da transição da teoria para o exercício profissional sem uma formação inicial própria. Na Medicina, por exemplo, o exercício pleno da profissão de médico pressupõe um período de práticas para integração da teoria (a "residência"). No Direito, ao revés, os seus profissionais são órfãos dessa omissão. O advogado, por exemplo, não tem um espaço formal de aprendizado para os "saberes" de sua profissã não conhece a gestão financeira de um escritório, a relação interpessoal com clientes e serventuários do fórum, a forma de organização dos seus arquivos e agenda de trabalho, etc. Ele vai desenvolver isso (ou não...)já como pleno profissional junto aos demais colegas de profissão.
(3) o conteúdo da formaçã
O terceiro ponto coloca-nos diante das "habilidades" ou "saberes" que o juiz deve desenvolver para bem exercer a sua profissão. Em outras palavras, e retomando a perspectiva que se apontou no início, devemos tentar sintetizar o conjunto das expectativas da sociedade em torno dos seus afazeres, notadamente no início do século XXI.
Da perspectiva da sociedade, do tomador do serviço do juiz, há pelo menos cinco "saberes" que devem ser desenvolvidos, que, porém, são apenas exemplificativos:
(a) saber relacionar-se interpessoalmente: com servidores (subordinados, gestão dos recursos humanos, etc.) e outros operadores jurídicos, como promotores, procuradores e advogados, por exemplo; da mesma forma, é fundamental também saber relacionar-se com as partes. Neste último ponto, e mais importante, essa habilidade pressupõe basicamente "educação" e "saber ouvir"; o respeito ao jurisdicionado, como cidadão que merece cortesia, um "bom dia", um "obrigado", e outras manifestações de educação e civilidade, são essenciais no seu contato; da mesma forma, a oportunidade para as partes falarem, externarem suas angústias e expectativas, é outro ponto de muita importância para o cumprimento da função pública da pacificação social. O "filtro jurídico" das peças elaboradas pelo advogado não permite que as maiores aflições dos envolvidos no conflito sejam externalizadas e integrem o "acervo" da prova, como fonte do "apreender" do juiz na sua "instrução" pessoal, imediata e oral, e, muitas vezes, são mais importantes que a questão econômica ou material no debate jurídico. O juiz deve saber interagir pessoal e socialmente com os demais atores jurídicos e com as partes.
(b)saber relacionar-se com a sociedade e a mídia: o juiz deve saber como dar publicidade às suas atuações, como responder às críticas da sociedade, como responder a questões da imprensa e como "traduzir" a linguagem jurídica. Vários aspectos podem ser explorados, inclusive como se manifestar perante a mídia (por exemplo, devendo saber que os 05 minutos de sua resposta a uma pergunta do repórter serão editados e resumidos a uma ou duas frases de 10 segundos...). Nesse contexto; é fundamental o juiz saber dar uma resposta pública às expectativas da sociedade.
(c) saber argumentar juridicamente na posição do juiz: o juiz ocupa uma posição discursiva bem singular no espaço argumentativo da solução do conflito porque fica entre duas teses, que, como observa Habermas, conformam um agir orientado pelo entendimento, e deve ser desenvolvido. Não se trata, aqui, de "ensinar a falar" no sentido de domínio do idioma, mas sim enfatizar a necessidade de que o plano da retórica seja compatível com o público (conforme a parte está sozinha, ou com advogado, por exemplo), oralmente e por escrito (a parte precisa entender o que ganhou e o que perdeu...). O juiz deve saber ocupar argumentativamente seu espaço discursivo e utilizar uma linguagem compatível com os envolvidos no conflito.
(d)saber promover a conciliaçã o juiz deve entender como interpretar os aspectos sociológicos, políticos e especialmente os psicológicos da conciliação; deve saber como conduzir a negociação entre as partes e como usar a linguagem. Persuadir as partes é muito mais do que perguntar se existe acord é demonstrar as vantagens comparativas da conciliação e desenvolver argumentos adequados e precisos e estratégias para conduzir as partes à melhor proposta possível para terminar o embate. Por exemplo, deve saber o que quer dizer o "não" das partes diante de uma proposta de conciliaçã é uma negativa total ou apenas uma retórica de defesa instintiva de alguém que tem o receio de dizer "sim" para não transparecer que seu argumento ou sua tese possam ser menos sólidos. A solução conciliada é a solução menos traumática para o conflito, e deve ser a mais enfatizada ao longo do processo. O juiz deve saber como promover a conciliação no processo.
(e) saber julgar: o juiz deve saber como impor a vontade do Estado de forma efetiva em todos os conflitos. Se a solução conciliada não é possível, e o Estado, pelo Juiz, deve impor uma vontade, esta solução tem que atender aos melhores critérios possíveis de Justiça e de ética na sociedade contemporânea do século XXI. Embora seja pressuposto que o juiz "julgue" por essência, essa advertência é importante porque o juiz pode ser muito preparado em julgar por regras, dentro de uma pirâmide normativa de base formal, num plano puramente dogmático (com base na hermenêutica tradicional, pela anterioridade ou especialidade da regra, por exemplo), mas revela limitações quando a solução do conflito envolve conflitos entre regras e princípios, ou apenas entre princípios, ou demanda a aplicação de eqüidade, por exemplo. O aprendizado da ponderação no conflito de princípios (Alexy) - ou, em outras palavras, como saber se prevalece o princípio da liberdade de imprensa ou o princípio da proteção da intimidade no que se refere à vida de pessoas públicas, ou o princípio da dignidade do trabalho frente ao princípio da livre-iniciativa, etc. - é de extrema importância para o magistrado que, no século XXI, não é uma "boca da lei" ou um glosador de regras. O Juiz deve saber julgar com todos os recursos disponíveis para solucionar os conflitos com Justiça e ética.
Os instrumentos para desenvolver as habilidades profissionais do juiz são muitos. A pós-graduação em sentido estrito de perfil acadêmico ajuda, mas não é a essência; o mestre e o doutor podem ser grandes professores ou pesquisadores, mas não necessariamente profissionais melhores como magistrados. Por isso, a importância das Escolas de Magistratura como o local por natureza dessa formação profissional.
Essa formação de natureza profissional, mais além, envolve duas linhas de tempo distintas que devem ser intercomplementadas. No caso da magistratura, envolve a formação inicial e a formação continuada, o que tem por alvo, respectivamente, os "magistrados do futuro" e também os "magistrados do presente". Todos estão sujeitos à formaçã no início, e continuadamente, sempre, por toda a carreira.
Por fim, e já concluindo, sem querer abusar do tempo e da paciência de todos, quero dizer que, ao trazer essas questões, conclamo todos a refletir sobre sua importância para definirmos - em processo coletivo, dialógico, transparente - qual é o juiz do século XXI e como as Escolas devem ser construídas para realizar essa tarefa. Dependendo da resposta que dermos, as Escolas podem formar, RE-formar ou mesmo DE-formar uma geração inteira de magistrados.
A magistratura brasileira, senhores, e a sociedade brasileira do século XXI, dependem de nós todos realizarmos juntos essa missão.
Muito obrigado.